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Conheça a “democracia popular de processo integral”, a democracia falsificada pela China

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

No início do mês, o jornalista Augusto de Franco, defensor apaixonado da democracia, fez uma provocação irresistível em seu site, Dagobah. Disse que seria interessante fazer uma análise aprofundada do que considera “a maior tentativa da história de falsificar a democracia”. Aqui estamos.

Ele postou a versão em inglês de um documento público divulgado pela agência oficial Xinhua News por ocasião da comemoração do centenário do Partido Comunista Chinês e não teve a devida atenção internacional.

É algo que precisa ser dissecado e analisado cuidadosamente por pessoas com visões diferentes. Não é fácil compreender a estrutura por trás do documento e como desfazer a narrativa. O título já mostra o poder de destruição. China: a democracia que funciona. Seria apenas uma desfaçatez se fosse algo produzido pelos blogueiros conduzidos pela coleira por políticos ocidentais. É perigoso exatamente por ser muito bem executado.

Em 23 páginas, o documento recorre à história política de 5 mil anos da China para legitimar o Partido Comunista como fiador da democracia. O exercício retórico é sofisticado. Na introdução, se diz que o Partido Comunista Chinês tentou todas as formas de democracia utilizadas atualmente no ocidente e elas falharam. A releitura histórica se funde com a releitura do conceito de democracia em si.

Há uma mistura perversa entre o conceito de governo do povo com a possibilidade de ascensão social mediada por um partido que é o único garantidor da “vontade popular”. O partido assume o papel que no ocidente geralmente é depositado no colo de grandes ídolos políticos populistas. Os conceitos de liberdade e direitos humanos também são pervertidos.

Todo o documento tem um foco muito mais voltado à leitura moral das situações do que à descrição da realidade. Um exemplo é a deturpação do conceito de direitos humanos, que parte de uma mentira para uma justificativa moral. Na China, os direitos humanos são plenamente respeitados e protegidos. Viver uma vida de contentamento é o direito
humano supremo.

É a execução perfeita da novilíngua de George Orwell. Não basta apenas renomear o que desagrada, é preciso criar teorias morais que degradem algo valorizado na democracia. Os direitos humanos estão elencados de forma objetiva numa declaração internacional. Eles são sistematicamente atropelados pelo governo chinês, acusado diuturnamente dos mais diversos tipos de violações.

A moralização é a afirmação aparentemente feita pensando no bem comum. Não existe um “direito humano supremo” e nem se fala de “vida de contentamento” na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É uma forma sub-reptícia de justificar as violações sistemáticas deliberdades individuais apelando ao conceito abstrato de felicidade ou contentamento. Se a pessoa está contente, então não se pode dizer que a violação de direitos humanos é isso, afinal estar contente é o centro da questão. Não existe melhor gaiola do que a ilusão de liberdade. O documento é a sistematização de um discurso para criar ilusão de liberdade ao mesmo tempo em que justifica as violações das liberdades.

O que seria então o tal do contentamento? É a sensação de progresso econômico e de ter as necessidades de subsistência atendidas. A economia da China manteve um crescimento de longo prazo, estável e rápido, e a vida das pessoas melhorou significativamente. A China estabeleceu o maior sistema de seguridade social do mundo. O número de pessoas cobertas pelo seguro médico básico ultrapassou 1,3 bilhão, e o número de pessoas cobertas pelo seguro básico de velhice já ultrapassou 1 bilhão.  A China completou a construção de uma  sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos. Todo o país se livrou da pobreza absoluta e embarcou no caminho da prosperidade comum. As pessoas ganharam uma sensação mais forte de realização, felicidade e segurança.

A linguagem parece bem intencionada e, por isso, funciona como narrativa para os mais desavisados. Este parágrafo remonta a um dos episódios mais trágicos da história da China, que só começou a ser desvendado pelo ocidente recentemente. Um livro de Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong, publicado em 2008 trouxe à tona uma realidade ainda mais devastadora do que se pensava. “A grande fome de Mao – A história da catástrofe mais devastadora da China” traz a primeira pesquisa em arquivos do próprio governo sobre o ocorrido entre 1958 e 1962. As estimativas eram de 30 milhões de mortos pela fome. As novas pesquisas demonstraram que foram pelo menos 45 milhões de mortos.

O professor teve acesso em primeira mão a arquivos contando de forma detalhada o impacto da política chamada de “O Grande Salto para Frente” de Mao Tsé-Tung. Era um plano de expansão econômica aparentemente muito bem feito. A teoria, na prática, era outra. Hoje, o Partido Comunista Chinês chama o evento de “O Difícil Período de 3 anos”, que seria de 1959 a 1961. A falta de comida para as pessoas teria, segundo a versão oficial, sido decorrência de problemas nas condições ambientais. A contagem oficial é de 15 milhões de mortos.

O ponto mais trágico é que ninguém morreu de fome por falta de comida, mas por uma política que regulava o acesso a alimentos para consolidar poder. O novo documento relaciona a subsistência à democracia. Durante “A Grande Fome de Mao”, a comida era usada como instrumento para garantir que as pessoas cumprissem as tarefas determinadas pelo Partido Comunista Chinês. As famílias já haviam começado a ser esfaceladas e as pessoas obrigadas a trabalhar em grandes colônias agrícolas.

Toda a produção precisava ser entregue ao Estado até o ponto em que foi proibido até mesmo cozinhar dentro das casas. O acesso à cantina coletiva era facilitado aos que cumpriam as tarefas. Os que não cumpriam, estavam doentes, dormiam no serviço ou estavam fracos perdiam esse acesso. Muitos acabaram morrendo. Nessa época, a propaganda oficial vendia a imagem de uma economia próspera com um povo feliz. Mas os novos documentos mostram uma realidade absolutamente chocante.

O desespero chegou a um ponto em que havia muitos casos de camponeses que desenterravam parentes para comer, era comum o consumo de roedores, terra e cascas de árvore para matar a fome. Praticamente toda família tem um sobrevivente desse horror. Vender a situação atual como prosperidade e democracia é menos difícil diante dessa memória. Por isso a ideia de relacionar democracia a subsistência é especialmente perversa.

O Partido Comunista Chinês tem o poder de controlar a economia com mão forte a ponto de privar cada um dos cidadãos de toda a dignidade. Já fez isso. Agora utiliza essa memória para dizer que a privação de liberdades individuais é democracia,  já que as pessoas podem comer e estão contentes. Os conceitos de contentamento e felicidade são altamente subjetivos e fáceis de manipular no discurso político. A ideia da “democracia que funciona” é calcada exclusivamente na subjetividade.

As instituições democráticas passam por um período de descrédito no mundo todo. Questionar é natural do processo democrático. Mas a abertura de qualquer tipo de dissenso é vista pela China como oportunidade para advogar pelo conceito de “democracia de consenso”, aquela em que o consenso pode ser democraticamente forçado.

Se o povo é despertado apenas para votar, mas depois fica adormecido, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe grandes esperanças durante a campanha eleitoral, mas não tem voz depois, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe promessas exageradas durante a campanha eleitoral, mas fica de mãos vazias depois, isso não é uma verdadeira democracia.

Com isso obviamente a maioria de nós vai concordar. A crise institucional da democracia ocorre justamente porque as pessoas não se sentem participantes das decisões nem representadas pelas instituições. O documento sobre a democracia chinesa fala com empolgação sobre a inexistência de partidos de oposição. Não é um regime de partido único, mas todos os outros sabem que estão lá para colaborar com o Partido Comunista Chinês, não para questionar nem se opor.

Um bom modelo de democracia deve construir consenso em vez de criar divisões e conflitos sociais, salvaguardar a equidade e a justiça social em vez de aumentar as disparidades sociais em favor de interesses estabelecidos, manter a ordem e a estabilidade sociais em vez de causar caos e turbulência, e inspirar positividade e valorização do bom e do belo em vez de instigar a negatividade e promover o falso e o mal.

O Partido Comunista Chinês tem uma lógica conhecida de forçar o consenso a qualquer preço e atropelando liberdades e diferenças individuais. É quase delirante a forma como este princípio é distorcido até se encaixar em uma definição moral da “boa democracia”. Martin Luther King dizia que a paz não é ausência de conflito, é presença de justiça. Este conceito é completamente subvertido no pacifismo movido pela mão forte da ditadura.

A democracia é um direito do povo em todos os países, e não uma prerrogativa de algumas nações. Se um país é democrático, isso deve ser julgado por seu povo, não ditado por um punhado de forasteiros. Se um país é democrático deve ser reconhecido pela comunidade internacional, não arbitrariamente decidido por alguns juízes auto nomeados. Não existe um modelo fixo de democracia; ela se manifesta de muitas formas. Avaliar a miríade de sistemas políticos no mundo com um único critério e examinar diversas estruturas políticas com regras monocráticas são, em si, atitudes antidemocráticas.

No mundo ricamente diversificado, a democracia vem em muitas formas. A democracia da China está prosperando ao lado de outros países no jardim das civilizações. A China está pronta para contribuir com sua experiência e força para o progresso político global por meio da cooperação e do aprendizado mútuo. A ideia é que você pode chamar de democracia se conseguir convencer as pessoas de que é democracia. E isso pode ser feito num regime de partido único, cada vez mais fechado ao mundo exterior, com inúmeros mecanismos de controle social de última geração.

O mais ousado é a proposta de ajudar outros países a consolidar seus regimes e dar um jeito de também chamar de democracia. Além dos efeitos práticos, é uma narrativa que pega e pode contaminar inclusive o mundo democrático. Se cada um criar sua versão de democracia e contestar a legitimidade de todas as instituições democráticas, tudo passa a poder ser chamado de democracia. Se nada é suficientemente democrático, tudo também pode ser democrático em alguma medida, sempre buscando melhorar.

Ainda há muito a se analisar sobre este documento, mas parece uma tese que tem tudo para se espalhar, sobretudo diante das crises institucionais nas grandes democracias mundiais. O assustador é que estamos tão consumidos pelas crises que criamos onde existe democracia que nem atentamos para as tentativas de demolir cada suspiro democrático.

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