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Democracia e Cristianismo

Alex Catharino

Alex Catharino

Alguns defensores do regime democrático costumam recorrer ao ditado em latim “vox populi, vox Dei” [A voz do povo, a voz de Deus]. No entanto, o mais antigo registro dessa máxima se encontra em uma carta, do ano de 798, enviada para Carlos Magno (742-814) por Alcuíno de York (735-804), na qual o monge inglês afirmou que: “não se deve ouvir aqueles que costumam dizer: ‘A voz do povo, a voz de Deus’, pois o tumulto das pessoas comuns está sempre perto da loucura”. Em grande parte, a visão negativa de muitos cristãos acerca dos riscos da democracia repousa no fato de a massa ter escolhido libertar o criminoso Barrabás no lugar de Jesus, o que acarretou a crucificação de um inocente.

No entanto, as diversas igrejas cristãs, em suas advertências sobre os riscos inerentes ao regime democrático, também rejeitam as diferentes formas de governos autoritários, ao reconhecerem que tiranias, ditaduras ou modelos totalitários são incompatíveis com a correta visão sobre a natureza humana e os ditames da boa ordem social. Uma das melhores explanações sobre a apropriada relação entre democracia e cristianismo foi apresentada pelo saudoso Papa São João Paulo II, em vários documentos de seu magistério pontifício.

O grande Romano Pontífice, na encíclica “Centesimus Annus”, promulgada em 1º de maio de 1991, assim expressou a aprovação católica ao regime democrático:

“A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou de objetivos ideológicos” (CA §46).

Algumas décadas antes da promulgação da “Centesimus Annus”, na “Radiomensagem Natalina” proferida em 25 de dezembro de 1944, encontramos uma importante advertência do Papa Pio XII (1876-1958), que reconheceu a existência na modernidade de dois tipos de governos democráticos. O primeiro modelo, segundo o Romano Pontífice, transforma os integrantes da sociedade numa multidão amorfa, numa massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada por um governante ou por um partido político. O segundo tipo entende o povo como um conjunto de pessoas, cada uma das quais, no próprio lugar e a seu modo, apta a formar a própria opinião a respeito da coisa pública e da liberdade para exprimir a própria sensibilidade política e fazê-la valer em maneira consoante com o bem-comum. O primeiro tipo é a chamada democracia popular, vigente em diferentes países socialistas, como China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e Venezuela, dentre outros. O segundo tipo é o modelo anglo-saxão de democracia liberal.

De acordo com essas perspectivas defendidas pela Igreja Católica, não devemos aceitar qualquer forma de democracia. Em uma democracia liberal, mais importante do que a escolha democrática dos governantes pelos membros de uma comunidade política, a legitimidade desse modelo se fundamenta nas possibilidades tanto de mudar pacificamente os grupos dirigentes quanto de fiscalizar os atos administrativos e fiscais da gestão pública. O endosso do Papa João Paulo II ao modelo democrático anglo-saxão ficou explícito nas encíclicas “Veritatis Splendor”, de 6 de agosto de 1993, e em “Evangelium Vitae”, (1995), obras nas quais são defendidas as noções de lei civil como continuidade da lei moral e do Estado como protetor e promotor dos direitos individuais (VS §101 / EV §71), bem como na exigência da transparência administrativa por parte dos governantes (VS §101). Em uma passagem da já citada “Centesimus Annus”, o Romano Pontífice afirmou que:

“Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da ‘subjetividade’ da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade” (CA §46).

Em última instância, a verdade moral, o Estado de Direito e a liberdade econômica devem ser os fundamentos da democracia representativa. Existem limites éticos ao processo democrático que devem ser respeitados. Algo que seja, intrinsecamente, falso, errado, mau ou desprezível não poderá ser mudado pela vontade da maioria. Na encíclica “Evangelium Vitae”, o papa João Paulo II afirmou que:

“Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congênitos que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover. Importa retomar, neste sentido, os ‘elementos fundamentais da visão entre lei civil e lei moral’, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições jurídicas da humanidade” (EV §71).

Tal como defendido pela tradição conservadora desde seus primórdios, com Edmund Burke (1729-1797), até nossos dias, com Russell Kirk (1918-1994) e Sir Roger Scruton (1944-2020), a chamada Doutrina Social da Igreja compreende que uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito, que, por sua vez, não pode ser mantido sem realmente assegurar a efetividade da lei, cujos fundamentos se encontram na moral. Infelizmente, em nosso país, muitos que alegam defender o regime democrático parecem negligenciar esses princípios jurídicos e morais essenciais para a vigência da democracia.

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