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Softpower: como a China controla seus cidadãos em outros países

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

como a China controla seus cidadãos em outros países

As correntes de rede social nos assustam demais quando o assunto é China. Vemos uma superpotência ditatorial a tentar engolir com seus tentáculos tudo aquilo em que acreditamos. É uma visão simplista. Fossem esses o objetivo e método, já teria engolido.

Há muitos anos, a China é o principal parceiro comercial do Brasil e de vários outros países do ocidente democrático. Bastaria uma sanção comercial para poder impor goela abaixo e a contragosto muita coisa que a cultura desses países não aceitam. Não é essa a cultura chinesa, é a do softpower.

Dentro do próprio território, o Partido Comunista Chinês consegue ter um controle bastante razoável da circulação de informação. A liderança mundial em tecnologias de inteligência artificial aplicadas à vigilância torna tudo quase automático.

Já existe hoje na China um sistema de “score social” semelhante a um dos episódios da série Black Mirror. Comportamentos como jogar, falar mal do governo ou abandonar pais idosos diminuem a pontuação. Pontos baixos levam a perda de direitos. Exemplo: comprar passagens aéreas ou de trem.

Milhares de pessoas foram impedidas de fazer viagens porque não tinham score social suficiente. As pessoas também são afetadas pela atitude de familiares. Por outro lado, boas ações e elogiar o governo rendem pontos que garantem descontos em serviços, vagas em melhores escolas e melhores empregos.

Parece assustador para você? E se eu te disser que tem muita gente importante nas democracias ocidentais que também cai nessa tentação?

Vamos começar pelas reações dos próprios chineses ao sistema de controle. Falamos do Partido Comunista Chinês, portanto é natural imaginar que estaremos do lado reprimido, o que perde pontos e não consegue nem viajar de trem. Só que a maioria vê no dia a dia os benefícios do sistema, usufrui deles, sente que a vida é mais fácil.

Nessa reportagem da France 24, é interessante a ordem em que as pessoas são apresentadas. A cidadã modelo não é uma militante comunista aguerrida, é só uma mulher que faz tudo direitinho, paga as contas em dia, recicla lixo, doa sangue. E ela ganha descontos e benesses em várias coisas por isso.

Como convencer uma pessoa nessa situação de que o sistema que a beneficia por ser boa é ruim? Será suficiente mostrar que há uma minoria sendo pisoteada simplesmente porque expressou uma opinião ou reivindicou liberdade individual?

Talvez se a cultura chinesa fosse de democracia seria um resultado automático, certo? Errado. No berço da liberdade, as universidades dos países mais democráticos, há quem feche os olhos para os abusos da ditadura chinesa quando beneficiado.

A China é uma cultura milenar, entende do que é permanente no ser humano, não fica perdida em batalhas presas a uma época específica. Status social, vaidade, dinheiro para pesquisas e reconhecimento falam mais alto que a defesa da liberdade, sobretudo para quem crê na ideia de “democracia garantida”.

No nosso imaginário, a China utiliza toda sua liderança em tecnologia para controlar seus cidadãos fora do país. Não é tão simples e nem necessário. É mais fácil manipular ocidentais a fechar os olhos para arbitrariedades diante dos próprios olhos. Nada é imposto ou forçado, falamos em sedução e concessões de princípios.

Você já ouviu falar nos Institutos Confúcio? São apenas um exemplo. Pesquise. É algo mostrado por universidades do mundo democrático como se fosse um alemão Goethe ou um espanhol Cervantes, com a missão de divulgar a cultura. Ocorre que a Human Rights Watch lançou um alerta mundial depois de detectar violações de direitos humanos e vigilância de cidadãos chineses no exterior.

Apesar da condenação e da indicação expressa para que países democráticos interrompessem essas operações, elas continuam em muitos lugares. A Human Rights Watch avalia que instituições acadêmicas ocidentais não têm o preparo suficiente para lidar com a potência do softpower chinês e o risco de contaminação autoritária é gigantesco.

Estados Unidos, Bélgica, Austrália, Dinamarca, França e Holanda decidiram seguir as recomendações. Não foi apenas o relatório da organização de direitos humanos que provocou as decisões.

O documentário “In The Name of Confucius” mostrou de maneira chocante como o comportamento de acadêmicos ocidentais muda da água para o vinho quando são patrocinados com generosidade pelo Partido Comunista Chinês. Fazer vista grossa a perseguições faz parte do pacote, embora a negociação não seja clara.

Onde fica o maior e mais premiado Instituto Confúcio do mundo? No Brasil. É o Instituto Confúcio Unesp, com unidades em 13 cidades paulistas e 2 em outros Estados. Além das unidades parceiras de Manaus e São Luiz, o instituto está em Ilha Solteira, Presidente Prudente, Marília, Assis, São José do Rio Preto, Jaboticabal, Araraquara, Franca, Botucatu, Bauru, São José dos Campos, Itapeva e duas unidades na capital paulista.

Também há vários outros, em universidades públicas e privadas: Instituto Confúcio na Unicamp, Instituto Confúcio UnB, Instituto Confúcio UFMG, Instituto Confúcio UFRGS, Instituto Confúcio UPE, Instituto Confúcio UFC, Instituto Confúcio UEPA, Instituto Confúcio de Medicina Tradicional Chinesa na UFG, Instituto Confúcio PUC-Rio, Instituto Confúcio FAAP.

Se a liberdade acadêmica fosse um conceito absolutamente inegociável nas democracias, seriam inúteis os esforços do softpower chinês e a tonelada de dinheiro investida nos Institutos Confúcio. Ocorre que relativizamos a liberdade acadêmica, que foi subordinada à militância identitária. Perseguir e calar em nome de um “bem maior” ou “da coletividade” não é mais tabu. Aí é que mora o perigo.

Os casos mostrados no documentário “In The Name of Confucius” jamais seriam possíveis sem a conivência de ocidentais que se dizem democratas. Houve uma escolha deliberada por fechar os olhos para informações internas das universidades vazadas para o Partido Comunista Chinês.

O governo da China pode não ter como atingir cidadãos que conseguiram residência e até asilo em outros países. Ocorre que todo mundo tem família. Professores que denunciaram perseguições acabaram virando alvos dos próprios colegas e destituídos dos Institutos Confúcio no Japão e Canadá.

À medida em que cancelamentos e a lógica da criação de “safe spaces” tornam-se a normalidade, a perseguição a estudantes também não é mais tão chocante. Uma reportagem recente da Pro Publica mostra diversos casos de retaliação a dissidentes chineses em universidades de países democráticos.

A pandemia, infelizmente, ajudou bastante no processo. Aulas e discussões em plataformas online podem ser gravadas. Muito desse material acabou nas mãos do Partido Comunista Chinês, que foi cobrar diretamente das famílias dos estudantes.

Na reportagem, vários deles relatam os apelos desesperados dos familiares para que parassem de falar mal do governo da China, de defender os uigures ou até de prosseguir com os próprios trabalhos de pesquisa.

Grupos organizados de estudantes chineses, que a reportagem e outros estudantes desconfiam ser militantes do Partido Comunista Chinês, usam as mesmas táticas da patrulha identitária. Diante de qualquer reunião em que se critique políticas chinesas, fazem protesto para impedir falas ou cancelar os palestrantes.

Como o ato em si tornou-se corriqueiro, a avaliação dos motivos passa a ser secundária. Acadêmicos são demitidos, impedidos de falar e cancelados pelos mais diversos motivos. Acusações tão infundadas quanto violentas de transfobia, homofobia e machismo são suficientes para que instituições centenárias aceitem censura.

Falar do massacre da minoria Uigur na China seria desmerecer a cultura chinesa, uma espécie de racismo? Talvez cole. O fato é que a censura tornou-se tão corriqueira que os motivos já nem importam mais. Se houver muito barulho, tudo é justificável.

Não há dúvidas de que a China tem maestria em usar a inteligência artificial e as redes sociais para manipular ideias e defender seus interesses. O blog Lawfare, fundado por advogados norte-americanos para proteger as liberdades constitucionais, mostrou recentemente o uso de contas falsas em defesa de interesses do governo chinês.

A realidade é que nada disso pode ser colocado apenas na conta do Partido Comunista Chinês. Ele segue seus princípios, sua moral e sua forma de pensar e coloca à prova os regimes democráticos. E é aí que precisamos estar atentos.

A ilusão da certeza da estabilidade democrática nos faz abrir mão da vigilância, especialmente quando a tentação do status e da vaidade entra em jogo. Nos acostumamos a pensar em Guerra Fria, em jogo de forças bélicas, em subjugar. Ocorre que o tabuleiro agora é outro, inclui o softpower.

A China não conseguiria controlar seus cidadãos que vivem em democracias sem o apoio de cidadãos dos países democratas, muitos deles lideranças que publicamente defendem a liberdade de expressão. Ocorre que efetivamente consegue e tem ajuda não por uso de força, mas por sedução.

Quanto mais a tecnologia avança, mais precisamos entender de gente. Não há dúvidas de que os membros do Partido Comunista Chinês sabem muito bem quais são seus princípios e propósitos. Os democratas ocidentais sabem? Mais do que isso, estão dispostos a defender esses princípios e propósitos? Essas são as questões que estão diante de nós.

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