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Taiwan esquenta a ‘nova guerra fria’ China/Estados Unidos

Paulo Kramer

Paulo Kramer

I.

Apenas 12 dias depois da visita da Presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia) a Taiwan, quando os protestos diplomáticos de Pequim e os disparos, com munição real, dos projéteis do Exército de Libertação Popular no Estreito de Taiwan ainda reverberavam mundo afora, mais uma delegação do Congresso norte-americano aterrissou em visita à ilha rebelde.

Pelosi desembarcou, na primeira terça-feira de agosto, em Taipé, coroando um giro pela Ásia do Pacífico que incluiu Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e Japão. Essa foi a mais importante visita de uma autoridade norte-americana desde 1997, quando o também presidente da Câmara, Newt Gingrich (Republicano da Geórgia) encabeçara missão à República da China, nome oficial de Taiwan. Ela chegou praticamente ‘de surpresa’, pois não havia antecipado publicamente essa última escala em sua viagem. Pelosi encontrou-se com a presidente da república Tsai Ing-wen, com o vice-presidente do Yuan Legislativo (parlamento) Tsai Chi-chang e com grupos de defesa dos direitos humanos; levou a todos eles a mensagem de que os Estados Unidos persistem em sua determinação de preservar a democracia taiwanesa.

Quase ao mesmo tempo, o regime da República Popular da China deu início a uma gigantesca manobra envolvendo o disparo de meia dúzia de mísseis e a mobilização de cerca de 100 aviões, além de submarinos, porta-aviões, destróieres e navios de apoio – enfim, nada comparável ao ‘treinamento’ que teve lugar no estreito de Taiwan entre 1995 e 1996, quando o ELP ainda era uma força mal-treinada com equipamento obsoleto.

Naquele tempo, bastou que os Estados Unidos mobilizassem dois grupos-tarefa capitaneados por porta-aviões a pouco mais de 320 quilômetros da ilha para dissuadir os chineses de continuarem com suas manobras. Agora, a RPC comanda o terceiro maior arsenal nuclear do planeta, e suas forças aérea, terrestre e naval são equipadas com tecnologia comparável à do arsenal do Pentágono. É óbvio que Pequim aguardava um gesto qualquer de Washington, pretexto que veio sob a forma da visita de Pelosi, para dar essa demonstração de força, reafirmando a inabalável intenção do regime comunista de integrar Taiwan, efetiva e definitivamente, ao espaço de sua soberania. Afinal, manobras desse porte não podem ser improvisadas de uma hora para a outra, já que exigem uma complexa integração entre as três forças e um minucioso planejamento logístico. No front diplomático, o chanceler chinês, Wang Yi, considerou a visita uma “provocação política declarada”, em grave violação do “princípio de uma única China” (mais sobre isso na próxima seção deste artigo), o que “fere a soberania chinesa”.

Para Wang, os “Estados Unidos devem parar de tentar obstruir a grande reunificação da China”, pois “Taiwan é parte inalienável do território chinês”. Mal Pelosi embarcou de volta para o seu país, o governo chinês divulgou um “livro branco” (white paper), acusando os Estados Unidos de “solaparem o desenvolvimento e o progresso da China” e afastando o compromisso inicial chinês de não tomar Taiwan pela força, o primeiro documento oficial sobre o assunto – intitulado “A Questão de Taiwan e a Reunificação da China em uma Nova Era – desde a ascensão simultânea de Xi-Jinping à secretaria-geral do Partido. Comunista e à presidência da RPC (a edição anterior era de 2000). Paralelamente, a China também respondeu com sanções econômicas, suspendendo o abastecimento de areia a Taiwan e proibindo a importação de numerosas mercadorias da ilha, principalmente frutas e pescado.

Naturalmente, o governo taiwanês aproveitou o ensejo para também reagir com declarações firmes e manobras militares adrede planejadas. O chanceler Joseph Wu defendeu a soberania de facto da ilha de 23 milhões de habitantes, alertou que Pequim estaria preparando uma invasão e que as ambições geopolíticas chinesas ameaçam outros países da região. De modo a dar consequência concreta a esse posicionamento, as forças armadas de Taiwan dispararam mais de 100 projéteis carregados com munição real no sul da ilha, na proximidade dos exercícios do ELP. Taiwan está separada da província chinesa de Fujian, no continente, por uma distância máxima de 180 quilômetros de mar. Desde o início da Guerra Fria, uma “linha mediana” foi traçada no Estreito de Taiwan com o objetivo de reduzir o risco de conflito armado. Agora, essa linha imaginária foi cruzada várias vezes por 10 navios de cada lado – os chineses tentando cruzá-la e os taiwaneses tentando bloquear esse acesso.

Num calculado jogo de cena e com base nos conselhos dos seus assessores militares, o presidente Joe Biden sinalizou contrariedade com a missão Pelosi, muito embora ele mesmo, em três oportunidades diferentes, já tenha declarado à imprensa que nunca recuará do tradicional compromisso americano com a defesa de Taiwan. Se Biden realmente se opusesse à missão, Nancy Pelosi jamais teria chegado a Taipé a bordo de um jato oficial do governo com escolta da força aérea dos Estado Unidos, providências que requerem expressa autorização da Casa Branca.

A delegação congressual americana mais recente, liderada pelo veterano senador Democrata de Massachusetts Ed Markey, também cumpriu o roteiro de encontros com a chefe de Estado Tsai, com o ministro das relações exteriores Wu e membros do Yuan Legislativo e deve provocar mais uma bateria de exercícios do ELP e indignadas declarações da chancelaria da China.

II.

Três são os documentos diplomáticos que servem de base à One-China policy dos Estados Unidos. O primeiro deles é o “Comunicado de Xangai”, de fevereiro de 1972, anunciado ao fim da histórica visita do presidente Richard Nixon à China. Ele reconhece a existência de uma única nação chinesa, e que Taiwan faz parte dela. Também confirma o interesse dos Estados Unidos em uma solução pacífica da questão de Taiwan pelos próprios chineses, com a promessa norte-americana de, num futuro indefinido, retirar todas as suas instalações militares da ilha.

O segundo documento é o comunicado sobre o estabelecimento de relações diplomáticas Estados Unidos/RPC (janeiro de 1979). Nele, as partes se comprometem a rejeitar a busca por hegemonia na região da Ásia do Pacífico, assim como em qualquer outra região do mundo. O governo norte-americano reitera o compromisso de acatar a noção de que existe somente uma China, o que inclui Taiwan.

O terceiro comunicado, de agosto de 1982, teve sua íntegra desclassificada somente em 2019. O governo Ronald Reagan concordou em não exceder, quantitativa ou qualitativamente, o nível de transferência de armamentos americanos a Taiwan, com o compromisso adicional de reduzir gradualmente suas vendas desses equipamentos e munições. (Essa foi uma resposta positiva ao gesto do regime chinês que, em 1981, declarara sua intenção de buscar uma reintegração pacífica de Taiwan à RPC.)

Ao mesmo tempo que os Estados Unidos reconheciam o regime comunista como único representante ‘oficial’ da China, o Congresso norte-americano votou, e o presidente Democrata Jimmy Carter sancionou, a Lei de Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act), renovando os compromissos de apoiar uma solução pacífica no Estreito de Taiwan, fornecer a Taiwan armamentos necessários à sua autodefesa e resistir a qualquer ameaça à integridade da segurança e do sistema socioeconômico do povo taiwanês.

III.

Qual teria sido a motivação pessoal da visita de Nancy Pelosi a Taiwan? Ao longo de sua carreira política, ela sempre fez questão de apoiar abertamente a luta de regimes democráticos sob ameaça de inimigos ditatoriais. Em 1991, por exemplo, dois anos depois do massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, Pelosi, integrando delegação de congressistas dos Estados Unidos, esteve no local e desfraldou estandarte em apoio ao movimento chinês pró-democracia. Mais recentemente, a presidente da Câmara dos Representantes encabeçou comitiva do Congresso em visita a Kiev, capital da Ucrânia, já durante a invasão russa ao país.

Esses gestos compreendem o ‘legado’ com que a veterana congressista da Califórnia deseja coroar sua trajetória, já próxima da aposentadoria.

IV.

A escalada de tensões China/Taiwan preocupa o mundo inteiro. Por ali transita boa parte do comércio marítimo internacional. Taiwan é líder mundial na fabricação de semicondutores (chips), ingrediente indispensável da economia digital, e o agravamento do conflito deve abalar ainda mais as cadeias globais de suprimento, que não se recuperaram do choque da pandemia e também sofrem com a guerra russo-ucraniana. Muito embora, os analistas militares minimizem a probabilidade de uma invasão da ilha a curto prazo, aumentam os temores de que esses exercícios com munição real se multipliquem, tornando-se o ‘novo normal’ na região, o que, cada vez mais, vai dificultar a distinção entre manobras simuladas e um ataque para valer…

Todos os políticos em Washington, a começar por Biden e Pelosi, continuam a reafirmar a adesão dos Estados Unidos à política da China única. Durante recente visita a Phnom Penh, capital do Camboja, a convite da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), o secretário de Estado Anthony Blinken criticou as manobras do ELP em torno de Taiwan e conclamou Pequim a desescalar suas provocações militares.Reiterou, ainda, que a visita de Pelosi foi pacífica e não representou mudança alguma na política dos Estados Unidos vis-à-vis Taiwan. (Seja como for, no mesmo período daquela polêmica viagem, o porta-aviões USS “Ronald Reagan”, que fica baseado no Japão e transporta helicópteros e caças a jato F/A-18, além de sofisticados sistema de inteligência e vigilância, concluiu visita portuária a Cingapura, e deslocou-se pela região na companhia do cruzador USS “Antietam” e do destróier USS “Higgins”.)

Mas, o que os aliados da China e dos Estados Unidos acham disso tudo? Solidário à China, que se recusa a condenar a invasão russa à Ucrânia, o chanceler Sergey Lavrov ironizou a “estranha lógica” das declarações de Washington sobre a manutenção da política da China única, enquanto a terceira mais alta autoridade dos Estados Unidos visitou Taiwan, em total desconsideração aos interesses de Pequim. A China cancelou encontro de chanceleres com o Japão em protesto contra declaração conjunta do G-7 de que as manobras militares no Estreito de Taiwan eram injustificadas. E, no referido evento da Asean, em Phnom Penh, os chanceleres Lavrov e Wang Yi se retiraram juntos da sala de reunião tão logo o ministro japonês das Relações Exteriores, Hayashi Yoshimasa, começou a discursar.

Em Canberra, a chanceler australiana, Penny Wong, pediu um desanuviamento das tensões, no interesse da “estabilidade” da região. O alto grau de integração da economia mundial faz com que os parceiros dos Estados Unidos e da China torçam por uma desescalada. Enquanto isso, o que mais preocupa o PC chinês, às vésperas do seu 20º Congresso (provavelmente em novembro), que conduzirá Xi Jinping a um inédito terceiro mandato, é o potencial da inquietação social causada pela visível desaceleração da economia. Isso leva o regime a apelar para a exacerbação dos sentimentos nacionalistas e o endurecimento do controle sobre os meios de comunicação tradicionais e as redes sociais, com redobrada repressão a todo tipo de oposição política (advogados dos direitos humanos, ativistas LGBT+ etc).

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