A saga do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, negociado há mais de duas décadas, atingiu um ponto de inflexão decisivo. Em 2025, o bloco sul-americano e Bruxelas enfrentam um verdadeiro “agora ou nunca” antes que a janela política se feche novamente, talvez por tempo indeterminado. A análise do cenário atual aponta para uma negociação complexa, tensa e repleta de contradições, especialmente após recentes diálogos em Bruxelas com as partes envolvidas, algo que acompanhei pessoalmente na Bélgica. A pergunta que paira, portanto, é crucial para o futuro do comércio exterior brasileiro: existe chance de assinatura ainda neste ano e, se sim, o acordo nas condições atuais será realmente bom para o Brasil?
A pressão para fechar o acordo em 2025 é palpável e ditada por um calendário político estrito. O Parlamento Europeu entrará em recesso no final do ano, e os próximos ciclos políticos, tanto na Europa quanto no Mercosul, trazem consigo o risco de uma mudança de prioridades que poderia levar o acordo de volta à estaca zero. Do lado do Mercosul, existe um consenso, liderado pelo Brasil, de que é preciso aproveitar o mandato da atual Comissão Europeia, que demonstrou o máximo empenho na conclusão, antes que o quadro político se altere. O que falta, contudo, é a superação de barreiras protecionistas internas na Europa, frequentemente disfarçadas de preocupações ambientais e sanitárias. Desde o ano passado, o principal entrave não é mais o texto principal de 2019, mas a chamada “Carta Adicional” (Side Letter), proposta pela UE em 2023. Esta carta visa reforçar o compromisso do Mercosul com o Acordo de Paris e introduzir sanções em caso de descumprimento de metas ambientais, sobretudo no que tange ao desmatamento. O Mercosul, em sua resposta, aceitou a maioria dos pontos ambientais, mas exigiu um compromisso recíproco: que a UE forneça apoio financeiro e tecnológico para o desenvolvimento sustentável. A negociação está hoje centrada em achar um meio-termo para esta reciprocidade.
Em meio a essas discussões, o Comitê de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu aprovou, nos últimos dias, uma medida que pode ser o golpe mais duro contra o espírito do acordo até agora. A decisão visa facilitar a adoção de medidas protecionistas contra produtos agrícolas do Mercosul por meio da reformulação das cláusulas de salvaguarda. As cláusulas de salvaguarda existem em qualquer acordo de livre-comércio para permitir que um país suspenda temporariamente a redução de tarifas em caso de um aumento repentino e significativo de importações que ameace seu setor produtivo. A manobra do INTA é sutil, mas perigosa. Primeiramente, propõe-se reduzir o limite para iniciar uma investigação de salvaguarda. Ao baixar o patamar de aumento de importações necessário para acionar a medida, a Europa torna quase automático o bloqueio temporário de produtos sensíveis, como a carne bovina e as aves do Mercosul, mesmo em condições normais de mercado. Em segundo lugar, o novo texto busca encurtar drasticamente o tempo necessário para a aplicação das medidas de proteção. Isso limita a capacidade do Mercosul de se defender ou de negociar soluções antes que as barreiras sejam impostas. Essa ação, vista em Bruxelas como uma forma de aplacar a forte oposição dos agricultores europeus (principalmente franceses), desvirtua o propósito de um acordo de livre-comércio. O que é vendido como uma rede de segurança vira, na prática, uma barreira não-tarifária flexível e de fácil aplicação.
Além das cláusulas de salvaguarda, um ponto técnico que muitas vezes escapa ao olhar do grande público é o impacto das regras de origem. A UE, por meio de seus regulamentos, é meticulosa sobre como um produto do Mercosul deve ser fabricado para ser considerado verdadeiramente “nosso” e, assim, se beneficiar da tarifa reduzida. Em setores complexos, como autopeças e químicos, as regras de origem europeias tendem a ser rígidas, exigindo um alto percentual de conteúdo regional do Mercosul para que o produto se qualifique. Esse rigor burocrático e técnico, somado às novas salvaguardas, pode criar um efeito cascata. Mesmo que a tarifa de importação seja zero no papel, a dificuldade em comprovar a origem, que alimenta a burocracia, ou o risco de ter a tarifa preferencial suspensa, a aplicação da salvaguarda, atua como um desincentivo para as empresas do Mercosul, limitando o potencial de crescimento das exportações. Na prática, a UE está construindo um muro invisível de burocracia e proteção legalista em torno do seu mercado agrícola, enquanto abre as portas apenas onde tem vantagens competitivas claras.
A resposta estratégica do Mercosul a essas manobras europeias deve ser firme, mas pragmática. A estratégia não pode ser simplesmente abandonar a mesa, dada a relevância do mercado europeu e a sinalização que o acordo daria ao mundo sobre a abertura de ambos os blocos. O Brasil precisa insistir que as salvaguardas permaneçam dentro dos parâmetros acordados originalmente e que a reciprocidade na Carta Adicional seja significativa. Um ponto de alavancagem para o Mercosul é o avanço de negociações comerciais com outros grandes blocos, como o Canadá e Cingapura. Esses acordos alternativos dão ao Mercosul a credibilidade necessária para dizer à UE quetemos outras opções. A Europa sabe que, se o Mercosul continuar a se abrir para parceiros que oferecem termos mais justos no comércio agrícola, a relevância estratégica e econômica do acordo com a UE diminuirá. É nesse jogo de xadrez diplomático que o Brasil deve usar sua experiência, transformando a pressão protecionista europeia em um catalisador para exigir um acordo que seja verdadeiramente equilibrado, em vez de uma mera formalização de vantagens assimétricas para o bloco europeu.
A conclusão é inequívoca: um acordo assinado sob estas condições será um acordo de livre-comércio “pela metade” para o Mercosul, onde a UE assegura seus ganhos industriais e tecnológicos, enquanto seu setor agrícola obtém um “seguro” robusto contra a principal vantagem comparativa do bloco sul-americano. O Brasil e seus parceiros do Mercosul devem usar a força de sua posição—o acordo é tão importante para a Europa quanto para o bloco sul-americano—para resistir a esta tentativa de protecionismo velado. O acordo só será bom se for equilibrado, e a abertura industrial brasileira deve ser compensada por um acesso agrícola genuíno e seguro, livre de gatilhos artificiais. O tempo urge, mas a pressa não pode comprometer a qualidade e a equidade do resultado final.


