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Os sofistas, a política e o humanismo de Protágoras
O problema do caráter natural ou convencional daquilo que é considerado justo ou injusto é abordado pela maioria dos sofistas, embora a resposta dada a essa questão não seja sempre a mesma. É quase lugar comum a afirmação de que os sofistas teriam contraposto a lei à natureza, mas apenas Hípias e Antifonte estabeleceram explicitamente essa contraposição[1].
Hípias desvaloriza a lei na medida em que esta se afasta da natureza. Para ele, a natureza une os homens, ao passo que a lei frequentemente os divide. Dessa distinção entre lei natural e lei posta pelos homens, ele tira conclusões importantes que apontam para um ideal cosmopolita e igualitário que será desenvolvido posteriormente no período helenista. Hípias mostra, por exemplo, que as leis discriminatórias que separam os cidadãos de uma cidade e outra ou que dividem os cidadãos dentro de uma mesma cidade não fazem sentido se tomarmos por base a natureza, que iguala todos. Fundamentando-se também na distinção entre natureza e lei, Antifonte radicaliza ainda mais tais concepções, afirmando que gregos e bárbaros são por natureza absolutamente iguais e rejeitando, por conseguinte, discriminações baseadas nas origens[2]:
“O “iluminismo” sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da pólis, mas também o mais radical preconceito comum a todos os gregos acerca da própria superioridade em relação aos outros povos: todo cidadão de qualquer cidade é igual ao da outra e todo homem de qualquer classe é igual ao da outra, porque por natureza todos os homens são iguais entre si.”[3]
Philippe Nemo destaca como característica geral entre os sofistas a consciência de que o nomos “deve ser libertado do jugo da tradição e da sacralidade; que ele pode ser alterado pelos homens, seja criando-o arbitrariamente, seja, ao contrário, modificando-o para aproximá-lo de um padrão ideal[4]”. Werner Jaeger, por sua vez, destaca como aspecto comum a todos os sofistas “o fato de serem mestres da areté política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la[5]”. Enquanto uns, como Górgias, ensinavam apenas a retórica, outros, como Protágoras, iam além de uma educação meramente formal do entendimento e estimulavam o desenvolvimento da totalidade das forças espirituais: “a poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes dessa terceira forma de educação sofística[6]”.
A educação universal almejada por Protágoras é uma educação política, uma vez que, nesses tempos clássicos, a ideia de uma paideia, de uma alta formação é inseparável da ideia de Estado e sociedade[7]. Essa educação para o Estado significa, para Protágoras, educação para a justiça[8].
Vimos que no séc. V Atenas entrava em sua era de ouro, sob a liderança de Péricles, atraindo de toda a Grécia os que se destacavam por serem conhecedores e bons intérpretes das leis. Dentre estes estava Protágoras que, em 444.a.C, já havia sido encarregado por Péricles de redigir a legislação de uma das colônias gregas.
Reconhecido e admirado não apenas por Péricles, mas também por ilustres filósofos da época, Protágoras se ocupa principalmente com aquilo que torna possível a sociedade política e a sua conservação, além de buscar ensinar o decoro e a justiça, virtudes necessárias para que a pólis possa existir da melhor maneira possível.
Protágoras entende a justiça como aquilo que é útil à pólis e o mais útil é a sua conservação, sem a qual não pode existir o cidadão. Não se trata, portanto, de pensar uma justiça absoluta e transcendente, mas uma justiça concernente ao âmbito de uma realidade fenomênica, que se apresenta e se constitui na pólis. Essa realidade com a qual Protágoras se ocupa é a realidade política, que também é a região da doxa, da opinião, donde a importância da lógica, do argumento bem encandeado, ferramentas que os sofistas manejavam muito bem. A virtude política, que torna possível e boa a vida em comunidade, está vinculada à sua utilidade para a própria pólis.
No âmbito da política ou da jurisprudência, a justiça seria alcançada não pelo conhecimento absoluto almejado pela filosofia, mas por uma convergência momentânea de pontos de vista contraditórios. A política, estando mais circunscrita ao âmbito da persuasão que ao da busca da verdade, encontra na retórica seu instrumento. Com a arte da retórica, os sofistas ensinavam a tornar forte o argumento mais fraco, municiando seus discípulos para um torneio de argumentos e contra-argumentos, ensinando-os a crítica e a persuasão.
Com a sua doutrina do homem-medida, Pânton chremáton metron estin ánthropos (“O homem é a medida de todas as coisas”), Protágoras introduz o humanismo no pensamento grego: não são mais o cosmos ou os deuses que estabelecem as leis e os limites, mas o próprio homem.
A interpretação dessa famosa sentença de Protágoras requer alguma cautela. Ao apresentá-la no diálogo Teeteto, Platão a reduz a um relativismo gnosiológico (“o que é para mim é para mim, o que é para ti é para ti.”) e o homem-medida acaba sendo apresentado como o indivíduo, embora não se possa depreender do próprio Protágoras que ele deva ser tomado em outro sentido que não o mais genérico. Segundo alguns especialistas, a particularização do conceito homem no referido diálogo teria sido exposta no interesse das hipóteses metafísicas e teológicas que Platão queria demonstrar.
Essa ressalva é importante porque tê-la em mente possibilita mitigar ou moderar o relativismo de Protágoras, ressaltando os seus aspectos positivos e a importância política e pedagógica dessa valorização do homem. Na política, importa a doxa, a opinião dos cidadãos na medida em que formam consensualmente decisões úteis para a comunidade. O que Protágoras se propõe a ensinar como sendo uma espécie de techné política é a capacidade de conhecer o que é bom – ou seja, o que é útil para a pólis – e de persuadir os cidadãos fazendo com que aquilo que é bom também pareça bom e justo para todos.
Protágoras desenvolve uma pedagogia em consonância com o seu relativismo. O seu ensino focaliza as virtudes necessárias ao bem comum. A realidade que ele busca conhecer e ensinar não é a realidade metafísica do ser, mas a realidade humana, criada pelo homem e transformada por ele. Essa transformação se faz pela educação, ou melhor, por uma paideia, uma formação integral que envolve mente e corpo. A transformação social que assegura a manutenção e o progresso da pólis passa pela formação dos indivíduos segundo o ideal do cidadão.
Essa formação deve ser universal. Os sofistas têm o mérito de iniciar a transição de uma educação privada, limitada à nobreza, para uma educação generalizada, aberta a todos os cidadãos. Com eles, a antiga paidéia aristocrática aproxima-se da moderna educação urbana. Embora o ideal de formação aristocrática baseada na areté guerreira e heroica seja substituído pela areté política, esse novo ideal de formação é extremamente abrangente, implicando um conjunto de exigências física e espirituais.
O posterior conflito pedagógico de Platão com Protágoras se dará em dois níveis. O primeiro é político: Platão tinha uma concepção aristocrática de ensino, enquanto Protágoras tinha uma concepção democrática[9]; o segundo é teórico-filosófico: a sabedoria que sustenta o projeto platônico é de base ontológica, enquanto a sabedoria que sustenta o projeto de Protágoras e dos sofistas em geral é empírica e pragmática. Para quem sente frio, conseguir um agasalho é mais importante do que inquirir sobre a essência do calor e do frio. Há problemas inerentes à vida comum que precisam ser abordados com um tipo de sabedoria prática.
A sofística faz parte de uma tradição tanto de valorização quanto de dessacralização do logos: “O logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento da alma e da cidade[10]”. O sábio sofista é uma espécie de médico: assim como o médico se vale de um medicamento para melhorar o corpo de um homem doente, o sofista se vale das palavras para cuidar um mau estado da alma dos cidadãos. Por meio de discursos eloquentes, o sofista consegue trocar opiniões más e nocivas por opiniões benéficas e úteis, melhorando assim a própria pólis.
Note-se que não se trata de substituir a doxa por uma episteme, como pretenderá Platão. O que se almeja não é substituir a opinião pela verdade, mas uma opinião perniciosa por outra opinião mais sadia. Assim como a recuperação da saúde do corpo pode se dar por métodos radicais (incisões, ablações, cauterizações) ou métodos menos traumáticos (dietas, medicamentos), também a recuperação ou a manutenção da saúde do corpo social pode se dar por métodos violentos (repressões, insurreições, revoluções) ou por métodos lentos e graduais (por meio da persuasão discursiva). A educação sofística transforma a alma do aluno para melhor através do logos e essa transformação se mostra útil, vantajosa e benéfica para a pólis porque predispõe os ouvintes ao acordo necessário para a vida em comunidade.
A política é uma questão de logos. É a controvérsia que possibilita o triunfo da opinião mais vantajosa, que emerge como consenso momentâneo do choque de uma pluralidade de ideias e de opiniões dissonantes. O logos se confunde com a arte política e a polis se constitui na retórica. O que o homem-medida de Protágoras proclama é que a medida do homem está na palavra, e que a vida política encontra nela seu fundamento:
“Polis, logos, sofística: o caráter eminentemente político da sofística é, antes de tudo, uma questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Péricles e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega – que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porque falam, a mesma que Jacob Burckhardt chamará de “o sistema mais tagarela de todos” – teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.”[11]
(continua…)
[1] REALE, História da Filosofia V. I São Paulo: Paulus Editora; 2017. p.79
[2] REALE, p.79
[3] REALE, p.79-80
[4] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, p.104
[5] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego, p. 343
[6] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego p.342
[7] Ibid. p.351
[8] Ibid.p.374
[9] “O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a virtude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente “melhores”, sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, enfim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que democracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística – no final das contas, espantosamente moderna – de desunir ética e política, assegurando, simultaneamente, a democracia.” (CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. São Paulo: Ed. 34, 2005 p.69)
[10] CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66
[11] CASSIN, Bárbara. CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66