No tabuleiro político brasileiro, onde pragmatismo e idealismo colidem com a força de um terremoto, a tentativa de substituir a anistia ampla dos condenados do 8 de Janeiro por um “PL da Dosimetria” revela mais sobre as fragilidades do nosso sistema político do que sobre a busca por justiça ou pacificação.
Articulada por figuras como Aécio Neves (PSDB-MG) e Michel Temer (MDB), a proposta de redução de penas, em vez de perdão total, é um malabarismo político que tenta agradar a todos – e, por isso, corre o risco de não conquistar ninguém. Apesar de não haver vedação expressa na Constituição Federal à anistia para crimes como os do 8 de Janeiro, a manobra enfrenta barreiras jurídicas, políticas e éticas que a tornam um castelo de cartas prestes a desabar.
A proposta original, o PL 2162/23 buscava anistiar integralmente os condenados pelos atos de 8 de Janeiro, uma bandeira bolsonarista que obteve apoio expressivo na votação de urgência em 17 de setembro de 2025, com 311 votos a favor. Era o Centrão em ação: União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que juntos dominam 74% dos municípios pós-eleições de 2024, viram na anistia uma chance de consolidar capital político com a base conservadora.
No entanto, a reunião de 18 de setembro, envolvendo Paulinho da Força (Solidariedade-SP), Aécio e Temer, mudou o rumo: saiu a anistia, entrou a dosimetria – um ajuste de penas que, segundo Paulinho, seria um “meio-termo” para pacificar o país. O resultado? Um Frankenstein legislativo que desagrada tanto a direita quanto a esquerda, enquanto testa os limites da separação de poderes.
Juridicamente, a dosimetria é um terreno pantanoso. Alterar penas já fixadas pelo Judiciário, pode ser interpretado como interferência legislativa na competência judicial, violando o artigo 2º da Constituição. Ainda assim, o governo Lula, em busca de estabilidade, flerta com a ideia, vendo-a como uma ponte para evitar o desgaste de uma anistia ampla.
Os articuladores dessa manobra não ajudam a inspirar confiança. Aécio Neves, outrora gigante do PSDB, hoje luta para manter a sigla relevante. Com apenas 13 deputados, o PSDB é uma sombra do que foi. Michel Temer, por sua vez, mantém alguma influência no MDB, mas o partido está dividido – a votação da urgência revelou uma bancada majoritariamente contrária, apesar do apoio de Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Ambos, Aécio e Temer, são vistos como ecos de um passado político que não ressoa mais com o eleitorado, seja ele conservador ou progressista. Sua tentativa de costurar um consenso soa mais como oportunismo do que liderança.
O Centrão, como sempre, é o fiel da balança. União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que garantiram a urgência do PL, são movidos por pragmatismo puro: apoiam o que rende votos e emendas. Inicialmente simpáticos à anistia, hesitam diante da dosimetria, temendo o veto do Senado (onde MDB e PSD prometem resistência) e a reação do STF. Bolsonaristas celebram o apoio inicial do Centrão, mas já temem um recuo estratégico, enquanto o governo Lula acena com cargos para mantê-los na linha. Essa volubilidade do Centrão é a prova de que a proposta, longe de pacificar, apenas expõe as fissuras de um Congresso que negocia princípios como quem negocia no mercado.
Paulinho da Força, o relator, é a figura mais trágica desse imbróglio. Escolhido por sua proximidade com o STF e histórico de transitar entre lados opostos, ele propõe a dosimetria como “solução de maioria”. No entanto, enfrenta um fogo cruzado: a base bolsonarista, liderada por nomes como Eduardo Bolsonaro e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prepara emendas para restaurar a anistia ampla; a esquerda, com PT e PSOL à frente, rejeita qualquer leniência, chamando-a de “golpe continuado”. Paulinho é alvo de críticas de ambos os lados, e poderá ser voto vencido, um relator sem apoio real, preso entre a pressão do Planalto, a revolta da direita e a intransigência da esquerda.
A dosimetria, portanto, é menos uma solução e mais um sintoma da crise de representatividade do nosso Congresso. Sem uma base jurídica sólida e com articuladores de influência limitada, a proposta tenta apaziguar um país dividido, mas ignora o cerne da questão: a justiça não pode ser negociada em nome da conveniência política. Muito menos quando está em jogo a vida de centenas de pessoas que podem ser alcançadas por essas medidas.
A verdadeira pacificação exige diálogo, não barganhas.