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Foto: Ryan Collerd/AFP

O caminho de Kamala Harris até a derrota

O presidente Joe Biden não estava triste ou preocupado quando falou pela primeira vez após a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Estava era estranhamento risonho. Chegou ao púlpito na Casa Branca com passos rápidos e usando seu indefectível óculos escuro. Falou de forma precisa, sem perder o raciocínio e até deu uma estocada elegante no adversário vitorioso. “Você não pode amar seu país somente quando vence”, disse corretamente. Em nada parecia com o homem frágil e vacilante que foi obrigado por seus colegas a renunciar em sua tentativa de reeleição depois de colapsar cognitivamente durante o primeiro debate com o republicano ainda no começo da campanha.

A estratégia Democrata de trocar de candidato para evitar a humilhação fracassou fragorosamente. E talvez esteja aí a razão do incontido sorriso de Biden. Kamala Harris ficou abaixo da performance do atual presidente, que venceu Trump na eleição de 2020. O resultado negativo, contabilizando derrotadas em todos os estados pêndulos e o melhor desempenho republicano desde 1988, é fruto também uma sucessão de erros elementares. A começar pela própria substituta, que não tinha trajetória política suficiente para almejar o posto.

Por isso, a candidata democrata foi blindada por sua equipe de campanha desde o início. Na média, só concedia entrevistas a veículos considerados alinhados. A exceção foi quando falou para a Fox News, mas não com saldo positivo. Sua pior apresentação, entretanto, veio em terreno considerado seguro por Democratas. Durante uma participação no programa The View, considerado de viés progressista, Kamala disse que não conseguia ter em mente nenhuma discordância em relação às decisões do governo Biden.

Ao invés de se distanciar de um presidente desgastado e imprimir uma expectativa de renovação e de mudança sob uma perspectiva democrata, o que ela fez foi referendar a inflação alta, o caos nas fronteiras e a frágil política externa. Qualquer esforço em apresenta-la como algo diferente esmoreceu.

Além da própria inaptidão, Kamala não conseguiu fazer uma composição política minimamente consistente. Ao invés de escolher para vice o comunicativo e popular Josh Shapiro, governador da disputada Pensilvânia, preferiu Tim Waltz, do tradicionalmente democrata Estado de Minnesota. Shapiro, tido como de centro, foi colocado de lado porque parte da militância não ia gostar de um judeu pró Israel na chapa. E isso diz muito sobre a situação do partido Democrata, sequestrado por grupos políticos identificados com o radicalismo de esquerda.

Kamala não foi a escolha das bases democratas, e sim da elite do partido. Em artigo de julho de 2024 para a Gazeta do Povo, escrevi que “ao contrário de Trump, que tem o apoio de seus correligionários e foi escolhido nas primárias, ela não apenas conserva indicadores periclitantes de popularidade como acabou sendo indicada pela conveniência dos caciques partidários”. Apontei que era “uma candidata da burocracia”, e que “excluindo toda espuma da publicidade voluntária e a torcida travestida de análise política”, sobrava “uma figura comum que está servindo de muleta para um partido que não esconde o medo de perder”. E a derrota veio, tão óbvia quanto poderia ser.

Reunião dos Brics virou cena de filme de James Bond

De certa forma, é irônico que a cúpula dos Brics, no momento em que tem o maior número de integrantes, represente o fracasso definitivo de seu propósito original. O surgimento do grupo remete ao acrônimo constante no notório estudo do economista Jim O’Neill, que propunha a reforma da governança global e a necessidade de incluir Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, países emergentes e com características econômicas semelhantes. Mas, de plataforma de desenvolvimento a coisa foi enveredando por outro caminho, numa tentativa de antagonizar o G7, formado pelas democracias ocidentais.

Em sua última coluna no Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra descreveu o Brics como um “covescote autocrático”. Tendo o ditador russo Vladimir Putin como anfitrião e novos sócios como o Irã, a imagem do encontro parecia saída daqueles filmes do James Bond em que os vilões caricatos se reúnem para discutir seus planos de dominação do mundo. Até mesmo Nicolás Maduro apareceu, trajando o clássico modelito mafioso com sobretudo e chapéu preto.

Não surpreende a descrença de analistas econômicos e políticos com o futuro do grupo. Um dos principais críticos é o próprio O’Neill. “Terei Sr. Brics estampado em minha testa para sempre”, disse para a agência Reuters sem disfarçar a decepção e a melancolia. “A ideia de que o Brics possa ser um clube econômico global genuíno é, obviamente, um pouco equivalente às fadas”, desdenhou.

“Parece-me ser basicamente um encontro anual simbólico em que países emergentes importantes, especialmente os barulhentos, como a Rússia, mas também a China, possam se reunir e destacar como é bom fazer parte de algo que não envolva os Estados Unidos e que a governança global não é adequada o suficiente”, disse O’Neill sobre a reunião dos Brics. Uma reunião, diga-se, em que o barulho é desproporcional ao resultado efetivo. Excetuando-se, obviamente, a reciclagem que fazem da velhas taras anti-americanas e anti-ocidentais

As reclamações do Brics não são infundadas. As instituições geopolíticas criadas após a Segunda Guerra Mundial estão de fato em seu momento de maior desgaste. A inoperância do Conselho de Segurança da ONU é evidência de tal condição. Mas o que os membros do grupo propõe como alternativa?

A ideia de “multipolaridade” é bonita no discurso, mas o que se tem na prática é pressão chinesa para ampliação de seu próprio espaço de influencia. A tal diversidade decisória proposta é um falsete diversionista que não passa de uma agenda internacional deliberada em Pequim.

Maduro não precisa mais de Lula

Não existe vácuo de poder, tampouco espaço de influência deixado em branco na geopolítica. As escolhas do Brasil no curso do malfadado processo eleitoral venezuelano impuseram um alto preço para nossa diplomacia. É possível dizer que o país perdeu influência na medida e quem adotou uma postura pusilânime diante das reiteradas e sistemáticas violações aos direitos humanos praticados pelo regime bolivariano de Nicolas Maduro.

O governo petista, por meio do Acordo de Barbados, tornou-se fiador da eleição. Diante da usurpação criminosa dos resultados, ao invés de Lula endurecer o discurso e mudar de ação, em linha com as demais democracias ocidentais, preferiu permanecer na retórica improdutiva de cobrar a divulgação de atas, mas sem articular qualquer pressão minimamente efetiva. Deu a Maduro o que mais precisava: tempo para se impor pelas armas. E ele o aproveitou, principalmente para perseguir seus opositores e fechar o cerco das liberdades públicas usando como alicerce as Forças Armadas.

Edmundo Gonzales, que unificou a oposição venezuelana, teve de se evadir. E só conseguiu fazê-lo mediante a coação. O reconhecimento da “vitória de Maduro foi condição para que pudesse deixar o país. Foi para o exílio, embarcando num avião do governo espanhol. A cena, típica de ditaduras, foi seguida de reações tímidas do governo brasileiro, que assistiu tudo inerte e incapaz de fazer qualquer gesto de apoio aos perseguidos políticos presos aos milhares. Ao contrário. Ignorando a perseguição aos líderes e militantes oposicionistas, o governo Lula preferiu dar a sugestão indecorosa de se realizar uma nova eleição, ainda que a anterior tenha sido fraudada.

No lugar do Brasil, que ficou preso na inação do governo petista, quem se fortaleceu foram duas potências geograficamente distantes mas crescentemente influentes no âmbito econômico e militar: China e Rússia. Segundo reportagem da BBC com informações do centro de estudos Diálogo Interamericanos, o regime chinês emprestou para a Venezuela cerca US$ 59 bilhões, cifra superior a qualquer outro país da região. Ainda segundo o portal, em 28 de junho, antes da eleição o ditador Xi Jinping declarou que a China e a Venezuela “apoiam-se mutuamente no panorama internacional”.

Além dos recursos provenientes de Pequim, a Venezuela vem num longo processo de militarização e de aquisição de armamentos. O principal fornecedor é a Rússia. Segundo a BBC, a maior parte das compras se deu entre 2005 e 2013, quando o investimento bélico ficou em cerca de US$ 11 bilhões. A capacidade militar do país se traduziu não apenas no fortalecimento das Forças Armadas oficiais mas também das milícias bolivarianas. Com sua capacidade militar ampliada, Maduro chegou a ameaçar o continente com uma guerra ao falar em tomar o território da Guiana.

Na estratégia russo-chinesa de oposição ao ocidente democrático, a Venezuela se tornou um instrumento importante de desestabilização regional numa área de influência geopolítica que deveria ser protagonizada diretamente pelo Brasil e, num espectro mais amplo, pelos Estados Unidos. Maduro tem lastro internacional e não está sozinho. Por isso se sente confiante não apenas em prender e perseguir seus adversários, mas também em escarnecer até seus antigos aliados.. Quem precisa do sorriso de Lula com o dinheiro de Xi Jinping e o arsenal de Vladimir Putin?

Ataque iraniano contra Israel escancara conflito de décadas

O ataque com drones feito pelo Irã contra Israel apenas dá um contorno mais evidente a um conflito que se estende através das décadas. Ele apenas vem sendo travado de forma terceirizada por uma das partes. É de conhecimento notório o financiamento prestado pelo regime dos Aiatolás aos grupos terroristas que tem como objetivo varrer o Estado Judeu do mapa. A ação do Hamas ocorrida em outubro de 2023 ao sul de Israel foi arquitetada com apoio financeiro e logístico de Teerã, que lhe fornece recursos e armamentos.

Um relatório feito pelo site Homeland Security Today, especializado em segurança, aponta o nível de comprometimento do Irã com as atividades do Hamas e de outras organizações sediadas em países como Síria, Líbano e Iraque. Por meio dessa rede, criou-se um verdadeiro cerco a Israel. Segundo a Foundation for Defense of Democracies, o Irã gasta mais de 16 bilhões de dólares anualmente apoiando grupos terroristas e regimes ditatoriais extremistas em outros países. Desse total, cerca de 800 milhões são para o Hezbollah e outros 100 milhões se dividem entre o Hamas e a Jihad Islâmica palestina.

A aproximação de Israel com a Arábia Saudita e outras nações Árabes certamente causou apreensão entre o líderes iranianos, que, temendo o isolamento na região, agiram para tentar impedir a viabilidade dos acordos que estavam sendo desenhados. E nesse particular foram efetivos. A escalada de violência obedece essa lógica, incluindo o ataque do Hamas e agora o envio dos drones. A instabilidade impede o diálogo e obriga Israel a tomar providências que lhe afastam de uma aproximação com países islâmicos.

O Irã justificou seu ataque como uma resposta ao bombardeio israelense ao que seria o consulado do país em Damasco. Na operação militar, ocorrida no início de Abril, as Forças de Defesa de Israel mataram vários membros do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, incluindo Mohammed Reza Zahedi, personagem central na articulação do Irã com a rede de organizações terroristas. As potenciais ocidentais já sabiam que haveria reação, inclusive porque isso fora antecipado pelo próprio Ali Khamenei, líder supremo do Irã. O que talvez não se imaginava era o quão audaciosa ela seria.

As imagens de drones e mísseis sendo interceptados nos céus de Jerusalém é assustadora, ao mesmo tempo que inédita. A cidade que deu origem para três das maiores religiões do mundo sempre foi preservada nos conflitos frequentes que assolama região. Não mais. Se o sistema de defesa de Israel não fosse suficientemente eficiente, o fogo e a destruição se espalhariam no local sagrado, e talvez corpos se avolumassem até mesmo diante do Muro das Lamentações. E isso apenas denota a deterioração das relações geopolíticas no Oriente Médio, que parece caminhar para um conflito muito mais amplo do que apenas na Faixa de Gaza.

As ilusões do Ocidente sobre a força de Putin na Rússia

O número de russos assassinados no Crocus City Hall, uma das principais casas de show em Moscou, ainda não tinha sido devidamente contabilizado quando Vladimir Putin tentou associar o atentado terrorista ao governo ucraniano. Em pronunciamento, o ditador apontou que os responsáveis pelo ataque foram identificados fugindo para a fronteira com o país vizinho. “Tentaram se esconder e se mudaram para a Ucrânia, onde, de acordo com dados preliminares, uma brecha foi preparada para eles do lado ucraniano que pudessem atravessar a fronteira”, disse sem apresentar qualquer prova.

A reação foi imediata. Em resposta, Volodymyr Zelensky chamou Putin de “desprezível”. “Putin e o resto da escória estão apenas tentando jogar a culpa para alguém’, respondeu. Já o assessor presidencial Mikhailo Podoliak classificou as acusações russas como “absolutamente insustentáveis e absurdas”.

Surpreenderia é se o ataque terrorista não fosse instrumentalizado pelo Kremlin para fins de propaganda interna. Ainda que o regime russo tenha sido desmentido pelas autoridades ucranianas e pela imprensa ocidental, isso não faz qualquer diferença dentro do país, onde a liberdade de expressão é comprimida e os meios de comunicação apenas reverberam as posições oficiais do governo. Pouco importa a autoria, que já foi admitida pelo Estado Islâmico. Para Putin o que importa é usar o episódio pra reforçar seu próprio regime contra aqueles que considera os inimigos do país.

Há quem considere que o atentado possa ter algum efeito negativo na imagem de força que Putin ostenta. Líderes russos, afinal, sempre se validaram e impuseram pela demonstração de força, como fica evidente na conduta da família Romanov e dos próprios dirigentes soviéticos. Um atentado dessa magnitude poderia representar um revés ou até levantar dúvidas razoáveis sobre a capacidade de Putin em garantir a segurança interna. Mas parece um cenário pouco provável, ainda mais considerando fatos ainda mais graves ocorridos recentemente.

Nem mesmo a insurgência de Yevgeny Prigozhin e do Grupo Wagner, talvez a maior contestação aberta ao atual regime russo, foi capaz de mudar algo. No primeiro momento Putin até pareceu vacilante, mas logo um acordo foi feito, e depois Prigozhin morreu no que foi classificado como um “acidente aéreo”, em mais uma da série de “fatalidades” envolvendo críticos, opositores ou inimigos do regime.

Com a máquina de guerra financiada com recursos chineses, a oposição encurralada entre as tropas de choque e as prisões na Sibéria, e a expectativa de ficar no poder por mais tempo até do que Josef Stalin, Putin manipula os acontecimentos para reforçar a validade moral de seus objetivos geopolíticos, principalmente a invasão da Ucrânia e a expansão de seu território.

É ingenuidade do Ocidente conjecturar cenários em que Putin é destituído do poder por uma revolução ou vencido em eleições livres. Quanto antes se admitir que o ditador russo será presença inevitável no cenário internacional de médio e longo prazo, melhor será a forma de coexistência, mesmo que num cenário de permanente guerra fria.