Barbas de Molho

Márcio Coimbra

Márcio Coimbra

Foto: Reuters.
Foto: Reuters.

O ditado “colocar as barbas de molho” é uma expressão que significa a necessidade de paciência, cautela e prudência, algo que se aplica de forma perfeita em relação aos últimos acontecimentos na Síria. Ao se despedir de Bashar al-Assad, o país está livre de um ditador brutal. Entretanto, nada garante que o futuro seja auspicioso, especialmente sob o domínio de Abu Mohammed al-Jolani, chefe do grupo islamista HTS, uma dissidência da Al-Qaeda que assumiu o controle do país.

A Síria é formada pela confluência de etnias e grupos religiosos de difícil concertação, dentre eles muçulmanos xiitas, sunitas e alauítas, drusos, além de cristãos e judeus. Cerca de metade dos habitantes do país é de origem árabe, 15% são alauítas, 10% curdos, aproximadamente 10% são levantinos e os 15% restantes pertencem a diversos outros grupos étnicos, como nusairis, armênios e assírios. Um mosaico étnico-religioso de difícil equilíbrio, especialmente em uma região de constante conflito.

A formatação atual nasceu com o fim da Primeira Guerra Mundial, que repartiu o espólio do Império Otomano mediante o acordo Sykes Picot. Esta divisão arbitrária dos antigos territórios otomanos tem sido, desde então, fonte de instabilidade e conflitos na região. O território atual da Síria e Líbano ficou a cargo da França. O mandato francês se iniciou em 1923 e foi até 1946.

A lógica do Império Otomano, que tolerava etnias, povos diversos, tribos, clãs, sistemas de governança de todos os tipos e valores, com a única obrigação de pagar tributos ao Sultão, havia sido extinta. Se durante quatro séculos, cristãos, judeus, xiitas, sunitas, coptas, drusos, gregos ortodoxos, conviviam dentro das fronteiras do Império sem maiores conflitos, existia agora a perspectiva de criação de um país, onde repousavam diversas nações. Uma receita perfeita para o caos.

A lógica francesa acabou por dividir a Síria em seis territórios, Damasco, Alepo, Estado dos Alauitas, Jebel Druzo, Halay e Sadnjak de Alexandreta, uma divisão que tentava, dentro dos limites possíveis, manter a autonomia étnico-religiosa das regiões. O risco da sobreposição de um grupo em detrimento de outros sempre fez parte da história do país e se tornou um perigo contínuo, porém se transformou em uma palpável realidade com a chegada de Hafez al-Assad ao poder em 1971.

O mosaico étnico-religioso do passado é uma realidade ainda mais intrincada no presente, com ainda sérios agravantes, como o enorme êxodo de sírios que buscou refúgio em outros lugares do mundo. O risco está em o país se tornar mais um protetorado islâmico radical como o Afeganistão ou um novo Iraque. O país, defendido por anos por milícias, detentor de bases russas e aliado preferencial do Irã na região, está mergulhado na incerteza e na possibilidade real de guerra civil ou mesmo o massacre de alguma das minorias que fazem parte deste intrincado jogo de poder.

A queda de Bashar al-Assad é certamente o fim de um ciclo de terror, porém, é também o encerramento de um governo laico que conseguiu durante cinco décadas manter os pilares de unidade de um país fraturado. O futuro pode guardar um governo com traços teocráticos, alianças perigosas e a manutenção dos porões de um regime ditatorial. Como disse, a queda de Assad deve ser celebrada, mas é momento de colocar as barbas de molho.  

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