A aprovação do PL da Dosimetria pelo Senado Federal representa um marco político e institucional que vai muito além de um ajuste técnico no cálculo de penas. É, na essência, o reconhecimento explícito de que houve excessos graves nas condenações relacionadas aos atos de 8 de janeiro. E esse reconhecimento, vindo do Parlamento, não é trivial.
É preciso começar pelo básico: dosimetria não é anistia. A dosimetria trata do modo como a pena é calculada, observando princípios constitucionais elementares como a proporcionalidade e a individualização da sanção. Anistia, por sua vez, extingue a punibilidade e é um instrumento político de pacificação social. O projeto aprovado não perdoa crimes, não absolve ninguém e não apaga condenações. Ele apenas corrige distorções evidentes, como a soma automática de penas sobrepostas, a equiparação entre líderes e participantes ocasionais e a aplicação de sanções desproporcionais a réus primários.
Ainda assim, é impossível ignorar a dimensão política do gesto. Ao aprovar a dosimetria, o Congresso admite que o sistema de punição adotado nesses casos ultrapassou limites razoáveis. Quando cidadãos sem antecedentes recebem penas superiores às aplicadas a criminosos violentos, algo está fora do eixo. Corrigir isso não é impunidade; é respeito ao Estado de Direito.
Causa estranheza, portanto, a reação de setores que hoje se colocam radicalmente contra qualquer correção dessas condenações. Muitos desses mesmos grupos e lideranças políticas foram beneficiários diretos de uma anistia ampla, geral e irrestrita no passado, defendida como condição necessária para a reconstrução democrática do país. A Constituição de 1988, inclusive, preservou conscientemente a anistia como instrumento legítimo de pacificação nacional. Negar agora essa possibilidade — ou mesmo demonizar qualquer passo nessa direção — é uma incoerência histórica difícil de justificar.
O PL da Dosimetria não resolve tudo. Ele próprio é reconhecido como um “remédio menor”, insuficiente diante das injustiças flagrantes que marcaram esses processos. Mas, politicamente, abre uma porta relevante: ao reconhecer o excesso, o Congresso sinaliza que o debate sobre a anistia não é ilegítimo, nem antidemocrático. Ao contrário, pode ser parte da solução.
A democracia não se fortalece com punições exemplares voltadas à intimidação política. Fortalece-se com justiça, proporcionalidade e capacidade de reconciliar a sociedade. A dosimetria é apenas o primeiro degrau. A pacificação nacional exige coragem para subir os próximos.


