Marxismo, identitarismo, decolonialismo e o novo antissemitismo

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Protesto contra o antissemitismo na Bélgica — Foto: AFP
Protesto contra o antissemitismo na Bélgica — Foto: AFP

Por esses dias escrevi alguns parágrafos para a orelha do livro do professor Rodrigo Jungmann, que será publicado em breve. No seu ensaio, intitulado “Deturparam Marx?” Jungmann declara que o texto nasce de um “assombro com a popularidade do comunismo entre professores, estudantes, formadores de opinião brasileiros, a despeito de toda a inegável crueldade inerente a esse sistema”. 

Comento, então, que, de fato, esse cenário é preocupante, tanto mais que a justificação da violência revolucionária presente na teoria marxista transmutou-se, dando as caras hoje, por exemplo, como legitimação do terror islâmico num cenário em que palestinos são colocados no papel dos oprimidos da nova era, sendo os muçulmanos, por conseguinte, interpretados e apoiados como novos sujeitos revolucionários para os quais toda “resistência” é legítima.

Tenho refletido e escrito sobre isso desde o dia 7 de outubro de 2023, quando um ataque bestial, grotesco, horrendo, cruel e covarde perpetrado pelo grupo terrorista palestino Hamas contra israelenses/judeus foi festejado pela extrema esquerda como um ato de resistência. Parece-me não ser possível compreender tão odiosa atitude sem ter em mente essa chave de interpretação: os muçulmanos substituíram o proletário do papel de oprimidos. Para que se tenha uma dimensão do que isso significa convém considerar algumas nuances da teoria marxista. Para isso me valho do ensaio acima referido que prefaciei.

Depois de demonstrar, em livro anterior (“Marx e Engels: o que não te contaram”), a existência, na obra de Marx e Engels, de racismo, antissemitismo e homofobia, Jungmann expõe, em “Deturparam Marx”, trechos nos quais ambos defendem a violência extremada e o terror a serviço da causa revolucionária. Os males do comunismo, explica, não contradizem os ditames teóricos do marxismo, mas são sua consequência natural. Isso pode parecer lugar-comum para quem é anticomunista desde criancinha, mas é importante atentar para explicação da justificação da violência extremada e do terror.

Com seu materialismo histórico dialético, Marx julga ter solucionado o enigma da história. Na sua interpretação dogmática, a história é movida incessantemente por uma luta de classes entre opressores e oprimidos. Há, em sua visão de mundo, uma teleologia imanente, incompatível, por óbvio, com a escatologia cristã, perpassada por uma teleologia transcendente. Dito de outra forma, a teoria de Marx é uma religião política que prega a inevitabilidade do paraíso na terra, sob a forma da consumação do comunismo, após, claro, a superação do estágio nada agradável da ditadura do proletariado.

O marxismo, explica Jungmann, “não se apresenta como um conjunto de hipóteses, mas antes como ciência consumada das condições propícias ao advento desse futuro radioso.” Essa pretensão à infalibilidade tem como corolário a intolerância política, afinal, como você acha que se comporta alguém que se julga detentor de uma verdade redentora, acredita que a moral é apenas uma superestrutura ideológica e vê na religião apenas o ópio do povo?

Identitarismo e decolonialismo

Essa mentalidade dogmática, intolerante, revolucionária, fanática ficou um tanto adormecida depois do fim da União Soviética, da queda do muro de Berlim e da constatação factual de que o socialismo só trouxe desgraça à humanidade. À semelhança, porém, de um germe nefasto que permanece latente esperando ocasião de se manifestar, o vírus totalitário encontrou na política identitária da nova esquerda o ambiente adequado para se proliferar.

É para isso que aponta um artigo do escritor português, João Pereira Coutinho, publicado na Folha de S.Paulo, em 7 de outubro de 2024. O artigo trata da “alegria macabra” que sucedeu o pogrom do Hamas contra os judeus um ano atrás. Ele recorda, então, outro atentado terrorista islâmico, o de 11 de setembro de 2001:

Eu ainda me lembro dos dias seguintes aos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001. Das expressões de júbilo que, aqui e ali, aplaudiam Osama bin Laden. Mas eram vozes raras. Não havia multidões nas ruas de Londres, Paris ou Berlim com cartazes do gênero ´I love Al Qaeda´ ou ´Do Atlântico ao Pacífico, a América será livre´.

O que mudou em duas décadas? O que fez com que o vírus do antissemitismo, aparentemente cristalizado, se disseminasse a ponto de termos visto universidades no mundo todo ocupadas por jovens ocidentais dementados, portando orgulhosamente seus keffiyehs, berrando cânticos que pedem a aniquilação de Israel e hostilizando estudantes judeus?

Ecoando a análise do jornalista britânico Brendan O’Neill, Coutinho escreve: “Quando o 11 de Setembro aconteceu, os festejos foram modestos porque não havia ainda um roteiro que os enquadrasse na luta anti-imperialista. Faltava, digamos assim, repertório. Para O’Neill, o roteiro surgiu com a radicalização das ´políticas de identidade´ que se espalharam nos 20 anos seguintes e que começaram a atribuir valor moral a certos grupos de acordo com a cor da pele, o pretenso privilégio e o lugar que ocupam na hierarquia racial”.

Essa radicalização das políticas de identidade, por sua vez, deu-se concomitantemente ao desenvolvimento e grande difusão de outra ideologia radical: o decolonialismo, que nada mais faz do que atualizar a velha dicotomia marxista que lê o mundo pela estreita fórmula de opressores e oprimidos.

No ciclo vicioso da eterna doutrinação, os jovens da atual geração são o produto de uma educação que se esmerou em demonizar o Ocidente, reduzindo a história da civilização ocidental a processos de violência colonizadora por meio da escravização dos povos africanos, do genocídio dos povos indígena ou da subjugação de povos árabes, sempre em favor do privilégio europeu e posteriormente dos interesses norte-americanos.

As revisões do marxismo que firmaram as bases da nova esquerda aposentaram o proletariado como sujeito revolucionário. Foucault, por exemplo, ensinou aos novos esquerdistas que há uma microfísica do poder, que as relações de poder estão por toda parte, invisíveis. No nosso mundo pós-moderno, pós-estruturalista, pós-colonial e pós-verdade não há, pois, sujeito revolucionário, mas discursos revolucionários que criam o tempo todo novos sujeitos.

O novo sujeito revolucionário pode ser qualquer minoria, desde que se ache oprimida por poderes invisíveis, se ache vítima de uma dívida história pela qual exige ser ressarcida ou se sinta ofendida pela sociedade “heteronormativa”, “patriarcal” que não presta culto (ainda) às suas idiossincrasias sexuais.

De modo algum são os pobres de espírito enaltecidos pelo Cristo, nem os desvalidos que o poder dos homens curvou mas que a fé na eternidade enobreceu; são, ao contrário, os que deserdaram da fé cristã para crer somente na violência redentora da política.

Desumanização dos judeus e islamoesquerdismo

O ressentimento está disperso e a falta de uma estrutura de poder visível e palpável contra a qual se insurgir torna indispensável que se eleja um inimigo comum, capaz de homogenizar a vozes estentóricas e revoltadas que bradam contra tudo e contra todos.

O Ocidente, vimos, já havia sido condenado. Mas o que é o Ocidente? Uma tradição moral, jurídica e religiosa; um epopeia espiritual ainda em curso cujas raízes se assentam na fé no Deus de Israel, na razão filosófica dos gregos e no pensamento jurídico de Roma, como belamente explicou o papa Bento XVI em discurso já citado por mim em artigo anterior.

O marxismo, vimos, é uma cosmovisão teleológica materialista incompatível com a teleologia judaico-cristã. Que povo da terra é um testemunho vivo da ação de Deus no mundo senão o povo hebreu, o povo de Israel, os judeus? A resistência, a persistência, a sobrevivência e a existência dos Judeus em Israel é quase a materialidade de uma finalidade que não é desse mundo mas que se mostra no mundo.

Toda política de viés totalitário precisa eleger um inimigo. Por que não os judeus mais uma vez? Basta adaptar um pouco o discurso. Não mais um ódio de raça, por que, afinal, somos antirracistas. Que tal um ódio ao povo disfarçado de ódio ao lar desse povo? Mas como transformar as vítimas do holocausto em carrascos?! Dá-se um jeito. Nada que décadas de revisionismo histórico não resolva.

Por meio das narrativas mais disparatadas, eivadas de contradições, preconceitos, ignorância soberba e má-fé, a intelligentsia esquerdista conseguiu, em algumas décadas, transformar os judeus em brancos privilegiados colonizadores opressores genocidas nazistas. É o que denuncia Frank Furedi no artigo “A desumanização woke dos judeus”:

Do ponto de vista da política de identidade, há pouco espaço para empatia em relação à situação do judeu supostamente hiperbranco. Como supostos possuidores de tanto poder e privilégio, o povo judeu não tem direito ao status de vítima, mesmo quando é brutalizado à vista do mundo. Os pecados cometidos pelo Hamas em 7 de outubro são muito fáceis de lavar quando suas vítimas não são mais consideradas totalmente humanas.

A desumanização dos judeus possibilitada pela retórica identitária casou bem com o antissemitismo islâmico. A autoaversão ocidental à sua própria história após décadas de lavagem cerebral marxista, neomarxista e congêneres possibilitou essa estranha aliança chamada islamoesquerdismo.

Essa aliança, porém, tem os dias contados. No instante em que as forças ocidentais tombarem e os véus e as burkas que cobrem as pobres mulheres no Islã precisarem cobrir as estranhas mulheres trans ocidentais, esta já não será apenas a veste obrigatória, mas a própria mortalha dos incautos que padecerão sob a espada de Allah, após renegarem o Deus justo de Israel e o Cristo compassivo, que sustenta a moral e a liberdade que ainda reina no Ocidente.

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