Suicídio assistido: progresso ou regressão civilizatória?

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

A Assembleia Nacional Francesa aprovou, em 27 de maio de 2025, com 305 votos a favor e 199 contra, um projeto de lei sobre o direito à morte assistida.

Após a aprovação pela Assembleia Nacional, o projeto de lei seguirá para exame no Senado no final de setembro. A Ministra da Saúde, Catherine Vautrin, planeja a adoção final dos textos antes de 2027.

O referido projeto de lei estabelece como critérios de elegibilidade para a morte assistida ser maior de idade, cidadão francês, sofrer de doença grave e incurável em estágio avançado ou terminal, experimentar sofrimento físico ou psicológico constante e ser capaz de expressar sua vontade livremente.

A verificação da elegibilidade para o suicídio assistido passará por um procedimento burocrático que envolve um colegiado com, pelo menos, um especialista na patologia do paciente que decidiu se matar, um cuidador envolvido no tratamento e o próprio médico a quem foi solicitada a “ajuda”.

Via de regra, a administração da substância letal prescrita será feita pelo próprio doente, podendo, entretanto, ser feita por médico ou enfermeiro caso o doente não esteja em condições de fazê-lo.

Até aqui, a descrição objetiva de um projeto que avança na França, como já avançou e se tornou lei em outros países. A partir de agora, algumas reflexões que visam explicitar o absurdo que se disfarça de sensatez e o descaso que se fantasia de compaixão.

O esquecimento de Hipócrates e a perversão da medicina

O Juramento de Hipócrates, uma das tradições mais antigas da medicina, estabelece os fundamentos éticos que orientam a conduta dos médicos desde a Antiguidade. 

Embora reescrito em novas versões – que desvirtuam mais ou menos a força do texto original para fazê-lo palatável à lassidão moral pós-moderna – a essência permanece: o compromisso inabalável com a preservação da vida humana.

Em sua forma clássica, o juramento afirma: “A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte”.

A legalização da eutanásia, assim como a legalização do aborto, conduz, pois, à perversão da medicina, induzindo o médico a macular sua vida e sua arte.

O médico existe para cuidar da vida, aliviando o sofrimento sem jamais antecipar a morte como solução. Prescrever substância letal é inverter o princípio fundamental da medicina, transformando aquele que cura em agente de morte, o que contradiz diretamente o espírito do juramento que ele fez ao iniciar sua jornada.

Embora o projeto de lei que acaba de ser aprovado na Assembleia Francesa permita ao médico ou enfermeiro invocar uma “cláusula de consciência”, toda a comunidade médica se encontrará sob pressão, uma vez que o médico que se recusar à assistência terá por obrigação fornecer à pessoa que decidiu se matar os nomes dos profissionais dispostos a ajudá-la no infeliz intento.

Além disso, o texto do projeto prevê o crime de obstrução do acesso à morte assistida, punível com dois anos de prisão e uma multa de € 30.000, semelhante ao previsto para a obstrução à interrupção voluntária da gravidez (eufemismo usado pelos franceses para se referir ao aborto).

Lembremos de dois casos notórios no Reino Unido em que mulheres foram presas por rezar em silêncio em frente a clínicas de aborto:

Em 6 de dezembro de 2022, Isabel Vaughan-Spruce, diretora do grupo pró-vida March for Life UK, foi presa por rezar silenciosamente fora da clínica BPAS Robert, em Kings Norton, Birmingham. Em fevereiro de 2025, Rose Docherty, de 74 anos, foi presa por segurar um cartaz oferecendo conversa a mulheres em frente ao Queen Elizabeth University Hospital, em Glasgow.

Diante de tal contexto, não é inverossímil imaginar pessoas sendo presas por tentarem convencer doentes terminais a não se matarem.

Recusa coletiva em cuidar dos mais vulneráveis”

Em artigo publicado no jornal francês Le Figaro, o presidente da Ordem de Malta na França, Cédric Chalret du Rieu, argumenta que a aprovação da lei de ajuda para morrer é sintoma “não de progresso ético, mas de abandono, particularmente das pessoas mais isoladas e vulneráveis”.

O artigo denuncia que, em grande parte da França, os cuidados paliativos permanecem inacessíveis: “vinte departamentos carecem de unidades especializadas. O número de profissionais de saúde treinados para apoiar os cuidados paliativos é amplamente insuficiente. Muitos pacientes — e ainda mais aqueles que vivem na pobreza — morrem em condições indignas, sozinhos, com dor, sem apoio ou assistência”.

Diante desse quadro desolador ele coloca a questão: “como uma sociedade pode vir a considerar a morte um ato de compaixão quando não utilizou todos os meios possíveis para aliviar, apoiar e acompanhar”?

Sua crítica ao projeto de lei em vias de ser implementado na França sustenta-se também na constatação de que, em países como Canadá, Bélgica ou um estado como o Oregon, nos Estados Unidos, onde tais medidas já existem, “são os mais frágeis moral e materialmente que estão se autoexcluindo dessa forma radical e definitiva.”

Em um país em que o sistema de saúde não oferece adequado suporte para aqueles que carecem de cuidados paliativos, a possibilidade de morte assistida é muito mais uma política de Estado eugenista do que a opção consciente de um cidadão.

Segundo du Rieu, por mais que se negue, o argumento econômico está subjacente e “abrir um caminho legal para a morte em tal contexto é oferecer uma fuga sem saída para aqueles a quem alegamos não ter mais nada a oferecer. É substituir o dever de sustentar pela facilidade de derrubar”.

Sobre a questão econômica, cito um inquietante parágrafo do artigo “A forma europeia de morrer: sobre eutanásia e suicídio assistido”, de Michel Houellebecq:

“A ficção científica americana escrita durante os anos 1950 e 1960 explorou com um poder impressionante e visionário uma série de questões que agora fazem parte, ou começaram a fazer parte, do nosso cotidiano: a internet, o transumanismo, a busca pela imortalidade e a criação de robôs inteligentes. Para esses escritores, a ideia da eutanásia, concebida como uma solução para os problemas econômicos impostos pelo envelhecimento da população, era um assunto óbvio — quase óbvio demais…”

“Ladeira infinitamente perigosa”

Bispos da Ilha de França, em carta aos parlamentares da sua região, denunciaram a “ladeira infinitamente perigosa” que era a aprovação do projeto de lei sobre a morte assistida.

Segundo eles, os mais vulneráveis ou os mais pobres provavelmente serão “os primeiros a serem persuadidos de que são desnecessários assim que envelhecerem ou adoecerem.”

Com razoabilidade e clareza moral os bispos questionam: “Se o objetivo é proteger os mais fracos entre nós de um sofrimento terrível, por que não recorrer resolutamente, primeiro, aos cuidados paliativos?”

Os referidos religiosos denunciaram também a dificuldade de frear uma estratégia que tenderia, a cada ano, a ampliar gradualmente o escopo da lei e a abrangência da permissão para a eutanásia ou o suicídio assistido.

Várias outras instituições, ONGS e associações profissionais também criticaram o projeto de lei de “ajuda a morrer”. 

O Conselho Nacional Profissional de Psiquiatria da França, por exemplo, alertou que isso causaria um curto-circuito nos sistemas de atendimento a pessoas com transtornos mentais.

O paradoxo é evidente: muitos desses profissionais estão envolvidos há décadas em projetos de prevenção ao suicídio. Com a nova lei, pacientes que sofrem de doenças psiquiátricas graves e persistentes (depressão grave, esquizofrenia, transtornos de personalidade, etc.) poderiam alegar atender aos critérios estabelecidos no texto da lei.

Em carta aberta, os profissionais de psiquiatria argumentaram que um pedido de assistência para morrer, mesmo racionalizado, pode ser uma forma de expressar uma intenção suicida, tornando a morte assistida uma resposta prematura e irreversível a sofrimento que poderia ser tratado. Isso poderia confundir profissionais e entes queridos e dificultar a prevenção do suicídio

Progresso ou regressão?

Para os herdeiros mais radicais do iluminismo francês mais radical, a legalização da morte assistida é o ápice da República, uma liberdade concedida aos cidadãos libertos da religião.

Trata-se, claro, de uma grande falácia. O homem sempre foi capaz de pôr fim à sua vida pelo suicídio, o que demonstra que sempre foi livre para fazer suas próprias escolhas. 

Como escreve Houllebecque, “um suicídio assistido — no qual um médico prescreve um coquetel letal que o paciente autoadministra em circunstâncias de sua própria escolha — ainda é um suicídio”.

A suposta nova liberdade ou novo direito pelo qual os defensores da referida lei militam é apenas a transferência para o Estado do poder sobre o momento derradeiro da vida, momento esse de suma importância que passará a ser planejado e burocratizado pela entidade que, no coração dos ideólogos, ocupou o lugar de Deus.

O que a lei de ajuda a morrer ou qualquer outra lei que normalize a eutanásia ou o suicídio assistido faz é tentar transferir o controle do momento da agonia. Escreve Houellebecq no artigo já citado:

“Em quase todos os países, eras históricas, religiões, civilizações e culturas, a agonia tem sido considerada um aspecto crucial da nossa existência. Quer você acredite ou não na existência de um criador que o chamará à responsabilidade, este é o momento da despedida — uma última chance de rever certas pessoas, de lhes dizer o que talvez nunca tenha dito antes e de ouvir o que elas possam ter a lhe dizer. Interromper esses estertores da morte é ímpio (para aqueles que creem) e imoral (para qualquer pessoa). Este é o consenso das civilizações, religiões e culturas que nos precederam, e é isso que o chamado progressismo está se preparando para destruir”.

O “progresso” buscado por certos progressistas parece não ser outra coisa mais que distanciar a lei civil da lei moral, afastar-se do natural e negar qualquer coisa que aponte para a transcendência de sentido e para o divino.

Sem modelo ideal, sem valor absoluto para o qual tenda ou no qual encontre o seu limite, as leis humanas vão se tornando o laboratório ideal das ideias extravagantes que surgem nas mentes cheias de convicção dos fanáticos das religiões políticas, que encontram no Estado a força necessária para implementá-las.

O Estado que, assim como o médico, deveria ter por função precípua a proteção e a preservação da vida, atribui a si a função de matar, seja um feto indefeso, seja um idoso com um câncer terminal.

Fala-se em liberdade individual ao mesmo tempo em que se pede ao Estado licença para morrer, dando a esse novo Deus mais e mais poder sobre a vida e a morte, desde a fase fetal até o último suspiro.

No entanto, já profetizou Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. 

Se não há na vida humana nenhum sentido que a transcenda, nenhum valor absoluto que impeça a sua aniquilação deliberada por meio da legalização do aborto ou da legalização da eutanásia, não há nada que impeça o Estado de se tornar uma eficiente máquina de matar, levando adiante, sob diferentes pretextos, um projeto eugenista na forma de eutanásia generalizada e suicídio assistido em massa.

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