Em 1983, nos estertores da Guerra Fria, quando o presidente Ronald Reagan lançou a Iniciativa de Defesa Estratégica (logo popularizada pela imprensa como “Guerra nas Estrelas”), o estágio de desenvolvimento da tecnologia armamentista da época ainda estava aquém da aspiração do estadista que passou para a História como o “Grande Comunicador”. Além disso, os custos estimados ultrapassavam as disponibilidades orçamentárias. Hoje, porém, no contexto do recrudescimento da rivalidade entre as grandes potências, Donald Trump retoma essa proposta e promete instalar até o fim do seu mandato uma rede de interceptação de ataques nucleares inimigos, com satélites baseados no espaço e estações terrestres, capaz de proteger o território dos Estados Unidos de mísseis chineses, russos e norte-coreanos.
A tecnologia balística hipersônica que os adversários da América estão desenvolvendo torna as atuais defesas, baseadas no Alasca e na Califórnia e que visam prevenir ataques oriundos da Coreia do Norte, claramente insuficientes. Os Estados Unidos tampouco dispõem de defesa suficientemente eficaz contra drones e mísseis de cruzeiro, que voam a baixas altitudes fora do alcance dos radares.
Para superar essas limitações, Trump assinou, logo no início desse seu segundo mandato, em 27 de janeiro último, uma ordem executiva orientando o establishment de defesa para, entre outras providências, a construção de um ‘escudo’, que, numa referência ao sistema israelense do “Domo de Ferro”, já é conhecido como “Domo de Ouro” (ou “Domo Dourado”). Custo anunciado: 175 bilhões de dólares.
Recentemente, Ucrânia e Israel provaram, na prática, sua capacidade de neutralizar ofensivas balísticas da Rússia e do Irã, respectivamente.
Breve retrospectiva — Na segunda metade do século passado, os sistemas de defesa antimísseis davam seus primeiros passos, mas já atemorizavam os líderes das duas superpotências de então, Estados Unidos e União Soviética, com a perspectiva de uma descontrolada corrida armamentista em busca de mísseis mais modernos e potentes a fim de neutralizar aqueles sistemas. No início da década de 1970, essa preocupação recíproca possibilitou a assinatura dos acordos Start (Strategic Arms Limitation Talks) e ABM (Anti-Ballistic Missiles). Em 1991, esse compromisso foi renovado pelos presidentes Mikhail Gorbachev e George H. W. Bush, com a assinatura do Start (Strategic Arms Reduction Treaty). Este tem prazo de validade até o próximo ano.
De lá para cá, a República Popular da China aumentou seu arsenal nuclear em ritmo acelerado. Segundo estimativas do Pentágono, até 2035, Pequim disporá de 1.500 ogivas nucleares, em comparação com apenas 200 há cinco anos. A Rússia, que tinha 30 mil ogivas nucleares durante a Guerra Fria, deve hoje possuir cerca de 6 mil.
O anúncio do Domo Dourado provocou duras respostas dos adversários da América: russos, chineses e norte-coreanos temem a desestabilização do atual paradigma estratégico, baseado na deterrência (dissuasão) e consagrado na sigla MAD-Destruição Mútua Assegurada, o equilíbrio do terror.
Armas hipersônicas — Chineses e russos estão na dianteira do desenvolvimento de vetores balísticos, capazes de voar a uma velocidade bem superior a cinco vezes a velocidade do som e que podem desviar-se de obstáculos até atingirem seus alvos. Em 2021, a China testou um desses novos mísseis, o qual voou a mais de 15 mil milhas por hora e orbitou em volta do planeta antes de explodir seu alvo em território chinês. Em 2018, o presidente Vladimir Putin já havia revelado ao mundo o programa russo de armas hipersônicas, proclamando orgulhoso que os Estados Unidos não teriam possibilidade de proteger sua costa Oeste desse tipo de ataque. Os hipersônicos da Rússia viam a uma velocidade relativamente mais baixa quando são lançados, e isso facilita a sua interceptação. Já no caso dos ICBMs (mísseis balísticos intercontinentais), a dificuldade para interceptá-los é maior porque seus propulsores o elevam rapidamente à estratosfera. Isso significa que, para detê-los, os Estados Unidos teriam que colocar em órbita satélites cobrindo cada um dos 11 fusos horários porque se estende o vasto território russo.
Quanto à Coreia do Norte, a inteligência militar norte-americana já descobriu que o regime de Pyongyang já possui mísseis de alcance suficiente para atingir o território dos Estados Unidos. O ditador da hora, Kim Jong Un, quer construir vetores que voem cada vez mais longe, carreguem ogivas cada vez maiores e possam ser lançados cada vez mais rapidamente. Em fase ainda experimental estão os drones submarinos portadores de cargas nucleares.
Os Estados Unidos, além das já mencionadas estações no Alasca e na Califórnia, operacionais desde o início deste século, já realizaram testes de interceptação através do sistema Aegis (escudo, em grego) contra mísseis intercontinentais. O sistema também foi usado pelos destroieres da Marinha norte-americana contra mísseis do Irã lançados sobre o território de Israel no ano passado. Versões terrestres do Aegis estão instaladas nos territórios de dois membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan): Romênia e Polônia. De alcance mais curto, mísseis da classe “Patriot” e o sistema Thaad-“Territorial High Altitude Area Defense se acham instalados na Coreia do Sul e em Guam.
Custos — Parcialmente graças às inovações introduzidas pela firma SpaceX, de Elon Musk, os custos de lançamento dos satélites interceptadores caíram hoje dramaticamente (de 30% a 40% em comparação com estimativas de 2004 e 2012, para o desenvolvimento de uma constelação de armas espaciais em condições de derrubar um ou dois ICBMs). De acordo com a American Physical Society, a derrubada de 10 ICBMs necessitaria de 36 mil unidades de interceptação, número que deveria ser multiplicado de várias vezes no cenário de um ataque maciço chinês ou russo. A modernização integral das forças nucleares ofensivas norte-americanas, até 2035, não ficará por menos de 946 bilhões de dólares.
Essa é mais uma razão pela qual, a par das complicações tecnológicas, os experts não acreditam que o “Domo Dourado” possa estar pronto para ser instalado em menos de três anos, como promete Donald Trump. Um os observadores mais pessimistas é Pavel Podvig, pesquisador-sênior do Instituto das Nações Unidas para Pesquisas sobre Desarmamento. Ouvido pelo Wall Street Journal, ele considera que qualquer sistema de defesa antimísseis ofereceria proteção contra, no máximo, 85% dos foguetes lançados pelos inimigos da América, o que, na sua opinião, fomentaria um falso (e perigoso) sentimento de segurança.