O governo Putin acaba de anunciar aumento de 40% na verba para as empresas de comunicação aliadas ao governo em 2021
Quanto custa a máquina de propaganda russa? O orçamento é público, confira.
SEPTEMBER 30, 2020
Estátua de Lênin
Você já reparou que quase todos os especialistas em manipulação nas redes sociais fala em técnicas russas de propaganda? A Rússia é, até hoje, uma campeã mundial no quesito propaganda governamental, uma forma eficiente de manter o regime ditatorial em um território tão vasto, diversificado e com conflitos internos. A prisão mais eficiente não é a que precisa de grades e armas, é a ilusão da liberdade. A frase é fácil de falar, mas difícil de colocar em prática.
Todas as técnicas de propaganda política que muitos costumam chamar de “fake news” e confundir com boatos ou notícias falsas vêm da expertise russa e funcionam muito bem nas democracias. Como o pensamento de quem cresce em uma democracia é focado no conteúdo comunicado e na liberdade de expressão, as pessoas demoram a entender qual é a manipulação feita, a do espaço público. Quando entendem e começam a reagir, é tarde, o estrago já foi feito.
Um exemplo simples é a técnica chamada “firehosing”, que significa algo como “regar com mangueira de bombeiro”. Ela pode ser feita com informações falsas ou verdadeiras, tanto faz, o que importa é o fluxo e ter muito alcance. Eleito o alvo, começa-se a disparar informações desfavoráveis a ele, replicadas para o máximo possível de pessoas com a ajuda de impulsionamento pago às redes sociais e perfis falsos automatizados. Quando o alvo estiver empenhado em explicar uma afirmação, é hora de lançar outra e assim sucessivamente, intercalando verdades e mentiras. O objetivo não é convencer as pessoas do conteúdo das acusações, mas da possibilidade de veracidade, o que já fere de morte a honra do alvo.
Desenvolver e implementar com eficiência técnicas de propaganda política num mundo globalizado custa caro. Este ano somente os 6 canais oficiais pró-governo custaram 102,8 bilhões de rublos, um total de R$ 6.610.286.839,38. Coincidentemente, R$ 6 bi é o valor total destinado pelo Brasil ao socorro de micro e pequenas empresas durante a pandemia. O valor pagaria quase 3 meses de auxílio emergencial a mais de 4 milhões de brasileiros.
Isso não é segredo nenhum, é anúncio feito pelo próprio governo russo por meio da TASS, agência russa de notícias, . Este mês, o Ministério das Finanças informou que, em 2020, foi gasto mais do que o previsto inicialmente para financiar esse sistema e há a previsão de aumentar em 40% o valor no ano que vem. O maior interesse é reformar os estúdios da RT em Moscou e fazer com que a TV oficial de notícias do governo russo, o maior gasto de propaganda, crie um serviço em língua alemã.
Controlar a narrativa da mídia é prioridade para o governo russo, sobretudo em tempos de crise como agora, quando as pessoas podem se revoltar. Mas como isso é possível se todos têm acesso às redes sociais e, com ou sem manipulação, podem ler notícias do mundo todo? Desacreditando qualquer fonte que não seja aprovada pelo governo russo. Isso funciona combinando duas estratégias poderosas contra inimigos do governo: comunicadores de estimação que espalham a propaganda russa e são inflados via redes sociais. Eles ganham bem para dizer o que Putin deseja e o conteúdo é replicado em redes sociais com impulsionamento e automatização. Além de colocar os temas do governo em pauta, o processo acaba legitimando os comunicadores de estimação junto à sociedade russa.
Mas os russos não percebem que estão sendo controlados? A gigantesca maioria não, pensa que vive uma democracia. Na verdade, se implantado com a excelência russa, o sistema de propaganda funciona muito bem em todo lugar cujo povo não faça a menor ideia do que é democracia. Na Rússia, por exemplo, a maioria das pessoas acredita que democracia é ter eleições, transparência das instituições e liberdade de expressão. Os russos não colocam na conta que o controle do governo pelos cidadãos e ausência de controle do cidadão pelo governo são indispensáveis numa democracia, então acreditam viver numa mesmo estando numa ditadura.
Os russos votam, falam o que querem na internet, acessam conteúdo do mundo todo e ainda contam com mecanismos de transparência da mudança das leis, como este site governamental que estimula a conhecer projetos de lei e vigiar contra a corrupção. O governo não leva em conta a opinião das pessoas, o cidadão até acessa dados mas não controla o governo e os dados todos coletados via redes sociais chegam às mãos do governo. Assim, ele tem liberdade mas só dentro dos limites que interessam a Vladimir Putin.
Entenda a mídia financiada por Putin
A menina dos olhos de Vladimir Putin é o Russia Today, canal que mimetiza a estética, a linguagem e a forma de apresentação de canais de notícias internacionais. Tem noticiário 24 horas e é o lar dos comunicadores de estimação do governo russo. Tem serviços de notícias em Russo, Árabe, Inglês, Espanhol, Francês e está estruturando em alemão.
A segunda maior verba é do Canal 1, uma televisão no estilo dos canais tradicionais aqui do Brasil, com espetáculo, entretenimento, ficção, reality shows, programas de auditório e momentos de noticiário. No ano passado, essa televisão deu prejuízo de € 96 mi, o equivalente a R$ 633 mi.
Há ainda um outro complexo de rádios e televisões, a VGTRK, herança da época soviética, que atinge todo o país. Essa é a que o público mais claramente liga ao governo por causa do nome “Companhia Estatal de Transmissão de Rádio e Televisão”. Diversas emissoras de rádio e TV governamentais russas passaram a ser subordinadas a essa marca nos últimos 20 anos. O conglomerado controla 80 emissoras regionais de TV e rádio em todas as regiões da Rússia, o canal informativo Rússia 24, os canais nacionais Russia 1 e Russia Culture, o RTR Planeta (canal internacional de notícias em língua russa), a versão russa da TV Euronews, o canal estatal de internet Rússia e as estações de rádio nacionais Radio Russia, Mayak, Culture e Vesti FM.
A rede Zvezda, “A Estrela”, é o antigo jornal oficial das Forças Armadas Soviéticas, hoje subordinada ao Ministério da Defesa de Putin. Imita também a estética, linguagem e apresentação de órgãos de notícia e tem, além do serviço online, TV e rádio.
Outro órgão importante para o governo Russo e que rendeu a primeira sanção da União Europeia a um jornalista é a holding Rossiya Segodnya, que tem uma TV e vários sites de notícias, todos com serviço de vídeo e podcast: Ria Novosti, inoSMI (dedicado a “traduzir” notícias estrangeiras, e a agência internacional Sputnik, que tem escritório no Rio de Janeiro e serviço em português. O CEO dessa holding é tido na imprensa europeia como “principal propagandista do Kremlin” e sofreu sanções da União Europeia por transmitir propaganda russa como se fosse notícia em seu programa de TV durante o conflito com a Ucrânia.
Finalmente, a mais tradicional de todas, com 113 anos de fundação, a TASS, agência oficial de notícias do governo russo.
Toda essa mídia bancada pelo Estado convive com órgãos de mídia independentes russos, jornalistas independentes, mídias sociais liberadas e canais de imprensa internacionais. Diferente do modelo chinês de propaganda, que controla o acesso à informação, o modelo russo de propaganda mira em minar a credibilidade de quem não é aprovado pelo governo e lançar desconfiança sobre a mídia internacional. Isso funciona manipulando mídias sociais e tendo comunicadores que levam ao público propaganda do governo travestida de informação ou opinião.
A desinformação na mídia pró-Putin
A agência investigativa The Insider, diante da divulgação do aumento de 40% no gasto com mídia pelo governo russo, resolveu fazer uma reportagem mostrando quanto ganham os comunicadores preferidos de Putin. Todos eles são encarregados de mesclar propaganda russa na programação normal, apresentando sempre como se fosse uma opinião, dúvida ou questionamento sobre um fato. São todos muito famosos e queridos do público russo. Também são estrelas conhecidíssimas do projeto europeu que monitora a desinformação, “EU x Disinfo”.
O comunicador mais importante para o Kremlin, além de ter um programa de TV também chefia a agência que traduz a mídia internacional para o russo e a agência oficial Sputnik, a única com versão em português de todo esse esquema. O salário total dele nunca foi divulgado.
Dmitri Kiselev – Дмитрий Киселев apresenta um programa semanal na TV Russa e é o chefe da agência de notícias Russia Segodnya. Sabe-se que ganha o valor de 27 aposentadorias – 4,6 milhões de rublos ou R$ 333 mil por ano – para o trabalho de menor valor, o da TV. Ninguém sabe quanto ele recebe para chefiar a agência de notícias, mas ele é tido como o grande propagandista do Kremlin. É uma tarefa geralmente minimizada no ocidente, que caracteriza essas figuras como “espalhadores de fake news”.
Segundo os especialistas do EU vc Disinfo, os serviços oferecidos por Kiselev são muito mais sofisticados, uma espécie de comunicação estratégica de campanha com licença para mentir. “O que pessoas como Dmitry Kiselyov podem oferecer é um produto, que na superfície pode se assemelhar ao jornalismo, mas é antes uma forma de entretenimento, que um governo pode instrumentalizar em apoio a suas políticas, suas guerras; e, o mais importante, é um serviço que pode ajudar a manter um governo no poder ininterrupto e contínuo”.
O principal poder de Kiselev é sua longa vivência jornalística democrática de acordo com as regras ocidentais. Até o início dos anos 2000, era visto como um jornalista independente, liberal e amigo do ocidente. Trabalhou para a TV da União Europeia fazendo programas em russo, tinha a vida profissional ligada aos órgãos jornalísticos com sede na Ucrânia e, em 2012, foi participante International Visitor Leadership Program em Segurança Internacional do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Em 2013 foi contratado por Putin para ser a mente por trás da gigante Russia Segodnya e se tornou um mago da propaganda do Kremlin.
A principal linha de discurso de Kyselev é repetir em seu programa semanal de televisão que a Rússia pode reduzir os Estados Unidos a cinzas nucleares. Pode parecer grotesco, mas é um tipo de propaganda sofisticado que combina o noticiário das agências com o programa na TV, o canal de YouTube e a manipulação das mídias sociais. Entre as peças de desinformação mais famosas estão:
– A democracia liberal é a religião mais sedenta por sangue no mundo.
– Os Estados Unidos apóiam o terrorismo islâmico em todo o mundo.
– O documentário da BBC sobre a corrupção de Putin é uma peça de propaganda ocidental contra o Kremlin.
– Stálin nunca cometeu os crimes denunciados por seu sucessor, Nikita Kruschev.
– O Holomodor foi uma sabotagem contra a União Soviética.
– Os Estados Unidos criticam a Rússia por motivo de russofobia.
– O historiador russo que acusa Stálin de crimes é, na verdade, um lobista que defende o círculo liberal internacional de pedofilia.
Disfarçar a propaganda do Kremlin como jornalismo e adicionar a manipulação das redes sociais é apenas uma parte da técnica russa. A propaganda também é inserida em programas que mimetizam a programação de entretenimento e humor das emissoras ocidentais. É da mistura entre todos os mecanismos de desinformação que se extrai o resultado. Para o ocidente, no entanto, parece apenas a liberdade de expressão de governistas russos. Democratas focam no conteúdo do que é dito, ditadores focam no método de disseminação e controle da informação.
A entrevistadora oficial do Kremlin é a glamurosa Asker-Zade – Аскер-Заде , namorada do dono de um banco ligado a Putin. Recebe em seu programa Actors artistas e altos funcionários do governo russo, sempre para conversas amigáveis e triviais.
O rei da teoria conspiratória governamental foi estrategicamente colocado na programação da emissora de outro banqueiro amigo de Putin, a RTV, especializada em temas como terraplanismo, discos voadores e outras informações do gênero. Mas Andrey Dobrov-Андрей Добров, a estrela do “Dobrov on The Air” fala de temas mais sérios, como acusar a maior empresa independente de auditoria e consultoria da Rússia, a FBK, de ser chefiada por uma espiã da Grã-Bretanha.
Também há o personagem do político lacrador, Alexei Pushkov-Алексей Пушков, especialista em comentar assuntos internacionais. Ele tem um cargo no governo Putin, já teve representação na Duma e é conhecido por sempre aparecer mitando contra outros países nas notícias oficiais. A chamada mais comum nas reportagens é: “Alexei ridiculariza” o adversário do dia.
O comunicador popularesco de estimação do governo Putin é Vladimir Soloviev-Владимир Соловьев, showman e um dos maiores faturamentos em propaganda da TV, apesar de estar já em decadência. Ficou famoso por dancinhas e mostrar golpes grotescos de caratê durante o programa em que mistura notícias popularescas com propaganda do Kremilin travestida de opiniões fortes. Tem um canal no YouTube muito famoso entre os russos e é considerado uma das principais peças da estrutura de propaganda russa.
O propagandista mais bem pago oficialmente e de forma publicamente declarada pelo Kremlin é um humorista da ala do escracho, Artem Sheinin-Артем Шейнин. Ele recebe 100 milhões de rublos por ano, o equivalente a R$ 7,27 milhões. Entre os adultos, é conhecido como “o homem que corria pelo estúdio com um balde de fezes”. Faz piadas agressivas e de baixo nível e, embora se dirija ao público adolescente e pareça absolutamente imbecil, não tem nada de bobo. É jornalista, serviu no Exército Russo, faz parte da cúpula da TV, de onde já foi diretor e editor de programas. Hoje, é líder de audiência absoluto no país. Entre as informações que circulam no programa estão as pérolas:
– Os Estados Unidos financiaram o laboratório de Wuhan que causou o surto de coronavírus no mundo.
– O coronavírus não existe, é uma manipulação internacional de informação.
– Todas as guerras dos últimos 30 anos no mundo foram causadas pela OTAN e pelos EUA, que são russofóbicos.
Chavões que se repetem
O chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, visitou Cuba esta semana, como informou o presidente do país Miguel Díaz-Canel Bermúdez em sua conta no Twitter. Na agência oficial de notícias do governo cubano, Granma, uma declaração conjunta que você já deve ter ouvido por aí: “os líderes reconheceram que ambas as nações continuam defendendo o multilateralismo, o direito internacional, os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e a cooperação entre os países”. A frase repetida por Bermúdez e dita por Lavrov você também já ouviu por aí: “estamos do lado certo da história”.
As teorias conspiratórias dos propagandistas russos dizem que o país deles pode vencer qualquer país do ocidente em qualquer coisa, principalmente em qualidade de vida e saúde. Há, na verdade, um único ponto em que a Rússia venceu todas as potências ocidentais: propaganda política.
Todos os chavões criados pelos russos, das frases comunistas às patrióticas, você vê repetidos no mundo todo. As teorias conspiratórias preferidas dos comunicadores do Kremlin, como o terraplanismo, também se disseminou pelo mundo ocidental. O método usado por diversos comunicadores governistas na Europa e nos Estados Unidos, de escamotear propaganda no que esteticamente e na linguagem parece ser um programa tradicional de TV ou rádio também tem berço na Rússia. As estratégias e táticas mais conhecidas de manipulação das redes sociais para amarrar toda essa narrativa são russas também.
Os estudiosos da propaganda política dizem que é impossível desmentir essa teia de mentiras. A maioria das pessoas acredita e continuará acreditando mesmo diante de provas do oposto, é só desacreditar a prova ou quem falou. Reconhecer ter vivido no engano é um processo muito mais dolorido e não muito conveniente em uma sociedade como a russa. Os russos estão pagando pela própria prisão ideológica e ainda não parece haver uma força capaz de derrotar a máquina de propaganda do Kremlin.