Em novembro último, durante a cúpula do G20, no Rio de Janeiro, os governos da China e do Brasil assinaram 37 acordos em diversas áreas, como agricultura, mineração, comércio, infraestrutura, ciência & tecnologia etc. A China importa do Brasil minério de ferro, soja, carne e petróleo, entre outras commodities, indispensáveis para a suas indústrias e a sua segurança alimentar. Ela é o nosso principal parceiro comercial, e somos um dos poucos países do mundo com superávit na balança comercial bilateral.
A caminho do Rio, Xi Jinping participou de outra cúpula, a da Apec (Cooperação Econômica Ásia/Pacífico), na capital peruana, lá aproveitando para inaugurar a primeira etapa de construção do Porto de Chancay, distante 70 quilômetros ao norte de Lima. Esse será, dentro de pouco tempo, o primeiro complexo portuário sul-americano, cujo controle é 100% da estatal marítima chinesa Cosco Shipping Co. As obras foram iniciadas há oito anos, e os investimentos totais estão calculados em 3,4 bilhões de dólares. Chancay faz parte da Nova Rota da Seda (NRS), estratégia de interconectividade infraestrutural — transportes, logística, telecomunicações etc — destinada a ajudar a China a se transformar na maior potência mundial. Pelo novo Porto, navios mercantes chineses descarregarão uma infinidade de produtos manufaturados e levarão de volta matérias-primas preciosas como o lítio, o cobre e, também, a soja, inclusive aquela cultivada no Brasil. O complexo em construção permitirá aos cargueiros da China uma economia de tempo (12 dias) e muito dinheiro. Hoje, as mercadorias sul-americanas precisam subir até o México para transbordo em portos como o de Manzanillo antes de serem embarcadas rumo ao “Império do Meio”. A essa vantagem locacional, junta-se outra, igualmente valiosa: o grande calado (profundidade) da baía de Chancay possibilita a ancoragem de supercargueiros com capacidade para 24 mil contêineres.
Em toda a América Latina, a China vem fazendo negócios bilionários e influenciando pessoas importantes, o que deixa preocupados os Estados Unidos, cuja hegemonia na região nunca tinha sido seriamente contestada. Não é de hoje que políticos americanos como o senador Marco Rubio, Republicano da Flórida, que acaba de ser escolhido por Donald Trump para comandar o Departamento de Estado, procuram alertar o establishment e a opinião pública do seu país para o crescimento da influência da República Popular da China — e de sócios menores desta, como a Rússia —, com riscos para o interesse nacional dos Estados Unidos.
Em 2019, na primeira administração Trump, o então secretário de Estado Mike Pompeo acusava a China de usar os projetos e obras da NRS para expandir sua influência não só na América Latina, como também na Ásia, na África e até em países da Europa Ocidental, como a Itália.
Da parte dos governos latino-americanos, considero, à primeira vista, legítimo buscar parcerias econômicas extracontinentais com a finalidade de minimizar carências históricas (materiais e sociais) às quais Tio Sam raramente se sentiu solidário na prática. Ainda assim, penso que a aproximação entre governos latino-americanos e Pequim mereceria ser avaliada com o devido cuidado, uma vez que são cada vez mais frequentes as notícias a respeito de consequências negativas que vários projetos da NRS estão acarretando para os interesses e a própria soberania de outros países.
Laos
O já citado Pompeo declarara que o regime comunista chinês utiliza práticas opacas, predatórias e corruptas de modo a forçar parceiros economicamente mais fracos a contrair dívidas impagáveis, ameaçando-lhes a segurança mediante o controle de infraestruturas críticas (ferrovias, rodovias, portos e usinas de energia elétrica). Pequim, segundo Pompeo, seleciona prioritariamente como seus ‘alvos’ governos que terão dificuldade para honrar os empréstimos concedidos pelos grandes bancos estatais chineses, o que acaba obrigando os inadimplentes a ceder seus ativos aos credores.
O exemplo do Laos, no Sudeste da Ásia, já ficou mundialmente conhecido. Ali, os investimentos totais chineses somam 6,7 bilhões de dólares. Desejoso de modernizar sua precária infraestrutura, o regime comunista daquele pequeno país recorreu ao Eximbank chinês para a construção de uma ferrovia ligando a cidade de Boten, na China, a Vientiane (capital laociana). Paralelamente, o governo tomou empréstimos no valor de 600 milhões de dólares para a construção de usinas hidrelétricas ao longo do rio Mekong. Em 2020, com dificuldade para saldar o financiamento, o Laos teve que ceder 90% das ações de sua empresa estatal de transmissão de energia à China. Hoje, se quiser, Pequim poderá cortar o abastecimento de luz e força a todos os domicílios e empresas laocianos.
Sri Lanka
O governo do veterano ex-presidente e ex-primeiro ministro Percy Mahendra “Mahinda” Rajapaksa foi obrigado a renunciar diante de violentos protestos populares motivados pelo descontrole inflacionário. No poder, Rajapaksa obtivera financiamento do Eximbank da China em valor superior a 1 bilhão de dólares para a construção do porto de Hambantota. Antes disso, o governo da Índia e o Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB) tinham sido sondados, mas ambos recusaram a solicitação do Sri Lanka por duvidarem da viabilidade econômica do projeto. Os chineses toparam a empreitada, mas os cingaleses tiveram que aceitar taxas de juros anuais de 6,3%, muito mais elevadas que as de 3% a. a. do ADB.
A passagem do tempo confirmou as previsões pessimistas quanto à rentabilidade da obra. Em 2017, durante período em que Rajapaksa não estava no governo, o Sri Lanka arrendou Hambantota à China Merchant Port Holdings por 99 anos. Com o 1,12 bilhão de dólares recebido pelo arrendamento, o governo cingalês pagou suas dívidas para com credores ocidentais, mas não conseguiu saldar seus compromissos com a China.
Malásia
Durante a década passada, o então primeiro-ministro Najib Razak teve que recorrer à assistência financeira chinesa para cobrir o desfalque bilionário que Razak e seus parceiros deram contra o fundo soberano 1MDB. Os megaprojetos que o governo malaio de então ofereceu à China incluíam o Anel Ferroviário da Costa Oriental (ECRL); a ferrovia de alta velocidade Bangkok (Tailândia)/Kuala Lumpur (capital da Malásia); um oleoduto; um gasoduto; e a exploração de um território federal com o objetivo de transformá-lo em hub turístico e financeiro.
Pequim, com sempre, quis se aproveitar da frágil situação malaia impondo pesadas condições na negociação dos contratos. A população, cada vez mais descontente com essas condições, com a prática chinesa de importar grandes contingentes de mão de obra patrícia para trabalhar nos projetos e também com as seguidas revelações de corrupção, foi às ruas para exigir a destituição de Razak e a suspensão ou anulação de vários contratos.
O portal independente “BRI Monitor”, que publica dados e informações atualizados sobre as falhas de transparência, regulação e governança dos projetos da NRS, foi a minha principal fonte para este artigo.
Em suas investidas diplomáticas que visam reescrever as regras liberais do sistema econômico e político internacional até hoje sustentado pelo poderio dos Estados Unidos, Pequim usa e abusa de uma retórica pró-desenvolvimento soberano das nações do chamado “Sul Global”. Casos como os que eu acabo de relatar revelam a NRS como estratégia tão-somente voltada a redirecionar a dependência desses países, deslocando-a do Ocidente para a China no comando de um ‘eixo revisionista’ também integrado por Estados párias como Rússia, Irã e Coreia do Norte. Que isso sirva de advertência ao Brasil e a nossos vizinhos latino-americanos hoje hipnotizados pelo vislumbre dos ‘negócios da China’.