Nem só de repressão e censura podem, a longo prazo, viver as tiranias. À falta de mecanismos institucionalizados de ‘legitimação pelo procedimento’ (eleições competitivas, livres e limpas), os regimes despóticos da atualidade precisam ‘entregar’ bem-estar socioeconômico para permanecer em bons termos com os seus súditos. Crises econômicas graves e prolongadas, nesses casos, costumam prenunciar e acompanhar crises de legitimidade política.
Não dá para afirmar que 2023 foi um bom ano para a economia chinesa. A Moody’s, agência de classificação de riscos, rebaixou a nota do país. Ressabiados com o azedamente das relações sino-americanas e descontentes com o arrocho regulatório ordenado pelo Partido Comunista, os investidores estrangeiros se retraíram e passaram a realocar suas operações industriais para países mais amistosos ao Ocidente. O mercado imobiliário se ressente do excesso de oferta, haja vista a derrocada de mega incorporadoras como Evergrande e Country Garden. O elevado endividamento das empresas torna o crescimento cada vez mais dependente de estímulos estatais. O mercado acionário em queda reflete todas essas dificuldades.
Algumas estatísticas compiladas pelo Eurasia Group, prestigiosa consultoria política internacional, revelam, com precisão numérica, o atual sufoco econômico: crescimento negativo do investimento estrangeiro direto no ano passado (-65,09 bilhões de dólares); mercado acionário em baixa (56 pontos em 2023 contra 100,6 pontos em 2018); retraimento significativo no ritmo de construção de novas residências (de 1,411 bilhão de metros quadrados em 2018 para 0,759 bilhão em 2023).
É claro que, no meio do caminho, surgiu a pedra gigantesca da pandemia, impondo uma drástica desaceleração econômica global. Mas, é preciso lembrar também que as esperanças mundiais em uma vigorosa retomada do crescimento chinês em 2023, após Xi Jinping, alarmado com uma onda nacional de protestos populares, decretar um ‘cavalo-de-pau’ na rígida e desastrosa política de lockdown, se frustraram rapidamente. Economistas que, três anos atrás, anteviram que a China ultrapassaria a economia dos Estados Unidos até o final da presente década estão sendo obrigados a refazer suas projeções….
Decadência demográfica – Subjacente a todas essas agruras conjunturais, avoluma-se uma tendência estrutural, severa e duradoura, apontada já há algum tempo por demógrafos chineses e estrangeiros. A população, que já foi a mais numerosa do planeta, parou de crescer e, a longo prazo, vai encolher. Do atual 1,4 bilhão de habitantes, os especialistas preveem que a China ficará com apenas meio bilhão em
2100. No ano passado, o ‘império do meio’ cedeu à Índia o título de país mais populoso do mundo. Nasceram 23 milhões de indianos. Já em 2022, pelo terceiro ano consecutivo, o número de nascimentos na China diminuiu, devendo ficar abaixo de 10 milhões de bebês em 2023. A taxa de fertilidade (1,09% em 2022) é a mais baixa da história do país e muito inferior aos 2,5% filhos por mulher, considerados o mínimo necessário à reposição populacional.
Essa recessão demográfica tem impactos negativos mediatos e imediatos. A curto prazo, por exemplo, empresas que produzem leite em pó, fraldas descartáveis e outros artigos para recém-nascidos chineses, tanto no próprio país quanto no Japão, na Coreia do Sul e na Austrália, sofrem com a queda de seu faturamento. A longo prazo, a força de trabalho decresce, e, com a
fuga aos empregos fabris dos jovens de 16 a 24 anos, a previsão é de um déficit de mão de obra de 30 milhões de trabalhadores já em 2025. Oferta de mão de obra em declínio acarreta aumento dos custos laborais, quer para empresas nacionais, quer para firmas estrangeiras que operam em território chinês. Também por causa disso, cada vez mais fábricas se transferem para países vizinhos, como Tailândia e Vietnã, onde os salários são mais baixos.
Inevitavelmente, no mundo inteiro desde a Revolução Industrial, o próprio sucesso material leva ao amadurecimento da economia, e este à desaceleração. Como isso repercute numa economia como a chinesa? O PIB do país cresceu a um ritmo anual de 10,5% entre 1991 e 2011 e de 6,7% entre 2011 e 2021 (era Xi Jinping). Para 2023, são esperados 5%, e as projeções são de um decréscimo gradual até 3,5% em 2028. Pesquisa da Câmara de Comércio Americana em Xangai, datada de setembro último e noticiada pelo Financial Times em 29 de dezembro, assinala que apenas 52%. dos empresários entrevistados se declaram otimistas quantos aos negócios no próximo quinquênio (o nível de expectativas mais baixo desde 1999).
Círculo vicioso – a população chinesa se vê prisioneira de um círculo vicioso: o pessimismo sobre o futuro da economia desencoraja os casais jovens a ter filhos, e o decorrente declínio da fertilidade compromete a produtividade da economia.
Quando, em 2016, o regime abandonou oficialmente a política do filho único por casal, adotada em 1980 (começo da decolagem impulsionada pelas reformas pró-mercado de Deng Xiaoping, que temia ver as perspectivas de prosperidade afogadas pela explosão populacional), as expectativas eram de um novo baby boom, que, porém, não se materializou. Isso porque cada vez mais mulheres prolongam seu período de educação e se incorporam ao mercado de trabalho, adiando a decisão de casar e optando por ter poucos filhos, ou mesmo filho nenhum.
Até o momento, a reação oficial foi o recrudescimento da propaganda natalista. Em outubro de 2022, como informa o Wall Street Journal de 3 janeiro último, Xi exortou a Federação das Mulheres da China, uma das inúmeras ‘correias de transmissão’ das ordens do partido único aos movimentos sociais, a que apoiasse as iniciativas estatais para reverter a ameaça do declínio demográfico ao crescimento econômico e, portanto, à estabilidade do regime. Grupos de burocratas do partido e do governo percorrem as cidades e os campos proferindo palestras sobre “valores familiares” a fim de incentivar mulheres em idade fértil a ter mais filhos. Governos provinciais e locais organizam eventos de encontros entre rapazes e moças em idade núbil e oferecem incentivos monetários aos jovens que se dispõem a casar. Sem sucesso notável até agora: por falta de demanda, creches e pré-escolas fecham ou reduzem o número de vagas.
Na vigência da política de filho único, o regime atuava de formas menos sutis, multando pesadamente os casais que concebessem mais de uma criança e obrigando essas mães a implantar dispositivos intrauterinos. Agora, o governo dificulta ao máximo o licenciamento de clínicas de procedimentos para evitar a gravidez. Em 1991, 6 milhões de chinesas se submeteram a operações para ligadura de trompas e 2 milhões de chineses foram vasectomizados. Em 2020, esses números despencaram para 190 mil ligaduras e 2.600 vasectomias.
É cada vez mais flagrante o conflito entre a emancipação feminina e o retorno a políticas de valores patriarcais desde a chegada de Xi Jinping ao poder (2012). Pela primeira vez em 25 anos, não há uma única mulher entre os detentores das posições mais elevadas do Politburo.
Xi, hoje apontado como o mais poderoso governante da República Popular da China desde Mao Tsé-tung, deste difere profundamente na chamada questão feminina: Mao desenvolveu uma luta ideológica sem trégua contra o patriarcalismo confuciano, luta que dava destaque à liberação das mulheres dos seus tradicionais papéis domésticos.
Atualmente, o orçamento da Federação das Mulheres destina mais recursos à censura, nas redes digitais, das queixas cotidianas das cidadãs comuns a respeito da dupla jornada de trabalho — profissional, de um lado, e doméstico, do outro, combinando a atenção aos afazeres da casa com a criação dos filhos e os cuidados dos pais e sogros idosos — do que a ações em defesa dos direitos femininos.