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O que é o Ocidente? Ele esqueceu de onde veio?

Gostei do título de um artigo que li recentemente na revista Spiked: “O Ocidente esqueceu de onde veio”. Muito daquilo sobre o quê tenho refletido e escrito de filosofia política e até de política propriamente dita passa por uma tentativa ainda um tanto canhestra de acusar esse esquecimento e lembrar as origens da nossa civilização.

E isso não surpreende uma vez que me entendo politicamente como alguém que defende aquilo que o filósofo francês Philippe Nemo chama, na sua Histoire des idées politique, de tradição democrática-liberal, cuja origem se confunde com a origem da própria civilização ocidental.

Falaremos ainda sobre esse pensador francês. Voltemos, porém, ao referido artigo. Trata-se, na verdade, da transcrição de uma entrevista do editor da Spiked, Brendan O’Neill, com Frank Furedi, autor do livro The war against the past: why the West must fight for its history (A Guerra Contra o Passado: Por que o Ocidente deve lutar por sua história).

Antes de introduzir a entrevista, O´Neill, com a escrita objetiva e incisiva que lhe é característica, faz um diagnóstico do atual estado de coisas:

“Estátuas são derrubadas, museus são esvaziados de seus artefatos, heróis nacionais são difamados como racistas e criminosos. De universidades a escolas primárias, de museus a conselhos locais, as instituições confiáveis para preservar e transmitir a memória histórica estão, em vez disso, travando uma guerra contra ela. As elites de hoje se voltaram decisivamente contra os ganhos da civilização ocidental e buscam pintar seu legado como tóxico”.

Trata-se de uma “virada anticivilacional” e Brendan O´Neill quer saber de Frank Furedi quando começou essa guerra contra o passado.

Segundo Furedi, “começou como um ataque bastante específico e direcionado a coisas como a escravidão na América ou como o Império Britânico se comportou no século XIX ou no início do século XX. Então, de repente, cada dimensão da experiência ocidental se tornou tóxica”, explica o acadêmico húngaro-canadense, acrescentando que, embora isso tenha aumentado em 2020, demorou muito para acontecer e o terreno para eclosão desse antiocidentalismo foi preparado na década anterior.

Memórias alternativas e versão identitária do holocausto

No seu livro, Furedi argumenta que “ao separar a sociedade de seu passado e fazer todo o possível para transformar o passado em uma espécie de área proibida, as pessoas estão esquecendo algumas experiências muito importantes.” Não apenas esquecendo, mas reinventando-as perigosamente, por meio da crianção do que ele chama de “memórias alternativas.”

Uma das memórias alternativas em voga é a versão identitária do holocausto, “aquela em que os judeus desempenham um papel bastante menor e indistinto. Em vez disso, você tem todos os tipos de grupos de identidade sofrendo em uma extensão muito maior do que qualquer outra pessoa sofreu. O Holocausto então se torna esse conjunto, onde diferentes grupos podem alegar que foram suas principais vítimas. Vemos isso na estranha tentativa de “queerizar” o Holocausto”.

Já estamos nos encaminhando, segundo Furedi, para algo imaginado por George Orwell no livro 1984, no qual um homem do Ministério da Verdade afirma que, em 2050, as pessoas não se lembrarão mais de quem foi Shakespeare nem quem foram todos os filósofos importantes:

“Já temos uma situação em que as pessoas não se lembram mais de quem é o verdadeiro Aristóteles, porque nos dizem que ele foi o fundador da supremacia branca. As crianças que vão à escola hoje podem ouvir que Churchill foi um criminoso de guerra. Quando você tem uma visão tão distorcida de um dos maiores ícones da história britânica do século XX, então você não consegue se lembrar muito sobre de onde veio”, conclui o escritor.

Precisamos, pois, ativar a memória da juventude, conectá-la com a notável jornada civilizacional à qual ela se vincula. O primeiro passo para combater o antiocidentalismo reinante é, obviamente, dar a entender o que é o Ocidente e o que estará em jogo se abdicarmos dessa herança cultural e espiritual que nos é própria.

O que é o Ocidente?

Na introdução do seu livro “O que é o Ocidente”, Philippe Nemo sugere que as circunstâncias geopolíticas de hoje reclamam algo como um “discurso à nação ocidental”.

Diante da já sentida crise do Ocidente, faz-se necessário uma tomada de consciência dos valores e ideais que o Ocidente representa. Essa tarefa torna-se mais urgente se considerarmos a hipótese de que, nessa civilização em crise, “foram alcançadas certas figuras do universal cujo desaparecimento ou enfraquecimento afetaria a humanidade como um todo.”

Em uma primeira aproximação, indica o pensador francês, a civilização ocidental pode se definir “pelo Estado de Direito, pela democracia, pelas liberdades intelectuais, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia de liberdade baseada na propriedade privada”.

Nada disso, porém, é natural, “esses valores, estas instituições são fruto de uma longa luta construção histórica”. Tendo isso em vista, e apoiando-se no conhecimento adquirido ao escrever a sua Histoire des idées politiques, Nemo propõe estruturar a morfogênese cultural do Ocidente em cinco acontecimentos essenciais:

1) A invenção da polis, da liberdade perante a lei, da filosofia e da ciência pelos gregos;

2) A invenção do direito, da propriedade privada, da “pessoa” por Roma;

3) A revolução ética e escatológica do cristianismo;

4) A “Revolução Papal” dos séculos XI-XIII, que escolheu usar a razão humana resgatando a ciência grega e o direito romano formulando a primeira grande síntese entre “Atenas”, “Roma” e “Jerusalém”;

5) A promoção da democracia liberal alcançada pelas grandes revoluções democráticas (Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, França, e então, de uma forma ou de outra, todos outros países da Europa Ocidental)

Jerusalém, Atenas e Roma

Essa estrutura apresentada por Philippe Nemo está em consonância com um importante discurso proferido pelo papa Bento XVI, em 2011, no Parlamento alemão. Na ocasião, Joseph Ratzinger propõe “algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito”.

No começo do discurso, Ratzinger já expõe algo fundamental da relação entre política e cristianismo que muitos políticos que se dizem cristãos atualmente andam esquecidos ou simplesmente desconhecem:

“Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação”, explica Bento XVI.

Por outro lado, é preciso considerar que o cristianismo “apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito.” Assim sendo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II a.C., dando-se então um encontro entre o direito natural desenvolvido pelos filósofos estoicos, e os mestres do direito romano. Neste contato, afirma Ratzinger “nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade”.

Nessa época em que a bandeira da defesa dos direitos humanos é frequentemente instrumentalizada por tendências políticas antiocidentais e anticristãs, é importante a recordação do papa de que “desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos”.

O que Bento XVI está explicando é que os teólogos cristãos tiveram um papel decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade quando tomaram posição contra o direito religioso e se deixaram influenciar pela filosofia, “reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação”.

Não convém entrar nos pormenores da sapientíssima argumentação de Bento XVI. Importa-nos mostrar que também ele aponta, nesse discurso, a necessidade de tomarmos consciência desse legado civilizacional que está atualmente posto em xeque:

“Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura”, orienta Joseph Ratzinger.

Os fundamentos da cultura ocidental são fortes o suficiente para resistir aos ataques de que tem sido alvo, desde que tomemos consciência do seu enorme valor e nos coloquemos em guarda na sua defesa.

A civilização ocidental, da qual a cultura da Europa é o reflexo mais visível, “nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma”, diz-nos Bento XVI.

Há tendências político-ideológicas cujos projetos passam pela destruição de cada uma das partes desse tríplice encontro. Isso explica muita coisa, inclusive o ódio a Israel que trouxe uma nova onda de antissemitismo à Europa.

Mas estamos atentos. Aos poucos, vamos resgatar a nossa memória cultural, refazer nosso percurso espiritual, apropriando-nos dos nossos valores e compreendendo que a nossa missão na terra é mais do que destruir tudo para reconstruir do nada.

Precisamos retomar o fio daquilo que de mais alto o ser humano foi capaz de alcançar e precisamos nos guiar pelo que de mais moralmente perfeito nos foi dado mirar.

A civilização ocidental evoluiu moralmente com o olhar voltado para Jesus Cristo. Desprezar esse modelo e renegar o cristianismo é justamente o caminho que aqueles que querem nos destruir estão nos incentivando a trilhar.