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Extrema esquerda: do terror francês ao terror dos nossos dias

A revista Crusoé trouxe como capa da sua edição 323 o tema “Extremo engano”. A oportuna matéria, assinada por Duda Teixeira, apontou o “alarmismo seletivo” da cobertura das recentes eleições legislativas na França: “É imprescindível que qualquer pessoa possa soar o alarme ao identificar alguma ameaça à democracia […] o problema das últimas semanas é que as advertências foram feitas unicamente em relação a partidos políticos da direita, sem qualquer crítica para a esquerda”, escreveu o jornalista.

Embora eu tenha abordado esse tema nos meus últimos artigos, retorno a ele em outra perspectiva, a fim de esboçar um começo de explicação acerca dessa ameaça que vem da esquerda.

A dificuldade em perceber as ameaças reais à democracia começa pela falta de clareza acerca do quê exatamente está sob ameaça. Democracia não é um conceito unívoco. O termo comumente faz referência ao povo como conjunto de cidadãos aos quais cabe o direito de tomar decisões coletivas, mas o modo como se acredita que isso deva se dar remete a posições políticas ou a tradições políticas praticamente opostas.

Embora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, tenha se inspirado na declaração de independência americana, de 1776, o artigo 6 da declaração francesa marca uma diferença importante ao afirmar que “A lei é a expressão da vontade geral.” No ensaio “Sobre a Revolução”, Hannah Arendt chama atenção para essa diferença. Sob o influxo das ideias de Jean-Jacques Rousseau, a lei fora identificada à vontade do povo, enquanto na constituição americana não há essa identificação.

O que isso tem a ver com a nossa discussão sobre esquerda, direita e democracia? É que a tradição política de esquerda está mais próxima da concepção rousseauniana de democracia e, de modo geral, mais vinculada ao pensamento político de Rousseau.

Rousseau e o ideário da esquerda revolucionária

A democracia, para Rousseau, é fundamentalmente plebiscitária. Para ele, a soberania está na Assembleia una e indivisa que institui a lei, que é a expressão direta da vontade geral. A vontade geral, por sua vez, é um conceito paradoxal, que não equivale à soma das vontades particulares coletivamente expressas, mas à soma das diferenças das vontades que se autodestroem. Essa ambiguidade teórica se reflete na recepção ambígua da sua obra, cuja influência é reivindicada tanto por projetos políticos libertários quanto por projetos políticos totalitários.

Além da noção de vontade geral e democracia plebiscitária, há outros aspectos da obra desse inspirador do ideário da Revolução Francesa que marcam a visão de mundo da esquerda. Para Rousseau, foi o estabelecimento da propriedade privada da terra que originou a injusta desigualdade entre os homens.

Desde o momento em que o primeiro homem cercou uma porção de terra e disse “isto é meu” deu-se uma espécie de clivagem entre a idílica idade de ouro na qual vivia o “bon sauvage” e a época civilizada, marcada pela diferença entre proprietários e não proprietários, ricos e pobres, exploradores e explorados.

A partir daí, a história prossegue como um processo de intensificação dessa injustiça. Quanto mais se tem, mais se sente necessidade de explorar. A ideia da exploração da força de trabalho, posteriormente teorizada por Karl Marx, já está, de certa forma, posta por Rousseau. Além disso, há a ideia de que todos os primeiros contratos sociais são injustos e refletem apenas pactos por meio dos quais se perpetua a diferença entre ricos e pobres.

O direito civil, que assegura o direito à propriedade privada, seria apenas a consolidação jurídica da desigualdade. Não haveria, portanto, diferença fundamental entre os tipos de governo: democracias, oligarquias, monarquias: todos seriam formas de manter e aprofundar as desigualdades até o momento em que a sociedade seria refundada por um novo contrato, legitimado pela vontade geral.

O que Rousseau parece mostrar – e que ainda hoje é aceito pela militância radical de esquerda – é que o desenvolvimento histórico da sociedade europeia vai no sentido do aprofundamento da injustiça, da corrupção e da servidão até que esse movimento seja interrompido à força, por uma revolução.

Vê-se que aqueles que hoje se autointitulam progressistas são, na verdade, aqueles que não creem no progresso natural e espontâneo da sociedade; creem, ao contrário, na necessidade da violência para engendrar o progresso.

Robespierre: virtude e terror

Uma importante figura histórica que reivindicou o legado de Rousseau, agindo politicamente inspirado por sua filosofia, foi Robespierre, o líder jacobino, visionário e fanático que fez do fervor revolucionário a sua religião.

Aliás, cá estamos no contexto de surgimento das concepções políticas de esquerda e direita, tão controversas nos dias atuais: durante a Revolução Francesa, os radicais jacobinos, que acabaram por decidir pela decapitação do rei Luís XVI, costumavam sentar-se à esquerda na Assembleia, enquanto os girondinos, que defenderam um Estado descentralizado, a monarquia constitucional e rejeitaram a execução de Luís XVI sentavam à direita.

Robespierre, líder jacobino, liderou um golpe de Estado, apoiado pelos sans-culottes, que desmantelou os girondinos, prendeu os seus dirigentes e formou o Comitê de Salvação Pública, insistindo que o poder supremo deveria emanar da Assembleia e que os ministros deveriam ser meros executores das suas decisões.

Como principal dirigente desse comitê, Robespierre discursou, em 1794: “Devemos sufocar os inimigos internos da República ou perecer com ela; a primeira máxima da sua política deve ser que lideremos o povo pela razão e os inimigos do povo pelo terror […]. Este terror nada mais é do que uma justiça rápida, severa e inflexível”.

Com base nisso, ele iniciou a etapa conhecida como Grande Terror, fase mais sangrenta da revolução, que condenou à morte milhares de pessoas, com a mera justificativa de que o executado era um “inimigo do bem comum.”

Robespierre, também conhecido como “o incorruptível”, defendeu a violência e a repressão como um mal necessário para alcançar uma república justa e pacífica. Com a violência, tentou impôr o seu ideal de uma república democrática e virtuosa. Também é dele a frase: “O terror, sem virtude, é desastroso. A virtude, sem terror, é impotente.”

Violência e libertação

Essa mentalidade revolucionária e totalitária responde por inúmeros crimes contra a humanidade. Do grande terror francês aos Gulags soviéticos, o princípio de uma violência libertadora e emancipatória dirigiu as ações de líderes políticos e seduziu as mentes doutrinadas pela ideologia malsã.

Por mais que mentes mais lúcidas tenham rechaçado a violência política, muitos ainda a aceitam, sendo justamente esse o aspecto que caracteriza o extremismo, o qual foge às balizas civilizatórias que mantêm o conflito político no âmbito do dissenso saudável que reflete o pluralismo de ideias.

Há ainda uma corrente política, inspirada em dada corrente filosófica, que prega abertamente a violência revolucionária. A única diferença é que mudaram os que são considerados opressores (logo, precisam ser destruídos) e aqueles que são considerados oprimidos (logo, precisam ser justificados).

Os novos oprimidos

Como bem notou o filósofo Luc Ferry, no texto “Judéophopie, compreendre la nouvelle donne”, os muçulmanos são os novos proletários.

A guerra Israel-Hamas e a posterior ocupação das universidades ocidentais com idiotas úteis berrando pela aniquilação de Israel com um keffiyeh na cabeça, provam o ponto. Sinwar é o Che Guevara do século XXI.

Essa mudança de foco não começou agora. Em 1972, por exemplo, Jean-Paul Sartre escrevia no jornal La Cause du peuple: “Nesta guerra, a única arma dos palestinos é o terrorismo. É uma arma terrível, mas os oprimidos não têm outra; e os franceses que aprovaram o terrorismo da FLN contra o povo francês também devem aprovar a ação terrorista dos palestinos. Este povo abandonado, traído e exilado só pode mostrar a sua coragem e a força do seu ódio organizando ataques mortais”.

Não causa estranhamento, portanto – embora cause indignação – que um político extremista como Jean-Luc Melénchon, líder do partido La France Insoumise (LFI), tenha minimizado e justificado o cruel, bestial e indefensável ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro.

Jean-Luc Melénchon é um entusiasmado admirador de Robespierre e tem se esforçado para reabitá-lo e torná-lo modelo da nova França que ele quer fundar.

Como bem notou Duda Teixeira, na matéria da revista Crusoé anteriormente citada, o programa da sua campanha para presidente da França, em 2022, incluía a instalação de uma Sexta República: “Citando a Revolução Francesa de 1789, o programa pedia uma Assembleia Constituinte com uma estratégia revolucionária com vistas a uma ruptura profunda e que levaria a uma convulsão democrática.”

A histeria em torno de uma ameaça da extrema-direita, supostamente representada no partido de Marine Le Pen (RN) foi responsável pelo êxito da aliança de esquerda Nouveau Front Populaire (NFP).

Embora o presidente francês, Emmanuel Macron, não esteja minimamente inclinado a cometer o disparate de nomear Melénchon como primeiro-ministro, a dissolução da Assembleia e o tal arco republicado armado contra o Rassemblement National (RN) tornou possível a eleição de 71 deputados da França Insubmissa (LFI), um partido radical, revolucionário e antissemita.

Onde está o extremismo?

Isso quer dizer que a direita radical ou populista não representa uma ameaça à democracia? Qualquer projeto político que destoe das conquistas basilares no que concerne aos direitos humanos e que planeje uma ruptura com a constituição do seu país é uma ameaça. Mas essa ameaça deve ser avaliada a partir de fatos reais e de posturas políticas concretas, sem “alarmismo seletivo”.

No momento em que eu ainda trabalhava nesse artigo, o ex-presidente dos Estados Unidos e atual pré-candidato, Donald Trump, foi vítima de um atentado. No que concerne às minhas convicções políticas, considero Trump, Marine Le Pen, Bolsonaro e outros desse tipo como representantes de um projeto nacional-populista que rejeito. Mas a apresentação política desse projeto é legítima e essas ideias devem ser combatidas com ideias melhores, cuja aceitação ou não se refletirá nas urnas.

O combate ao nacional-populismo de direita passa pelo combate ao negacionismo de quem teima em não ver extremismo na esquerda radical que presta culto à violência.

A França tomba nas mãos da extrema esquerda e do Islã

As redações ao redor do mundo respiram aliviadas, a aterrorizante “extrema direita” não venceu na França. A esdrúxula e incongruente união de última hora entre o campo macronista (Ensemble) e a Nova Frente Popular (França insubmissa, ecologistas, socialistas e comunistas) conseguiu – em uma reviravolta política que o Le Figaro descreveu como “surpresa monumental e um verdadeiro salto no desconhecido” – bloquear a temida ascensão do partido de Marine Le Pen. A barreira contra o Rassemblement Nationale deu certo, mas lançou a França no colo da extrema-esquerda.

Como assim extrema esquerda? Existe isso? Existe e acabou de obter uma grande vitória na França. Mas ela só existe no mundo real, não consta no vocabulário de boa parte dos jornalistas, que fizeram reserva de mercado das expressões “extrema”, “ultra” e “radical” para o outro lado do espectro político.

O cronista Eduardo Affonso se referiu a esse estranho fenômeno como um processo de “mexicanização da política e da linguagem”. Onde deveríamos encontrar reportagens ou análises políticas, encontramos comentário de novela mexicana:

“Mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho)”, escreveu Affonso.

Niilismo

Eu não tenho esse talento para escrever crônica, não possuo essa irreverência inteligente capaz de apontar o nó cego de uma questão séria, de modo leve, e fazer rir. Há certo peso na minha escrita. Ela é um pouco sombria. O mundo que vejo é sombrio. É um mundo que não percebeu que por trás da perda de sentido da linguagem está uma perda real de sentido, um niilismo que está gradualmente sendo substituído por novas ideologias, por novas religiões políticas.

E aqui não pretendo afirmar que aquilo que estão chamando hoje de “extrema-direita” seja a resposta adequada a essa crise. A própria direita política, inclusive a brasileira, parece não ter consciência de si nem do peso da sua história. Entendem-se como cidadãos de bem, belos e morais, esquecendo-se da quantidade de mal que a tentativa de introjetar na estrutura política e administrativa do Estado uma concepção moral absoluta já causou.

O que me parece é que, à esquerda e à direita, há muitos que já não identificam suas próprias raízes nem trazem consigo a consciência histórica dos males que a radicalização desses posicionamentos trouxe à humanidade.

Filosofia, política e linguagem

Um dos problemas básicos da filosofia tem sido o estudo da relação entre o ser e a linguagem ou a coisa e seu significado. Se atentarmos para isso, veremos que muitos problemas filosóficos poderão ser resolvidos com uma análise da linguagem, o que não reduz o escopo da filosofia, uma vez que o que resta como problematizável após a depuração dos falsos problemas é justamente aquilo que cumpre analisar com o rigor filosófico de quem se debruça sobre o real e não sobre o discurso.

O discurso político é o mais problemático do ponto de vista de uma abordagem filosófica porque faz parte do político o manuseio conceitual inadequado para fins de poder. Conjugado a isso, tem-se ainda a ambiguidade própria dos conceitos aí formulados, que não possuem a rigidez epistemológica de uma definição própria das ciências “não humanas”, nem a objetividade pretendida por aqueles que querem impor sua ideologia.

Faz parte do jogo político essa pretensão e essa ambiguidade, mas também faz parte do esforço de compreensão tentar limpar o terreno discursivo antes de tratar os problemas, deixando claro que os conceitos da ciência política não são estáticos nem unívocos.

Palavras como democracia, esquerda, direita, fascismo, liberalismo, conservadorismo, etc. não têm como referente algo fixo, com propriedades imutáveis, mas a própria experiência humana. Há uma experiência originária fundante do próprio conceito, que precisa servir de referência, mas há também as oscilações posteriores de significado, que se relacionam com as novas experiências históricas e com a história do uso que se faz do próprio conceito em questão.

“O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia”, escreveu Hannah Arendt no prefácio à sua obra Origens do totalitarismo.

Não se trata de direita e esquerda. Ambas descambaram nos regimes totalitários. Trata-se do ser humano e de sua dignidade. Pouco importa se um ou outro lado do espectro político arvora-se retoricamente defensor dessa dignidade. Nesse momento decisivo, pouco importa o discurso, mas a ação concreta, a oposição firme e não ambígua a tudo aquilo que é indefensável porque fere a humanidade na sua dignidade.

A extrema esquerda intolerante e antissemita

O mais proeminente e o mais radical dos líderes da aliança da esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, foi o grande vitorioso dessa eleição.

Mélenchon, que em certa ocasião chegou a bradar “La République, c’est moi!”, discursou logo após os primeiros resultados, exigindo que o presidente Emmanuel Macron chame a Nova Frente Popular para formar o governo. Segundo ele, após a vitória do NFP, Macron deve “sair, ou nomear um primeiro-ministro das nossas fileiras”. A aliança, disse ele, “está pronta para governar”.

Jordan Bardella (RN), por sua vez, lamentou que o resultado da votação tenha jogado “a França nos braços da extrema esquerda”.

O Rassemblement National não chegou ao poder dessa vez, mas ainda reúne um terço dos eleitores e suas pautas principais continuarão a se impor. A direita populista continuará forte na França e no mundo porque as pessoas se saturaram da hipocrisia de uma esquerda que segue à risca intelectuais amorais como Herbert Marcuse que, no texto “Repressive Tolerance”, negou o valor universal da tolerância para pregar literalmente “intolerância contra os movimentos da direita e tolerância aos movimentos da esquerda.”

Desde 7 de outubro de 2023 essa hipocrisia deixou de ser apenas estúpida para se tornar repulsiva. A esquerda, que retoricamente afirma estar do lado dos mais fracos, tolerou, justificou ou comemorou o pogrom bestial perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense.

A França, outrora palco da revolução em meio a qual os conceitos de direita e esquerda adquiriram seu significado político, sucumbiu, mais uma vez, ao radicalismo quando achou que seria uma boa ideia unir esquerda e extrema-esquerda antissemita numa “Nova Frente Popular”.

Essa aliança de extrema-esquerda, que saiu vitoriosa nessas eleições devido à renúncia de muitos candidatos macronistas em favor de candidatos da NFP que pudessem vencer o RN, foi firmemente rechaçada pelo que restou de inteligência, bom senso e idoneidade moral na França.

Em um manifesto no qual tentaram contrapor o universalismo humanista ao sectarismo de uma esquerda identitária e tribalista, os signatários do “arco republicano contra o antissemitismo” apelaram aos franceses para não votarem na “nova praga vermelho-marrom, não votar nesta mentira, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´, uma verdadeira impostura em circunstâncias tão trágicas.”

Percebam que o ponto de atenção do referido manifesto não é Marine Le Pen, o seu jovem pupilo Bardella, ou o seu partido Rassemblement National. A ameaça não é a tal “extrema-direita” que deixou as redações em polvorosa. Os signatários do manifesto sabiam que a hora era grave e a situação perigosa porque uma nebulosa político-ideológica antissemita estava avançando, distorcendo concepções, tornando-se cúmplice do terrorismo islâmico e aliando-se àqueles que querem “impor a sharia obscurantista”.

Enxergar isso e lutar contra isso seria o dever de uma consciência realmente humanista e autenticamente democrática ou republicana. Diante da urgência dessa luta, como afirma o manifesto, esquerda e direita perdem sua relevância conceitual, são posições secundárias. Só existe esquerda e direita dentro da política democrática, que é uma invenção ocidental; em uma República Islâmica só existirá a vontade do aiatolá, que é a vontade de Alá.

Islamo-esquerdismo é um fascismo

O próprio filósofo francês Michel Onfray, um dos signatários desse manifesto, autor de mais de cem livros, já explode em si mesmo a falsa ideia de que esquerda e direita são conceitos estáticos e suficientes para dar conta de fenômenos políticos e de pessoas em constante transformação.

Ele, que já se autointitulou um “socialista libertário não liberal” e já foi descrito como “puritano hedonista”, “revolucionário dândi” e outros paradoxos, parece fazer parte hoje daquele time de ateus que reconhece o valor incontornável da civilização judaico-cristã e que, por isso, insiste em defender o Ocidente contra seus inimigos internos e externos. “Hoje você tem o direito de ser antissemita, racista, homofóbico, misógino, desde que seja em nome do Islã”, denuncia o filósofo, que hoje se entende como um “conservador de esquerda” ou um “anarquista conservador”.

Seja como for, o prolífico autor tem sido uma das poucas vozes lúcidas na luta atual contra as loucuras do identitarismo woke e do islamo-gauchismo (islamo-esquerdismo) que assola a França. As recentes declarações e publicações de Michel Onfray têm o condão de desmontar a ideia preconcebida de que o ódio aos judeus é exclusividade da extrema-direita.

Em artigo que publicou no jornal Le Figaro logo após o ataque bestial de 07 de outubro, ele explica como o antissemitismo, que sempre esteve presente na esquerda, retornou com grande força por trás do antissionismo de fachada:

“Mélenchon, e os da LFI e do NUPES que o seguem, herdam este antissemitismo de esquerda. Depois da Shoah, não podemos mais ser antissemitas à moda antiga, somos agora antissionistas; a mudança semântica permite-nos vestir a velha podridão com um novo casaco. A incapacidade em que esta esquerda se encontra de chamar de terrorista um massacre em massa de populações civis inocentes, mulheres, idosos, crianças incluídas, por serem judeus, o que constitui um crime contra a humanidade, acrescenta um capítulo à história do antissemitismo de esquerda. Normal que, não querendo ver essa infâmia entre eles, afirmem encontrá-la entre Marine Le Pen, culpada de ser filha de seu pai!”, escreveu Onfray no referido artigo intitulado “O islamo-esquerdismo é um fascismo.”

E concluiu:

“Marx fez da vanguarda esclarecida do proletariado a elite destinada a impor a sua ditadura; Lenin queria que esta vanguarda fosse constituída militarmente como um partido. […] Mélenchon substitui o proletariado messiânico pela população composta pela delinquência periférica, pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pelo niilismo dos black blocs, pelo jihadismo dos subúrbios que anda de mãos dadas com a misoginia, a falocracia e, claro, o antissemitismo. Ele acredita que está explorando isso; mas ele é de fato quem está sendo instrumentalizado.

Os apoiadores jihadistas não querem saber de mulheres cisgênero, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, casais de lésbicas, transições transexuais, barrigas de aluguel, saladas de quinoa, turbinas eólicas e bicicletas elétricas da pequena burguesia

Nupesiana. Este braço que Mélenchon arma para seus fins pessoais se voltará contra ele quando chegar a hora. Nestas horas terríveis, os judeus seriam os primeiros a serem sacrificados. E, portanto, a França com eles”.

Como se vê, alguns filósofos, por insistirem em lidar com o real por trás dos discursos, acabam sendo capazes de conceber discursos proféticos.

França: triunfo nacional-populista e ameaça extremista à esquerda

O resultado final do primeiro turno das eleições legislativas franceses confirmou o favoritismo do partido de direita Rassemblement Nacional, que obteve 33,15% dos votos, seguido da aliança de esquerda Nouveau Front Populaire (NFP), que obteve 27,99% e da coligação presidencial (Ensemble) que ficou apenas na terceira posição com 20,76%. Em seguida vêm ainda os Republicanos (LR) com 9,7% e outros vários candidatos de direita com 10,23%.

Na véspera dessas eleições, vi um trecho de vídeo no qual o sociólogo e escritor Demétrio Magnoli comentava sobre a ascensão do partido de Marine Le Pen e sobre a possibilidade do RN chegar ao poder:

“Normalmente, os observadores, comentaristas, a imprensa se referem ao partido de Le Pen, o Rassemblement Nationale ou Reunião Nacional como um partido de extrema-direita. Eu vivo criticando isso, porque é inércia intelectual. Como o partido foi de extrema-direita, continua-se a qualificá-lo como sendo de extrema-direita. Ele deixou de ser um partido de extrema-direita, ele se tornou um partido da direita nacionalista”, comentou Magnoli, descrevendo na sequência as ações de Le Pen que efetivaram essa mudança.

A observação dele é pertinente, por isso me surpreendi um pouco com os inúmeros comentários reprobatórios que acompanhavam o vídeo, compartilhado na rede social X do canal no qual a observação do sociólogo foi feita: “ele é um partido de EXTREMA-DIREITA, mas o Demétrio Magnoli quer saber mais”, escreveu um perfil com a arrogância expressa em letras garrafais; “Como pode essa pessoa ter voz na televisão? De um baixo nível intelectual e flerta demais com o fascismo” registrou outro; “Como vocês não vão demitir, não assistirei mais”, desabafou outra, e assim por diante, provando que a inércia intelectual não é apenas dos jornalistas, mas do telespectador e leitor também.

O que disse na televisão, Magnoli também explicou em texto, no artigo “Le Pen rompe o cordão sanitário”. Como ele lembra, a mudança de nome do Front National para Rassemblement National foi acompanhada de um redirecionamento ideológico expressivo. Quatro anos após assumir o controle do partido, Marine Le Pen expurgou o próprio pai, Jean Marie Le Pen, admirador de Pétain, um general colaboracionista. “Eu tenho vergonha que ela carregue meu nome”, declarou em 2015 Jean Marie Le Pen a propósito de Marine; “Será ele ou eu”, declarou Marine a propósito de seu pai, no mesmo contexto.

“O jornalismo continua a qualificar a RN como ´extrema direita´ ou ´ultradireita´. É um erro analítico grave, que decorre de preguiça intelectual ou vontade de externar um repúdio moral (ou da mistura de ambos), tornando inexplicável sua ascensão eleitoral. Extremistas buscam destruir as instituições políticas. Le Pen ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto justamente porque desistiu do extremismo, refundando a RN como partido da direita nacionalista”, explicou o sociólogo no referido artigo.

A desdemonização do partido de Le Pen

Um dos fatores que explicam a ascensão eleitoral do RN é justamente o processo de “desdemonização” iniciado por Le Pen. Partindo de uma base inicialmente homogênea, com eleitores de perfil antissistema que exigem políticas radicais em matéria de segurança e identidade, o RN foi evoluindo por etapas na medida em que se desradicalizava em alguns pontos específicos.

Como Demétrio Magnoli oportunamente destacou em seu texto, Le Pen mudou quase tudo no programa partidário, desistindo do extremismo e refundando o RN como um partido de direita nacionalista.

Nesse processo, ela abrandou as hostilidades em relação à União Europeia, distanciou-se de Putin, deixou de defender a deportação em massa passando a se concentrar nas políticas de controle do ingresso de imigrantes e fez um importante gesto ao homenagear em texto o general e presidente Charles de Gaulle, além de depositar flores na Cruz de Lorraine, na praia da Normandia onde De Gaulle pisou o solo francês em junho de 1944.

Mais recentemente, a duas semanas das eleições europeias, o RN oficializou a ruptura com o partido aliado no Parlamento Europeu, o AfD, após declarações de cunho nazista de um dos representantes do partido alemão.

Tudo isso possibilitou a normalização do partido e uma conquista parcial dos eleitores da direita clássica. Muitos que jamais teriam votado no Front National de Jean Le Pen afirmam que agora é diferente.

Mais correto do que dizer que o eleitor francês se radicalizou para um extremismo à direita seria dizer que o partido que estava no extremo desse espectro se remodelou e ampliou seu eleitorado dando respostas firmes à ideologia política que se fortalecia no extremo do outro espectro político.

Constatar isso não equivale a fechar os olhos para o problema de uma direita nacionalista. O programa do Rassemblement national tem aspectos protecionistas e pontos antiliberais preocupantes, mas fica difícil compreender um fenômeno que não se nomeia bem e é preciso compreender aquilo que se quer confrontar.

O primeiro cuidado para a correta compreensão de um fenômeno é tentar usar conceitos de modo adequado. Se o objetivo é entender por que a direita nacional-populista (Le Pen, Donald Trump, Giorgia Meloni, etc) está em ascensão, convém, como já sugerimos em artigo anterior, abrir mão do uso de expressões pouco rigorosas e abusivas como “extrema direita” ou “direita fascista”, que servem mais como xingamento de adversários políticos do que como ferramenta de análise.

Mais importante do que rotular ou estigmatizar partidos e eleitores é entender por que cada vez mais pessoas estão optando por votar dessa forma.

Wokismo, islamismo-esquerdismo e a Nova Frente Popular

As questões que, hoje, mais estruturam a opinião na Europa, de modo geral, e na França, em particular, giram em torno de identidade, secularismo, Islã, imigração e segurança. São esses fatores que motivam o francês a ir votar e são esses fatores que dividem e polarizam as posições, cada vez mais radicalizadas, à direita e à esquerda.

Pouco antes da esmagadora derrota, no Parlamento Europeu, das forças centristas de Emmanuel Macron para o partido de direita Rassemblement National, o seu presidente, Jordan Bardella, organizou o seminário “perigos do wokismo”, repetindo o tema do workshop ministrado por ele no ano passado, sedimentando, assim, a ideia de que se trata de um tema de primeira ordem para o RN.

De fato, em 2023, os deputados do RN criaram uma “associação parlamentar transpartidária contra o wokismo” visando combater a “escrita inclusiva” (uso do gênero neutro), a “propaganda LGBT nas escolas”, a “questão transgênero no esporte” e outros pontos polêmicos da agenda identitária de esquerda.

Esse tema, muitas vezes desprezado por analistas, está inegavelmente movimentando o tabuleiro político. Enquanto alguns se contentam em rotular de reacionários e conservadores aqueles que se preocupam com a expansão da chamada “ideologia de gênero”, outros transformam essa preocupação em capital político.

No seu seminário, porém, Jordan Bardella incorre no erro de considerar o wokismo uma “neurose importada.” Como bem destaca Nicholas Vinocur, editor geral do site Politico.eu, foi a própria França que lançou as bases para a ideologia Woke que agora parece liderar uma revolução global. Conforme lembra o articulista, o “wokismo, que os franceses adoram odiar, remonta a sua genealogia intelectual aos intelectuais franceses da década de 1960.”

O “movimento woke” enquanto mobilização por meio da popularização de ideias politicamente progressistas sobre gênero, raça e imigração pode ser remetido aos Estados Unidos, mas há uma ligação direta entre a ideologia woke, tal como incorporada nos campi universitários dos EUA, e a teoria pós-colonial francesa:

“Embora a ideologia woke seja um fenômeno americano, seus ancestrais nos movimentos pós-coloniais e de teoria de gênero – incluindo escritores como Judith Butler e Edward Said – estudaram com intelectuais franceses e foram fortemente influenciados pelas ideias de esquerda da França de década de 1960. Filósofos franceses como Jacques Derrida, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault tornaram-se os favoritos do campus nos Estados Unidos”, escreve Vinocur.

O wokismo não se limita à questão de gênero. Trata-se de uma ideologia iliberal que faz parte de um quadro ético maior dentro do qual os sistemas de poder são baseados em identidades opressoras tais como “branquitude”, “patriarcado”, “colonialismo”, “heteronormatividade”, “transfobia”, etc. Essa concepção de que, quer queiramos ou não, somos estruturalmente racistas, sexistas ou transfóbicos é herança do pensamento pós-moderno e, mais especificamente, de Michel Foucault.

Foucault, que idealizava a construção de locais para “orgias de suicídio” onde aqueles que quisessem se matar poderiam se drogar e gozar à vontade antes da “experiência-limite”, Foucault, o hedonista autocentrado que admirava Marquês de Sade e o psicopata Pierre Riviere, foi também um ardoroso defensor da revolução iraniana, cujo êxito significou o estabelecimento de uma teocracia na qual ele como homossexual e bon-vivant seria sumariamente eliminado; uma teocracia que, além de oprimir seu povo (especialmente as mulheres) é uma das maiores ameaças atuais à manutenção da liberdade e da democracia no mundo.

O impulso transgressor desse pensamento paradoxal, rebelde, perturbador e quase demoníaco está presente de modo difuso na sociedade francesa e está se expressando política e partidariamente como aliança entre progressistas woke e fundamentalistas islâmicos, fenômeno que os franceses têm chamado de “islamo-gauchismo” (islamo-esquerdismo).

“O problema do Islã como força política é um problema essencial para nossa época e para os anos que virão”, profetizou Foucault em carta à revista Le Nouvel Observateur, em 1979, após sua segunda e última visita ao Irã.

Não é de estranhar, portanto, que logo após a divulgação do resultado do primeiro turno das eleições legislativas, nesse domingo, 30 de junho, militantes de extrema-esquerda tenham saído às ruas, vandalizando prédio e monumentos e misturando gritos contra o RN com gritos pela intifada, misturando bandeiras do LFI (La France insoumisse) com bandeiras da Palestina.

A Nova Frente Popular é o maior risco

As manchetes dos jornais brasileiros que abordaram as eleições na França continuam com o mantra do perigo da chegada ao poder da “extrema direita” e silenciam sobre o risco da chegada ao poder da extrema-esquerda. Aliás, eu não lembro de ter lido em qualquer veículo a expressão extrema-esquerda. No entanto, ela está aí, dando uma nova roupagem ao antissemitismo, disfarçando-o de antisionismo. Mas lá fora, felizmente, há quem veja as coisas como elas realmente são.

Em artigo assinado em conjunto, Jean-Philippe Feldman, professor de direito e advogado do Tribunal de Paris e Nicolas Lecaussin, diretor do Iref (Instituto de Investigação Econômica e Fiscal), alertaram que a vitória da aliança capitaneada pelo partido do extremista Jean Luc Mélenchon seria mais perigoso para o país do que o programa do RN; em editorial do jornal Le Figaro, Vincent Trémolet de Villers afirma que essa Frente de “indigenistas, arquivos S, apologistas do terrorismo, detratores obsessivos de Israel põe em causa os próprios princípios da República Francesa” e em manifesto intitulado “O arco republicano contra o antissemitismo”, 30 intelectuais, dentre os quais os filósofos Luc Ferry e Michel Onfray apelaram para que os franceses não votem “nesta mentirosa, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´”.

Como alguém da área de Filosofia, já um tanto cansada do ranço ideológico autoritário, partidário, mesquinho, intolerante e infantil que grassa há tempos na academia, li esse belo, duro e oportuno manifesto com certa emoção. Senti-me representada e, por isso, concluo meu texto com algumas de suas palavras, que agora faço minhas, recomendando, porém, a leitura do texto integral:

“[…] Unicamente a nossa consciência filosófica e moral, aqui abençoada com a força inalienável de um imperativo categórico na sua mais alta e nobre expressão, dita-nos nesta hora crítica, fora de qualquer espírito partidário ou escolha maniqueísta, contra qualquer interesse particular e pelo bem geral: Jamais faremos pacto com antissemitas, nem racistas de qualquer espécie!

Nunca nos aliaremos aos pró-Hamas, cúmplices sanguinários do terrorismo islâmico, nem aos anti-Israel, a única verdadeira democracia nesta região particularmente instável do mundo, e onde demasiados países, teocracias fanáticas de outra época, praticam novamente, inclusive contra qualquer progresso real pela causa das mulheres, a sharia obscurantista.

Nunca trairemos a nossa consciência como humanistas autenticamente democráticos, nem venderemos covardemente os nossos ideais por cálculos medíocres e vis de cozinha de base eleitoral. […]

O futuro da nossa democracia, da nossa cultura e da nossa civilização, no âmbito do concerto das nações, está em jogo.”

Quem é Simone Weil, filósofa cobrada no “Bac”, o ENEM francês?

Nesta terça-feira, 18 de junho de 2024, mais de 500 mil jovens franceses se submeteram a uma prova de filosofia do Baccalauréat. As notas do Baccalauréat, mais conhecido como “Bac”, são levadas em conta para o processo de entrada nas universidades francesas. É como o ENEM dos brasileiros, com a diferença que, honrando ainda a tradição filosófica francesa, essa disciplina tão maltratada no Brasil, tem grande peso no exame.

A prova de Filosofia teve duração de quatro horas e os candidatos puderam escolher entre dois temas de redação ou um comentário de texto: um tema de dissertação sobre ciência e verdade, um tema de segunda dissertação sobre o Estado ou, por fim, um texto comentário baseado em um trecho da filósofa Simone Weil.

Muitos candidatos, porém, confundiram a filósofa Simone Weil com outra Simone também conhecida dos franceses: a ex-Ministra da Saúde, defensora do aborto e Presidente do Parlamento Europeu, Simone Veil.

Tanto a prova do “Bac” quanto o inusitado mal-entendido me pareceu um bom ensejo para escrever um pouco sobre Simone Weil, essa pensadora por quem nutro particular admiração, mas que infelizmente é quase desconhecida no Brasil.

Quem é Simone Weil?

Simone Weil foi uma filósofa francesa que exerceu o magistério de 1931 a 1938, com algumas interrupções motivadas ora pelo estado delicado de sua saúde, ora pelo seu engajamento em experiências humanitárias que o debilitavam mais ainda.

Sua vida e sua obra traduzem a força moral de um espírito quase redimido. Alma desde sempre arrebatada pela piedade e pela compaixão, capaz de verter lágrimas sinceras ao meditar no sofrimento alheio, Weil era totalmente imbuída de senso de dever moral, atraída como um imã para o bem e a verdade; capaz, consequentemente, de sutilezas filosóficas que causaram forte impressão, mesmo entre os escritores mais experimentados.

Albert Camus foi uma das figuras mais importantes no primeiro período editorial das obras de Weil, tendo sido o responsável pela publicação de várias delas, dentre as quais “Prelúdio para uma declaração dos deveres com o ser humano”, que publicaria, em 1949, com o título L’Enracinement.

Em carta à mãe de Weil, datada de 11 de fevereiro de 1951, após tratar de algumas questões editorais concernentes ao seu espólio, Camus escreve: “Simone Weil, eu sei ainda mais agora, é o único grande espírito de nosso tempo.”

Camus, como se sabe, recebeu o prêmio Nobel de literatura, em 1957. O que poucos sabem, porém, é que, antes de ir à Suécia para receber o prêmio, ele rogou aos pais de Simone Weil que o permitissem passar um tempo no quarto da sua falecida filha, a fim de meditar antes de ir a esse evento tão importante.

Outro distinto e renomado escritor que reverenciou em texto a obra de Simone Weil foi o poeta e crítico literário inglês, T.S.Eliot. Após ler “Attente de Dieu” e “L´enracinement”, ele se deu conta de que a obra de Weil requer um lento processo de compreensão, que inclui não apenas leituras e releituras, mas também um esforço para entender a personalidade da autora. E nesse processo de compreensão, acrescenta, “não devemos nos distrair – como é provável que aconteça em uma primeira leitura – com a questão de até que ponto, e quanto, concordamos com ela ou não. Basta nos expormos à personalidade de uma mulher de gênio, e uma espécie de gênio como o dos santos”.

Dos liceus à Fábrica

O trecho a ser analisado na prova de Baccalauréat desse ano foi retirado da obra La Condition ouvrière, de 1943. Mas voltemos alguns anos antes da data dessa obra, a fim de conhecermos um pouco da vida da filósofa.

Durante os anos de 1925 a 1928, Weil frequentou, no Lycée Henry IV, as aulas ministradas por Alain, pseudônimo do filósofo francês Émile-Auguste Chartier. Do ilustre professor, ouviu muitas preleções acerca da intrínseca relação entre teoria e prática, entre reflexão filosófica e ação política.

Em 1933, Weil, além de ser professora de meninas em um vilarejo, auxiliava refugiados e trabalhava com educação sindical. Suas preleções para os operários iam da matemática básica às bases do socialismo científico, de Homero e Ésquilo à relação entre aumento de produção e meios de produção. Do seu salário como professora ela retirava o valor exato que os trabalhadores das fábricas recebem e doava o restante para os companheiros desempregados ou para os refugiados.

Em 1934, Weil, então com 25 anos, pede licença da escola em que leciona para escrever o que chama de seu “testamento filosófico”. Trata-se da obra Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social. Logo após a conclusão do seu “testamento”, ela consegue realizar o “sonho” de trabalhar como operária e experimentar na própria pele as condições vividas pelos operários na fábrica.

A jovem, de saúde frágil, acometida desde sempre por terríveis crises de enxaqueca, sai decidida do conforto da casa dos pais, aluga um quartinho ao lado da fábrica e passa a viver exclusivamente do seu salário de operária, trabalhando dez horas por dia em uma linha de montagem, encaixando pesadas peças de metal com uma única mão.

A jovem Simone, obviamente, era incapaz de assumir um papel minimamente produtivo no processo de produção. Durante os seis meses de sua experiência fabril, jamais conseguiu cumprir a meta do número de peças estipulado. Em vez disso gerava regularmente produtos defeituosos.

A monotonia e a sobrecarga do trabalho provocam-lhe constantes blecautes mentais, além de um sentimento de fracasso, humilhação e sensação de subjugação. Quando encerrou sua aventura na fábrica ela estava com a saúde definitivamente comprometida. Nas suas palavras, ela se sentia marcada para sempre com o “ferro em brasa da escravidão”, mas estava satisfeita por ter recolhido material in loco para a resolução do problema de uma libertação progressiva dos trabalhadores.

Sua lucidez e seu pessimismo a partir de então eram maiores e ela afirma com propriedade que, ao pensar que a maioria dos chefes bolcheviques – que fazem belos discursos sobre a classe operária – nunca pisaram numa fábrica, a política lhe parece “uma grande palhaçada”. É a partir daí que ela começa a se desencantar com a ideologia de esquerda e começa a repudiar o comunismo.

A crítica a Marx

A crítica de Simone Weil ao marxismo pode ser considerada como parte do seu reformismo ou proposta de diminuição da opressão social, apontando para possibilidades de uma vida menos desumana por meio do estímulo à capacidade de pensar e atuar individuais, pela não submissão da vontade a um suposto determinismo histórico, pela descentralização da economia e pelo desapego da crença ingênua em um progresso econômico ilimitado.

A literatura socialista, diz Weil, admite a concepção marxista de forças produtivas como um postulado de caráter mitológico. Essa doutrina, porém, é “absolutamente desprovida de todo caráter científico”. Marx não explica por que as forças produtivas tenderiam a aumentar, sendo susceptíveis a um desenvolvimento ilimitado. Tal pressuposto, explica ela, estaria ligado às origens hegelianas do pensamento marxista.

Hegel, explica Weil, acreditava em um espírito oculto trabalhando no universo e acreditava, por conseguinte, “que a história do mundo é simplesmente a história do espírito no mundo, o qual, como tudo o que é espiritual, tende indefinidamente à perfeição.” Marx, por sua vez, substituiu o espírito pela matéria como o motor da história, incorrendo no paradoxo extraordinário de atribuir à matéria “aquilo que é a essência mesmo do espírito, uma perpétua aspiração ao melhor.”

Além da crença no aumento ilimitado das forças produtivas, outro dogma da religião marxista é a crença na etapa superior do comunismo como último termo da evolução social. É em nome dessa utopia, diz Weil, que muito sangue é vertido em vão: “a palavra revolução é uma palavra pela qual se mata, pela qual se morre, pela qual se envia as massas populares à morte, mas que não tem conteúdo”.

“Sou filósofa”

A experiência na fábrica havia colocado Simone Weil em contato com um padecimento não apenas de ordem física, mas também moral: o sentimento de quase anulação daquilo que se configura como especificamente humano, a possibilidade de ser reduzida a simples animal de carga e o consequente sentimento de perda de dignidade pessoal e de amor-próprio.

Paradoxalmente, essa experiência lhe trouxe a certeza de que a anulação do indivíduo não poderia ser absoluta, que havia um outro patamar de dignidade que, uma vez atingido, não poderia ser expropriado por nenhuma ação alheia ou circunstância exterior.

Desfeito o sentimento de dignidade pessoal tal como fora fabricado pela sociedade, tornava-se possível alcançar um outro modo de autonomia e de consciência de si.

Filósofos normalmente são atravessados por dilemas éticos e morais que exteriorizam em suas teorias e que acabam sendo algo como o reflexo literário de suas indagações profundas. Weil não apenas fez isso como também doou a si mesma nessa odisseia.

Seu corpo lânguido, magro, debilitado foi propositadamente exposto às adversidades de uma fábrica para que ela sentisse na própria carne a opressão sobre qual se esmerava intelectualmente em dissertar; sua fragilidade também foi exposta no campo (trabalhou em uma vinícola) e na guerra (participou da guerra civil espanhola ao lado dos republicanos). Tendo na memória e no coração a lembrança da coragem da Virgem de Orleans, prontificou-se também a ir ao front para resistir contra o nazismo e salvar mais uma vez a França e o ocidente.

Marcada pela dor física, sublimou-a na virtude; desiludida em seus ideais políticos, depurou-os na sua vontade de eternidade; defrontada com os limites da razão diante da complexidade da vida, da morte e de seus mistérios, despertou em si mesma a intuição mística, que elevou a sua inteligência a outro patamar.

Ao ser internada, na Inglaterra, recusou categoricamente qualquer tratamento especial; instada pelos médicos a se alimentar, ingeria diminutas porções de mingau e orientava as enfermeiras a enviarem para as crianças da França o leite que lhe era ofertado.

No hospital, ocupou-se ainda de seus escritos e estudou o Bhagavad-gita no original, em sânscrito. Aos que a visitaram nos últimos dias, fez preleções sobre a graça e o caminho da luz.

Escreveu ainda ao Comando geral da França, expondo sua decepção por não ter sido enviada em missão para morrer ao lado do seu povo.

Ao ser transferida para um sanatório em Ashford, a médica de plantão perguntou àquela paciente singular quem era ela e o que fazia da vida. “sou filósofa e me interesso pela humanidade”, respondeu.

Simone Weil morreu aos 34 anos, de tuberculose.

Política e linguagem: onde está o extremismo político?

Não é problema que a conversa política entre cidadãos comuns na rua, nas mesas de bar, nas filas de banco ou nas redes sociais se dê em termos pouco ou quase nada rigorosos. Trata-se aí de um desabafo cotidiano sem maiores consequências.

Quando, porém, os próprios veículos de comunicação tido por confiáveis passam a expor sérias questões políticas com uma linguagem de mesa de bar ou de conversa de comadres em salão de beleza, pode-se dizer que há algum problema e que um mínimo de consenso em torno da definição de conceitos costumeiramente usados pela mídia torna-se necessário.

Por ocasião do recente resultado das eleições para o Parlamento Europeu, houve uma proliferação de manchetes no Brasil e em outros países expondo e analisando um suposto avanço da extrema direita na Europa e no mundo.

Ocorre que, embora partidos mais radicais de direita como o Rassemblement National (RN) da França ou o Alternative für Deutschland (AfD) da Alemanha tenham de fato crescido, o Parlamento Europeu continua sob o controle moderado, deslocando-se agora da centro-esquerda para a centro-direita.

Isso não significa que o crescimento do extremismo político não deva ser observado com cuidado. A questão é que, justamente por se tratar de um fenômeno importante, ele precisa ser analisado com honestidade, em termos corretos, sem a gritaria histérica de uma geração de jornalistas militantes que acham que o mundo vai acabar toda vez que a direita chega ao poder e que põem no mesmo balaio de gato de uma suposta extrema-direita “tudo aquilo que a esquerda considera ruim”, como bem explicou o jornalista e mestre em relações internacionais, Diogo Shelp, em um elucidativo artigo publicado na Crusoé.

De um extremo a outro

Shelp apresenta, no referido artigo, uma classificação esquematizada pelo cientista político holandês, Cas Mudde – o qual, confesso, desconhecia. O estudioso do extremismo político divide o campo da direita em extrema direita, direita radical, direita e centro direita. Da mesma forma, divide o campo da esquerda em extrema esquerda, esquerda radical, esquerda e centro esquerda. Para o autor, o extremismo, de um lado ou de outro, estaria ligado à rejeição à soberania popular por meio do voto, rejeição à ordem constitucional e, consequentemente, rejeição à própria democracia.

O filósofo político italiano, Norberto Bobbio, propõe um espectro político mais simples (extrema esquerda/centro esquerda/centro direita/extrema direita), mas, em um aspecto fundamental, as duas classificações convergem: ambos ligam o extremismo à rejeição da própria democracia.

Para Mudd, extrema direita e extrema esquerda almejam a substituição da democracia por uma ditadura; também para Bobbio, revolucionários de esquerda e reacionários de direita possuem como ponto de vista político comum a antidemocracia; extremistas de um lado e de outro têm aversão à democracia como conjunto de valores e como método.

Independentemente da classificação adotada, é importante que, pelo menos, se reconheça no campo político um espectro com nuances que não podem ser eliminadas como se tudo fosse um jogo preto no branco, ou seja, é importante que se reconheça, no debate público, a existência de posições intermediárias, de um centro político; aquilo que Bobbio também chama de região cinza:

Entre o branco e o preto pode existir o cinza. Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto, nem o crepúsculo elimina a diferença entre o dia e a noite.

O moderantismo “isentão”

Radicais tendem a não ver ou a ver e não aceitar as nuances: para eles ou se é de direita ou se é de esquerda. Um termo meio tosco tornou-se comum nos últimos anos, aqui no Brasil, para tentar rotular quem não adere cegamente à narrativa reducionista – e muitas vezes distorcida – de um lado ou de outro: seria o famoso “isentão.

Por não ecoarem a contento os discursos simplistas, facilmente manipuláveis por políticos hipócritas, os “isentões” são acusados pelos radiciais de não terem posições firmes. Na maioria das vezes, porém, os que são assim pejorativamente rotulados são aqueles que mais tiveram firmeza em suas posições, sustentadas a duras penas em meio à histeria e à intolerância a lhes exigir adesão.

O “isentão” seria o moderado. E esse moderantismo é tão importante que Bobbio chega a pensá-lo como uma nova díade. De um lado, o extremismo catastrófico, que interpreta a história como se ela desse saltos; de outro, o moderantismo gradualista, evolucionista e reformista.

Se considerarmos a definição proposta por Bobbio no livro “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política”, veremos que a liberdade, para ele, não é o critério para distinguir direita e esquerda, mas sim o critério para distinguir a ala política moderada da ala extremista.

Ele expõe um espectro político no qual a extrema-esquerda é concebida como um movimento igualitário e autoritário, a centro-esquerda como um movimento igualitário e libertário, a centro-direita como um movimento não-igualitário e libertário e a extrema-direita como um movimento não-igualitário e autoritário.

A igualdade, portanto, seria o critério para distinguir esquerda e direita, enquanto a liberdade seria o critério para distinguir a ala política moderada da ala extremista.

A extrema-direita está em marcha?

Voltando ao tema inicial da cobertura jornalística dos resultados das eleições do Parlamento Europeu como o sinal apocalíptico de uma extrema direita novamente em marcha na Europa, reiteramos a necessidade de mais prudência.

Como bem notou Douglas Murray, articulista da tradicional revista britânica, The Spectator, no artigo The trouble with calling everyone ‘far right’” (o problema de chamar todo mundo de ‘extrema direita’), o uso extensivo, abusivo e pouco rigoroso desse termo torna-o cada vez mais desprovido de significado.

Os principais meios de comunicação social descreveram recentemente os partidos europeus mais diversos como sendo de “extrema direita”: da Itália, tanto o partido de Giorgia Meloni,Fratelli d´Itália, quanto oLega Nord de Matteo Salvini e até os conservadores do país (Conservatori e Riformisti) receberam o mesmo rótulo que o Partij voor de Vrijheid (Partido pela Liberdade) dos países baixos, o Vox da Espanha, o Fidesz, de Orbán, na Hungria e dos partidos franceses Rassemblement National, de Le Pen e o Reconquête, de Éric Zemmour.

Esse apagamento das nuances no espectro político à direita, misturando sob o rótulo de extrema direita partidos e políticos extremistas ou radicais e os que não o são, só serve ao extremismo de lado oposto.

Aliás, alguém se alarmou com os quase 10% de votos obtidos pelo partido de extrema esquerda da França, La France Insoumise, no parlamento europeu? Trata-se de um partido radical, que vem atuando como um tipo de fascismo de esquerda antissemita e antidemocrático, com ostensiva demonstração de apoio ao grupo terrorista Hamas.

Rússia, Hamas e um novo critério de valor

O mundo está em guerra e as duas guerras que mais capturam o nosso interesse e atenção, a guerra entre Israel e Hamas e entre Rússia e Ucrânia servem, no meu entendimento, como pedra de toque, como novo critério de avaliação de partidos e de políticos nos tempos atuais.

Vimos que o extremismo de esquerda ou de direita têm em comum a aversão à democracia e a aversão às liberdades individuais. Pois bem, o mundo livre, o mundo democrático, o mundo onde os direitos individuais são protegidos é o mundo que está nesse momento sendo ameaçado por Putin e pelo fundamentalismo islâmico.

Por que, então, políticos como Giorgia Meloni da Itália ou Javier Milei da Argentina, que defendem a democracia e a liberdade, ao defenderem a Ucrânia e Israel, são rotulados de extremistas e um político como Lula, do Brasil, que fala e age claramente contra ambos, passa por político moderado?

Talvez porque alguns conceitos políticos tenham sido tão vulgarizados e deturpados que já não descrevem nada e deixaram de fazer sentido.

A estupidez autoritária da ideologia de gênero já foi longe demais

A fim de manter a cobertura dos jogos olímpicos de Paris sob o cabresto do politicamente correto, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anexou ao documento “Gender-equal, fair, and inclusive representation in sport páginas de orientações específicas para o trato dos jornalistas com relação a atletas transgêneros, não binários e intersexo.

O documento dá a entender, no início, que a mulher é o foco principal das orientações para uma cobertura jornalística mais equilibrada e equânime, com quebra de estereótipos e de preconceitos. Avançando um pouco na leitura, porém, descobrimos que o documento abrange “as mulheres em toda a sua diversidade”, incluindo e focando as mulheres trans, isto é, os homens, que não deverão ser chamados de homens e que deverão ter toda a cobertura generosa dedicada às mulheres.

Isso ilustra como as políticas de igualdade de gênero, que visavam antes combater as disparidades de tratamento entre mulheres e homens, foram capturadas pela militância LGBTQIA+, a despeito das injustiças que essa captura acarreta para as mulheres.

Com o pretexto de “oferecer algumas definições-chave, boas práticas e considerações para promover uma comunicação mais precisa, responsável, respeitosa e inclusiva” o COI impõe à cobertura dos jogos uma linguagem identitária que vai até o extremo de orientar a negação deliberada da realidade.

Classificar atletas mulheres trans como “biologicamente homem” é considerado “problemático” no relatório do COI; os termos “nascido homem” ou “geneticamente homem” também são rechaçados: “é sempre preferível enfatizar o gênero real de uma pessoa em vez de potencialmente questionar sua identidade ao se referir à categoria de sexo que estava registrada em sua certidão de nascimento original”, explica o documento.

Que vocabulário sobra para o comentarista esportivo que quiser informar que a pessoa que porventura venceu outras mulheres em uma prova de levantamento de peso ou outra prova qualquer é, na verdade, um homem? Nenhum. Inclusive há uma diretriz para que se substitua a expressão “identifica-se como mulher” por simplesmente “é mulher.”

Paradoxalmente, esse documento cheio de clichês, que atesta servilismo à agenda radical identitária, vai na contramão das últimas decisões das principais federações olímpicas como a do atletismo, da natação e do ciclismo, que proibiram a competição, na categoria feminina, de mulheres transgênero que passaram pela puberdade masculina.

Anteriormente, o COI tinha diretrizes em vigor que permitiam que atletas trans competissem se os seus níveis de testosterona estivessem abaixo de 10 nanomoles por litro um ano antes da competição, mas a revisão das políticas para transgênero nos esportes olímpicos nos últimos dois anos acrescentou que as mulheres trans devem ter concluído a sua transição de gênero antes dos 12 anos.

Se, por um lado, essa última restrição protege as atletas contra injustiças na disputa desportiva, a própria indicação de normalização da possibilidade de transição de gênero em crianças é um atestado da falência moral de uma época.

Crianças usadas como cobaias de uma militância perversa

O ativismo trans tem empurrado, em quase todo o mundo livre, mas principalmente na Europa, crianças para tratamentos experimentais a fim de corroborar uma visão de mundo distorcida e doentia.

O suposto aumento de crianças e jovens que se identificam como trans é menos um fato empiricamente verificável ou espontâneo e muito mais o resultado da propaganda massiva e de uma educação sugestiva e indutiva que busca provocar confusões em termos de gênero no quadro do desenvolvimento infantil.

Em muitos países europeus – e de modo mais alarmante no Reino Unido – existem ativistas transexuais em todos os níveis do serviço de saúde e de educação.

Em 2019 um jovem escocês de 17 anos chamado Murray Allan foi suspenso por duas semanas da escola por afirmar que “existem apenas dois gêneros”. Na conversa, gravada por Allan, seu professor lhe disse para guardar a sua “opinião para a sua própria casa”, porque “dizer que não existe outra coisa senão homem ou mulher não é inclusivo”.

No ano passado, foi registrada e divulgada a reação histérica de uma professora de uma escola de East Sussex, condado do sudeste da Inglaterra, no Reino Unido que, ao ser confrontada por uma garota de 13 anos, que não entendia como alguém poderia se identificar como sendo do sexo oposto, respondeu de modo grosseiro que era “desprezível” afirmar que só existem dois gêneros: “Existem muitos gêneros. Há transgênero, há agênero – pessoas que não acreditam que tenham gênero algum”, explicou a educadora visivelmente irritada, ameaçando em seguida denunciar a menina a funcionários superiores.

Professores têm escandalosamente punido crianças por declararem fatos biológicos e têm abusado da sua posição como professores para promover uma ideologia nefasta, encorajando crianças vulneráveis a questionar a sua identidade de gênero. Profissionais de saúde, por sua vez, ao serem procurados pelas crianças confusas quanto ao gênero, encorajam o uso de bloqueadores da puberdade que acabam sendo um caminho irreversível até a cirurgia. É um ciclo vicioso, aberrante e criminoso que precisa acabar.

O controle da linguagem

Há poucos dias, a Sociedade Canadense do Câncer pediu desculpas por usar o termo “colo do útero” em uma página da web dedicada aos exames de câncer do colo do útero para membros da comunidade LGBTQ+. Na página, a organização afirmou reconhecer “que muitos homens trans e pessoas não binárias podem ter sentimentos confusos ou se sentirem distanciados de palavras como ‘colo do útero’”. A instituição admitiu, em uma seção intitulada “Words Matter”, que alguns membros da comunidade podem preferir usar outros termos, como “buraco frontal”.

É estarrecedor o grau de servilismo ideológico das mais diversas instituições e dos mais diversos setores a uma militância identitária autoritária que quer impor sua visão amalucada de mundo modificando a linguagem, censurando palavras e criminalizando opiniões.

Recentemente, em uma conversa com algumas pessoas lúcidas, ainda não cooptadas pela mentalidade woke que aparentemente vai conquistar o mundo, descobri que algumas escolas, aqui mesmo no Brasil, eliminaram da escolinha das crianças a tradicional festa do dia das mães, a fim de não ferir as susceptibilidades dos novos formatos de família e preparar as crianças para acolher as diferenças.

Tudo isso é uma estupidez sem tamanho. Não me ocorre outra explicação para que isso esteja sendo aceito com naturalidade a não ser constatar que o processo de estupidificação em massa promovido pela cultura woke está dando certo.

Tirania da verdade X desaforo tirânico: a batalha das fake news

Em seu discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesta segunda-feira, 3 de junho, a ministra Cármen Lúcia prometeu atuar firmemente contra as Fake News nas eleições municipais de 2024: “A mentira continuará a ser duramente combatida”, discursou a ministra. E continuou:

A mentira espalhada pelo poderoso ecossistema digital das plataformas é um desaforo tirânico contra a integridade das democracias. É um instrumento de covardes e egoístas. Se não rompermos o cativeiro digital, chegará o dia em que as próprias mentiras nos matarão.

Longe de mim negar que a disseminação em massa de mentiras através das redes sociais seja um problema na democracia. De fato, o é. Parece-me, porém, que mais problemático para a democracia é a disseminação em massa de “verdades oficiais” dentro de um contexto persecutório no qual o contraponto da versão oficial dos fatos pode ser facilmente censurado e criminalizado.

China

A China, por exemplo, foi bastante exitosa em combater as “fake news”. Lá o governo tem leis rigorosas para assegurar o controle social da internet. Utilizando tecnologia sofisticada, o Estado controla todo o tráfego digital que entra e sai do país, bloqueia o acesso a websites “problemáticos” como Facebook, Twitter, Google, YouTube e Wikipedia, e filtra palavras-chave relacionadas com questões controversas. Será esse o modelo de regulação que estamos buscando?

O que mais dificulta o avanço seguro no Brasil do processo talvez necessário de regulação das redes sociais é a escancarada parcialidade daqueles que militam no combate às fake news. No fundo, quase ninguém está interessado na verdade, mas sim no controle da verdade, no poder de dizer o que é ou não é verdade. É uma questão de poder, não de defesa da verdade por princípio.

O veto das “fake news”

O advento das redes sociais trouxe, de fato, novos desafios à sustentação das democracias. Se aceitarmos que democracia é o poder do povo e que, em uma democracia, a palavra também é poder, deveríamos concluir que as redes sociais, dando mais voz a um maior número de pessoas, ampliou a democracia.

A qualidade de uma democracia, porém, não depende apenas dessa difusão do poder da palavra; depende também da qualidade dessa palavra amplamente difundida. A difusão, por exemplo, de “comunicação enganosa em massa” em tempos de eleição pode, em tese, ser desfavorável à democracia. Mas o combate a essa suposta “comunicação enganosa em massa” pode ser igualmente prejudicial. 

Uso essa expressão propositadamente, porque é a expressão que aparece no artigo de um projeto de lei que seria inserido no código civil em 2021, caso não tivesse sido vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro. Recentemente o Congresso analisou esse veto. O governo Lula orientou pela sua derrubada, mas o veto se manteve em uma votação com placar de 317 votos a favor da manutenção e 139 votos pela derrubada. Foi uma grande derrota do governo.

Estrondoso sinal da extrema direita? 

Logo vieram as análises simplórias de uma mídia cada vez mais enviesada: “Trezentos votos a favor das fake news é um estrondo. Portanto tem aí um sinal claro. Não é só a extrema direita nessa agenda, é a centro-direita também, é o que a gente chama de centrão, que está de braço auxiliar da extrema direita”, disse uma conhecida jornalista, ao comentar na televisão a manutenção do veto pelo Congresso.

Para a referida jornalista “quem está votando contra uma medida que inibe a fake news está votando a favor”. Ela falava como se a sua frase fosse uma obviedade; mas a frase nada mais é do que uma construção retórica que inviabiliza a problematização adequada de uma delicada questão.

O artigo cujo veto foi mantido pelo Congresso tipificava “fake news” durante as eleições como crime que poderia ser punido com um a cinco anos de reclusão e multa. Em um país que avança cada dia um pouco mais contra os direitos fundamentais dos cidadãos sob pretextos vagos como “defesa da democracia” ou “defesa da honra das instituições”, é preciso uma boa pitada de má-fé para chamar de extrema direita ou aliados da extrema-direita aqueles que votaram pela manutenção do veto.

O inquérito aberto de ofício pelo STF para apurar o que ele entende sobre Fake News é um saco de gato no qual já foi colocado reportagem que trazia verdades inconvenientes aos donos do poder; o TSE já usou o termo para impedir o uso de determinados adjetivos pouco lisonjeiros contra alguns candidatos e, no contexto das enchentes do Rio Grande do Sul, o então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, denunciou à Polícia Federal uma lista de publicações nas redes sociais na qual misturou sob o rótulo nada rigoroso de “fake news”, informações descontextualizadas, teorias conspiratórias, calúnias, e mera opinião.

É evidente que, diante desse quadro, existe um enorme risco de que o combate às fake news seja usado como um pretexto para a criminalização da opinião. Em certa medida, isso já está acontecendo.

Não se tratava, portanto, na análise do referido veto, de ser ou não ser contrário às fake news, como se tentou fazer crer, mas de ser ou não ser favorável ao aumento do poder do Estado para combatê-la, de ser ou não ser favorável a uma lei de poderia ampliar um autoritarismo já crescente e cercear ainda mais a liberdade de opinião no Brasil.

É perigoso dar ao Estado o poder de decidir o que é ou não verdade. Nossas autoridades já deram provas cabais de que não são imparciais na hora de definir o que é fake news ou discurso de ódio. Parece-me, pois, que a solução ou a falta de solução para o problema das fake news passa pelo próprio indivíduo e pelo seu bom senso.

À esquerda e à direita sempre houve e sempre haverá tentativa de manipulação das massas através da difusão de mentiras. Fake news é só o nome da moda para isso. O Estado aponta para a tutela paternalista do discurso como solução; o indivíduo livre olha para essa tentativa de tutela como o maior dos problemas.

“Civil salva civil” não é fake news. É força capaz de redimir o Brasil

O termo “democracia” tem sido tão maltratado, retorcido e descaracterizado em nossos dias que mal se consegue reconhecê-lo como um conceito que aponta para algo além de um vazio retórico instrumentalizado ao bel prazer da demagogia política de ocasião.

É preciso, às vezes, retroceder um pouco, retomar o fio da história das ideias a fim de repor o sentido ou reapresentar os sentidos das palavras que mobilizam as paixões políticas do nosso tempo.

Quando falamos democracia, nós, que não somos socialistas, referimo-nos a um regime político onde o poder está distribuído, difuso, pouco concentrado; falamos em uma forma de governo na qual o Estado deve não apenas equilibrar o exercício do seu poder entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, mas deve também ser fiscalizado e permanecer em diálogo aberto, transparente e regular com a sociedade civil que, por sua vez, deve ser ativa, dinâmica, criadora e livre.

Abismo entre Estado e sociedade civil

A tragédia que assolou o Rio Grande do Sul mostrou, no entanto, que, no Brasil, há uma enorme distância separando o cidadão comum das instituições; mostrou que há um abismo entre o Estado e a sociedade civil, sendo a profundidade desse abismo a medida da crise política que vivenciamos.

A democracia surge com a pólis, cidade-estado grega, na qual se configura também a política enquanto organização de indivíduos livres e pensantes que deliberam, decidem e agem tendo por finalidade a efetivação do bem comum e a manutenção de uma ordem social na qual cada um é livre para buscar por si mesmo aquilo que considera o seu próprio bem.

O bem comum é a razão de ser do Estado e a liberdade é a razão de ser da política. Quando o Estado não assegura o bem comum e, além disso, usa a política contra a sua razão de ser, que é a liberdade, estamos diante de uma grave crise.

Liberalismo e conservadorismo em tempos de crise

A corrupção que se generaliza à medida que o Estado se agiganta faz com que as doutrinas do Estado mínimo se tornem atrativas, embora a realidade brasileira, marcada pela pobreza, pela exploração e pela desigualdade seja campo pouco fértil para o florescimento de um pensamento liberal tout court. Apesar das adversidades, o pensamento liberal foi ganhando corpo e hoje é uma força política considerável no Brasil.

Da mesma forma foi ganhando espaço, no Brasil, a tendência conservadora, que valoriza o ser social em seus vínculos concretos de tradição, costumes, cultura, hábitos e sentimento de solidariedade; visão política que, por sua vez, cultiva prudência e ceticismo em relação ao valor e à eficácia de um planejamento estatal abstrato, desvinculado da experiência real da comunidade.

Esse liberalismo e esse conservadorismo difusos – talvez sequer bem compreendidos em seu sentido mais conceitual e rigoroso por aqueles que os expressam – deram um tom sui generis à ação e à narração daqueles que se prontificaram a ajudar o Estado a fazer o seu papel por ocasião do desastre ambiental que trouxe o caos ao Rio Grande do Sul.

Medo da ordem espontânea e censura

A força da mobilização espontânea da sociedade e o entusiasmo que acompanhou a descoberta dessa força foi tão grande que aqueles cujo poder só se perpetua devido à nossa dependência e subserviência sentiram-se ameaçados.

Enquanto a comunidade organizava forças-tarefa de voluntariado em redes solidárias para resgate e apoio aos atingidos pelo desastre natural, o Governo Federal organizava uma “Sala de Situação” para monitorar e censurar postagens nas redes sociais.

O Ministro-chefe da Secretária de Comunicação Social do Brasil, Paulo Pimenta, misturou opiniões críticas ao governo, desabafos exasperados de cidadãos comuns, versões de temas controversos, algumas notícias sabidamente falsas, listou tudo junto, assinou um ofício e encaminhou o material à Justiça para um novo inquérito das fake news, com uma recomendação suplementar de “botar para f…nos caras” e tratar como “quinta-coluna” e “criminosos” todos aqueles que ousaram expressar suas dúvidas a respeito da onipotência benéfica do Estado.

Poder e propaganda: Pimenta no JN 

Mas nem só de repressão vivem os regimes autoritários. A propaganda é alma do negócio. Sendo assim, vamos assistir ao mesmo ministro da Secom, Paulo Pimenta, ser entrevistado, ao vivo, em horário nobre, no Jornal Nacional, sobre o referido pedido de investigação das pessoas que supostamente divulgaram desinformação.

Justiça seja feita, Willian Bonner teve ao menos a hombridade de comentar que, entre as postagens encaminhadas por Pimenta para investigação, algumas não tinham “uma característica tão clara de fake news”, mas sim “a característica de uma crítica ou de um comentário crítico ao governo”.

Bonner não insistiu quando o ministro da propaganda do governo Lula sofismou em torno da pergunta sobre o critério usado para incluir tais postagens meramente críticas no referido inquérito. De toda forma, o experiente jornalista se equilibrou entre o dever de perguntar e a polidez de não tentar forçar o entrevistado a responder. 

O servilismo escancarado ficou por conta mesmo da moça do governo na Globo News, que causou indignação ao se referir de modo bastante infeliz à ação dos voluntários no Rio Grande do Sul.

A cauda longa do governo na Globo

Em vídeo bastante difundido nas redes sociais, Daniela Lima afirma que “eles” (referindo-se às pessoas que supostamente disseminam fake news) “usam vídeos falsos, descontextualizados, para dizer que quem tá salvando o Rio Grande do sul no braço são os voluntários, são os civis”.

No referido trecho do seu programa alegadamente jornalístico, a cheerleader do governo Lula pede — com o seu didatismo pedante, cheio de uma gesticulação peculiar — que o telespectador salve o termo “cauda longa”. Segundo a douta, a ideia de que “civil salva civil” seria essa tal cauda longa: “Essa ideia tá incutida em toda lá (sic). É para dizer que o Estado é lento, que o Estado não chega, que o Estado é preguiçoso, que o Estado nada está fazendo.

Se eu que estou aqui, no conforto da minha casa sequinha, longe das enchentes, fiquei indignada com esse vídeo, como não terão se sentido os civis que estão lá no Rio Grande do Sul, com o pé na lama e a mão na massa, resgatando pessoas e animais, recolhendo e distribuindo doações, levantando pontes e improvisando abrigos?

Não é justo que se hostilize o esforço de mobilização do Estado, pois os bombeiros, os policiais, os militares e todos os outros servidores públicos que foram enviados para a missão no Rio Grande do Sul são também brasileiros solidários, dispostos a estender a mão ao seu semelhante e a fazer o seu melhor. Mas tampouco é justificável o esforço autoritário na direção da censura ou o menosprezo pela mobilização autônoma da sociedade civil.

Fake news e democracia

Em um momento trágico e delicado, o governo Lula agiu para calar as críticas, sufocar a dissidência, perseguir opositores e tentar impedir que o povo tomasse consciência da sua própria força, da sua própria grandeza, da sua própria capacidade de se organizar de maneira espontânea, solidária e eficiente.

Fake news não é crime. É apenas um termo vago como tantos outros, manipulado pelos que detêm o poder e que farão de tudo para não perdê-lo, inclusive avançar a censura a fim de perpetuar esse status quo injusto no qual o Estado esmaga e rouba o pagador de impostos, ao mesmo tempo em que incha com as regalias concedidas à sua elite burocrática à custa de suor e sangue do brasileiro que se vê agora ameaçado no seu mais básico direito de reclamar.

Os que não somos socialistas jamais aceitaremos que, sob pretexto de defender a “democracia”, o Estado cale as críticas dos cidadãos com a alegação estapafúrdia de defender a honra das instituições.

A “honra” de uma instituição está no cumprimento fiel de sua função. Se as instituições brasileiras se desmoralizam pela falta de ética dos indivíduos que as compõem, não é silenciando as críticas e as denúncias que essas mesmas instituições serão preservadas.

O avanço da censura sob o pretexto de defesa da democracia é apenas um dos sinais de que a democracia está morrendo. Mas ela pode reviver. Porque a democracia não é apenas um regime político concreto; é também um ideal aberto de igualdade, liberdade e justiça que, em sociedades livres, pode ser concretizado em formas diferentes e novas.

Aqui no Brasil, nossa democracia pode ressurgir da lama, como aquela ponte erguida “no braço” pelos civis. 

“Civil salva civil” não é “cauda longa”, não é fake news; é o valor heroico da união e da solidariedade que pode redimir o Brasil.

REUTERS/Amanda Perobelli

A luz e a lama no Rio Grande do Sul

Por mais que tentemos escrever sobre solidariedade, as palavras não são suficientes para expressar a beleza de um gesto humano no momento em que o semelhante mais precisa.

O que fica de uma tragédia como essa, que atingiu os nossos irmãos do Rio Grande do Sul, além da lama, da aflição e do medo? Fica o gesto de quem estendeu a mão, de quem entregou um cobertor, de quem arriscou a própria vida, de quem cedeu seu tempo, de quem juntou alguns pertences para doação no intuito singelo de colaborar, o mínimo que fosse.

Diante de uma tragédia, o que se mostra além do caos, é o ato genuíno de compaixão, que nos lembra daquilo que nos foi ensinado em parábolas cristãs mas que pouco sentido fazia até que nos deparamos nós mesmos com o bom samaritano que cada um pode ser quando a frieza do seu coração se dissipa diante do sofrimento do seu próximo.

O que podemos fazer também em respeito à dor dos gaúchos é limitar nossos comentários maledicentes, educar nossa língua ferina, refrear nossa necessidade infantil de apontar o dedo para este ou aquele político em especial, como se houvesse um único culpado para uma catástrofe ambiental na qual todos estamos enredados.

Tampouco é pertinente insistir em teorias ideologizadas que utilizam as mudanças climáticas para justificar radicalismos que nada têm a ver com a questão ambiental.

O que nos falta é coragem para enxergarmos que estamos todos juntos em um mesmo barco que afunda. Somos partícipes de erros e irresponsabilidades coletivas, mas somos, sobretudo, responsáveis pelos nossos próprios atos.

Cada um de nós tem um papel a realizar nesse ensaio cacofônico para que ele se torne uma sinfonia. Cada um de nós é um instrumento que pode se afinar e se harmonizar a fim de ser utilizado por Deus para soerguimento da terra convulsa. Isso pressupõe liberdade e responsabilidade.

Não é livre aquele cujo pensamento está subjugado à ideologia da hora ou cujas ações têm por móbil somente o autointeresse, desconsiderando o apelo ao bem comum, ao cuidado com o outro.

A solidariedade não se submete a partidarismos; a luz que brota do coração humano quando ele se vê fortemente inclinado em direção ao próximo que necessita de ajuda não se confunde com o holofote que jogam sobre si aqueles que se aproveitam das calamidades públicas para a autopromoção.

Todos os políticos deveriam olhar hoje para o Rio Grande do Sul e se envergonhar. Não porque sejam diretamente culpados pelo evento trágico, mas porque aquilo que podem fazer é mínimo diante da catástrofe. E isso mostra quão ridícula é a sua soberba, quão fantasiosa é a sua presunção de que o Estado pode mais do que o povo unido em torno de um objetivo comum.

Tudo o que o Estado brasileiro representa hoje está em descrédito. A opulência, as regalias, as emendas bilionárias, os orçamentos secretos, os desvios por corrupção, os fundos partidários, a ineficiência: tudo isso fica mais gritante diante do cenário de guerra que se avista no Rio Grande do Sul. É como se a lama na qual o estado gaúcho submerge materializasse a lama moral da qual a política brasileira jamais se limpou.

Já passa da hora de acenarmos um adeus para todos aqueles que parasitam a máquina estatal para o seu próprio benefício.

O mundo dá sinais de convulsão: pandemias, guerras, catástrofes ambientais, terrorismo, fanatismo, histerias coletivas: tudo isso soa como uma espécie de trombeta do apocalipse para os mais impressionáveis. Mas, mesmo para os céticos e para os incrédulos, parece prudente aceitar que o momento pede um pouco de reflexão para reajuste.

Aceitemos a nossa falibilidade, paremos um pouco com a nossa intolerância e com a disseminação de um ódio difuso. Voltemos um pouco para o nosso próprio eu a fim de investigarmos onde temos errado e como podemos redirecionar a conduta a fim de nos tornarmos mais úteis. Tragédias como essa deveriam, pelo menos, trazer o espanto filosófico que leva a um minuto de circunspecção e silêncio.

Foto: Stephanie Keith/Getty Images

“Mein Kampus”: a loucura antissemita nas Universidades

As Universidades foram tomadas, nas últimas semanas, por acampamentos de manifestantes radicais pró-Palestina. Os estudantes em protesto não defendem apenas um cessar-fogo em Gaza, mas, como pode ser constatado em inúmeros vídeos difundidos pelas redes sociais, clamam pela aniquilação de Israel com urros e gritos de ordem e agridem verbal e fisicamente estudantes judeus que ousem confrontá-los ou entrar no Campus.

Como entender esse extremismo estudantil que incorre em um dos ódios mais arraigados da história, o ódio contra os judeus? Como compreender o aumento exponencial da intolerância justamente dentro do ambiente universitário, que nasceu com a missão de libertar o pensamento humano de suas amarras dogmáticas, sejam elas teológicas ou ideológicas?

Um artigo do autor e colunista Ross Douthat, publicado no jornal The New York Times traduzido pelo jornal brasileiro Estadão nos dá uma pertinente interpretação: o problema está no currículo das universidades, naquilo que os jovens são obrigados e estimulados a ler nas Instituições de Ensino Superior.

O currículo de ciências humanas da Universidade de Columbia

Segundo o analista político americano, na porção do currículo básico da Universidade de Columbia que lida majoritariamente com a ciência política, as leituras pré século XX seguem padrões tradicionais como Platão, Aristóteles, Agostinho, Hobbes, Locke, Rousseau, Maquiavel e leituras complementares sobre a conquista das Américas, a Declaração de Independência, a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA, etc. Mas, então, diz ele, chega o século XX e é aí que o caldo entorna:

De repente o escopo se estreita, restringindo-se a preocupações progressistas e somente a essas preocupações: anticolonialismo, sexo e gênero, antirracismo, meio ambiente. Frantz Fanon e Michel Foucault. Barbara Fields e o Coletivo Combahee River. Reflexões sobre o comércio escravagista transatlântico e como a mudança climática é um ´déjà vu colonial.´”

Embora algumas dessas leituras valham a pena, o foco exclusivo nessas questões, em detrimento de outros problemas ou mesmo de outras perspectivas para abordar os referidos problemas mostra evidentemente um “conjunto de compromissos ideológicos muito específicos”. Para compreender o mundo posterior a 1900, explica Ross Douthat, os alunos de Columbia só leem textos de uma perspectiva da esquerda contemporânea:

Nas leituras do século 20 presentes no currículo de Columbia, a era do totalitarismo simplesmente se dissipa, deixando a descolonização como o único grande drama político do passado recente. Não há Orwell nem Solzhenitsyn; nem os ensaios de Hannah Arendt sobre a Guerra do Vietnã; e os protestos estudantis nos EUA estão no programa, mas não ´As Origens do Totalitarismo´ nem ´Eichmann em Jerusalém´.

Também estão ausentes leituras que trariam à luz ideias que a esquerda contemporânea tem combatido: não há nada sobre neoconservadorismo, certamente nada sobre conservadorismo religioso e também não há nenhuma análise sobre o liberalismo em todas as suas variantes. Não há Francis Fukuyama, nenhum debate sobre o “fim da história” [….] E nenhuma leitura coloca foco em aspectos tecnológicos ou espirituais do presente nem oferece críticos culturais com alguma perspectiva não progressista — nada de Philip Rieff, nem Neil Postman, nem Christopher Lasch.

[…] Conservadorismos de qualquer tipo estão naturalmente fora de questão. Manejos centro-esquerdistas também soam como vender a si mesmo. Não há nenhum caminho claro para lidar com muitos dos principais dramas do nosso tempo.”

Uivo de raiva

Nesse ponto, faço uma digressão para indicar outro bom artigo publicado recentemente sobre as manifestações em Columbia. No texto “A howl of rage against civilisation (um uivo de raiva contra a civilização), o analista político britânico e colunista da revista Spiked, Brendan O’Neill escreveu:

“Quão tolos fomos ao pensar que a educação poderia libertar os jovens da obscura ignorância do passado. Hoje em dia, foram os mais instruídos, os habitantes da academia, que permitiram que o ódio mais antigo do mundo os dominasse. Podemos agora ver as consequências de ensinar os jovens a serem cautelosos em relação à civilização ocidental e a tratar tudo o que é “ocidental” como suspeito e perverso. Tudo o que lhes resta é a atração da barbárie, a crença demente de que até a selvageria pode tornar-se louvável se o seu alvo for ´o Ocidente´.

Vejam que ambos os artigos mostram a relação de causa e efeito entre um currículo no qual os jovens são condicionados a odiar o Ocidente e o aparentemente incompreensível caos atual provocado nas universidades pelos estudantes radicalizados, que, sob pretexto de defenderem a paz em Gaza, alastram como um barril de pólvora um antissemitismo cada vez mais ostensivo e uma intolerância cada vez mais doentia.

Voltemos, porém, para o artigo do Ross Douthat, que aborda o problema do currículo acadêmico de Columbia, que certamente é semelhante ao de grande parte das universidades ao redor do mundo. O autor chama atenção para o fato de que os jovens estão sendo expostos a uma leitura reducionista da realidade em um mundo extremamente complexo: “a mudança climática é onipresente, mas o ativismo ambiental deve ser mesclado de algum modo com ação anticolonial e antirracista.” Esse é o limitado horizonte de análise no qual o jovem universitário de Columbia e de outras universidades está sendo formado. Trata-se de um “estreitamente intelectual e histórico dramático” cheio de consequências.

Israel como bode expiatório e o antissemitismo como virtude

A primeira consequência desse embotamento intelectual em massa da juventude é uma espécie de mistificação e simplificação das coisas, que usa as relações de poder de um passado distante mal compreendido para entender o século XXI: “se você estiver disposto a simplificar e aplainar a história — especificamente a história do século XX — é mais fácil fazer essas preocupações caberem na questão Israel-Palestina. Com sua posição incomum no Oriente Médio, sua fundação relativamente recente, sua relação próxima com os EUA, seus assentamentos coloniais e sua ocupação, Israel acaba figurando como bode expiatório para pecados de finados impérios europeus e regimes supremacistas brancos”, escreve o articulista do New York Times.

Para ele, reconhecer “que Israel é um tipo de inimigo de conveniência para uma visão de esquerda que sem isso fica sem correspondências no mundo real para suas teorias” não é pretexto para eximir o governo israelense de falhas e poupá-lo de críticas, é, sim, uma chave interpretativa para explicar porque o atual conflito em Gaza teve tanta repercussão enquanto outras guerras são ignoradas e porque essa suposta comoção em torno da crise humanitária em Gaza descamba “tão rapidamente da crítica para a caricatura, da simpatia aos palestinos para narrativas favoráveis ao Hamas, da condenação às políticas de Israel para o antissemitismo”.

O que está por trás dos atuais protestos antissemitas nas maiores universidades do mundo é a vitória momentânea de determinadas ideias, de uma visão de mundo empenhada em encontrar inimigos e que agora “agarra-se a Israel com uma sensação entusiástica de vingança”, que cede facilmente ao ódio. Esse espírito de vingança do nosso tempo é audacioso e desavergonhado porque acredita poder se passar por virtude.

Esse é o ponto enfatizado pela escritora Joanna Williams em seu artigo “How anti-Semitism became a virtue on American campuses” (Como o anti-semitismo se tornou uma virtude nos campi americanos), publicado na Spiked.

Ao comentar o caso das ex-reitoras de Harvard e da Penn – que, interpeladas no Congresso americano mostraram-se relutantes em reconhecer que apelar ao genocídio de judeus violava os códigos de conduta institucionais – Joanna Williams destaca que, com frequência, o antissemitismo não é contestado pelos gestores universitários e que, tendo em vista esse endosso acrítico, os protestos estudantis “são menos um desafio à ideologia da elite e mais uma demonstração prática de valores institucionais”.

Diversidade, equidade e inclusão?

A diversidade, a equidade e a inclusão (DEI) se tornou, segundo a autora, a ortodoxia universitária, mas, paradoxalmente, estas políticas supostamente antirracistas não estendem a proteção aos judeus:

É tentador gritar hipocrisia, mas isso tira o foco. Não é verdade que a política de identidade que alimenta as iniciativas da DEI simplesmente tenha um ponto cego para o povo judeu. Muito pior, ao classificar os judeus como “hiper-brancos” e, portanto, racialmente privilegiados, a política de identidade na verdade legitima a intolerância antijudaica”, explica a colunista da Spiked e continua:

Desde o início da sua educação, os estudantes de hoje absorveram uma compreensão grosseira de que as pessoas podem ser classificadas em diferentes grupos de acordo com a cor da pele, gênero e sexualidade, sendo que cada grupo tem um estatuto distinto como privilegiado ou oprimido. Exercícios inspirados na teoria crítica da raça, concebidos para levar as crianças a verificarem os seus privilégios, acompanham aulas de história que encorajam os alunos a insistirem apenas na vergonha das antigas potências coloniais. Em vez de considerar os ganhos da era dos direitos civis, os alunos são ensinados a ver a injustiça racial como um continuum sem fim, que vai da escravatura às leis Jim Crow e termina com o assassinato de George Floyd”.

Iludidos

Segundo a autora, as instituições de elite da América absorveram essa mensagem. Os seus estudantes, doutrinados na visão de que o mundo pode ser dividido entre opressores e oprimidos, foram ensinados a odiar o seu país. Notem que, em várias das manifestações recentes, bandeiras dos Estados Unidos foram queimadas pelos próprios estudantes americanos ou arrancadas de seu mastro e substituídas por bandeiras da Palestina. Essa loucura é a consequência de anos de internalização de uma cultura de ressentimento e culpabilização do Ocidente. É nesse quadro de ódio difuso e demência coletiva que se inserem as atuais manifestações estudantis antissemitas:

Neste contexto, alinhar-se com os palestinos e demonstrar hostilidade a Israel faz todo o sentido. Permite que os alunos se identifiquem com um grupo oprimido e se distanciem da sua própria nação e cultura. Não é surpreendente que tal sentimento possa facilmente descambar para o antissemitismo. Os estudantes têm sido iludidos ao pensar que quanto mais extremas forem as suas exigências para a abolição de Israel, e quanto mais vil for o seu ataque aos judeus, melhor demonstrarão a sua própria virtude. Terrivelmente, o antissemitismo passa a ser visto como uma posição moralmente virtuosa”.

O processo de assimilação dessa doutrina antiocidental perpassa todos os âmbitos culturais e pretende retroagir nas conquistas da civilização, abrindo cada vez mais espaço para a mentalidade revolucionária.

O espírito transgressor dos jovens precisa de outros estímulos. É preciso saber conduzir e canalizar o ímpeto juvenil para causas verdadeiramente nobres. Odiar a própria civilização, clamar pelo extermínio de um povo e pela aniquilação de um país soberano definitivamente não deveria ser uma causa pela qual lutar.