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Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.

O retorno triunfal de Trump e a humilhação da militância woke

Há algo de fascinante, quase tragicômico, na forma como as elites progressistas dos últimos anos se posicionam como sinônimos de democracia, virtude e justiça social. “Nós somos a democracia”, proclamam. Mas qualquer força política que se autointitule dona desse conceito está, na verdade, cavando sua própria cova. Democracia não aceita monopólios, nem mesmo o da virtude.

Os chamados woke, que dominam o debate público nas elites progressistas, não são apenas autoritários, são insuportáveis. A tentativa de encapsular as minorias numa “senzala ideológica” onde todos devem marchar no mesmo ritmo e repetir o mesmo discurso não só é um fracasso estratégico como uma traição à própria ideia de diversidade.

Negros, latinos, mulheres, gays e trans precisam pensar igual. Quem define como pensar? A panelinha de sempre. O clube do “todEs”, liderado por militantes que se comportam como meninas más de colégio rico, armadas com seus gritos de “racista!”, “fascista!”, “homofóbico!”. Quem ousa desviar minimamente do script é cancelado sem piedade.

E foi precisamente essa postura que levou o woke ao chão – humilhado, debochado e ignorado – nas eleições mais recentes dos Estados Unidos. Donald Trump não só sobreviveu ao apocalipse moral que previram, como expandiu seu eleitorado em minorias que, ironicamente, os progressistas juravam representar. O aumento do voto latino para Trump é um tapa na cara de quem achava que podia determinar o que cada grupo deveria pensar.

E as elites não entenderam nada. “Como pode alguém votar no Trump?” Essa pergunta, repetida em tom de indignação por muitos, revela mais sobre a incapacidade cognitiva de quem a formula do que sobre as escolhas do eleitorado.

Eis o ponto: você pode não gostar de Trump, mas precisa ser intelectualmente honesto para entender por que alguém vota nele. Se você não consegue, é porque está tão preso à sua bolha de virtude que prefere acreditar que o mundo é burro ou manipulado. É mais fácil culpar fake news ou a “maldade inerente” das pessoas do que encarar o fato de que, talvez, o problema seja você.

A obsessão identitária que contaminou o progressismo fez com que minorias fossem vistas não como indivíduos com vozes próprias, mas como blocos homogêneos que devem seguir o dogma imposto pelos iluminados do woke. É um projeto autoritário disfarçado de empatia. E o mais irônico? Quem mais odeia os woke são as próprias minorias que eles dizem defender.

O partido democrata deu espaço demais para essa maluquice e agora paga o preço. A Kamala Harris até que tentou, manteve distância do todEs na campanha. Mas a torcida, ah, a torcida é um desastre. Os woke funcionam como aquele fã-clube tóxico que arruína a imagem de qualquer famoso. Eles acham que estão salvando o mundo, mas estão apenas arrancando a soco espontaneidade das pessoas em nome de uma suposta virtude coletiva.

E, quando os resultados vêm, a surpresa é inevitável. Eles não percebem que são odiados. Que suas posturas são vistas como arrogantes, condescendentes e absolutamente insuportáveis. A resposta para o desastre? Trocar o povo. Se o povo não concorda com eles, o problema é o povo. Eles nunca têm culpa. Afinal, possuem o monopólio da virtude. Se estão sendo rejeitados, só pode ser por fake news, manipulação ou pela maldade intrínseca do outro.

E então devemos cancelar o woke? Não defendo que sejam cancelados, eles têm o direito de falar e de viver segundo seu sistema de crenças como qualquer seita. Defendo que sejam reconhecidos pelo que são: uma seita radical de filhinhos de papai que confundem militância com bullying. Eles podem existir, podem gritar seus “todEs” à vontade. Só não podem ser levados a sério. Não mais.

O que vimos nos Estados Unidos não foi só uma vitória de Donald Trump. Foi o maior tombo do woke. Uma humilhação pública. Quem sabe, um marco para uma mudança de ventos. Ninguém aguenta mais ser julgado por meninas más de colégio rico fantasiadas de militantes.

Democracia sob Ataque

Como ponto mais alto da agenda política em 2024, a disputa pela Casa Branca deixou recados relevantes, sendo o mais importante delineado pela enorme polarização que tomou conta do país. A realidade vivida nos Estados Unidos não é diferente a qualquer outra nação democrática em tempos recentes e já passou do momento de avaliarmos quais mecanismos vem contribuindo para este movimento de corrosão da democracia.

O 5º relatório do centro de análise de ameaças da Microsoft (MTAC) do ciclo de eleições presidenciais de 2024 revelou que Rússia, Irã e China intensificaram esforços para interferir nas eleições americanas por meio de operações de influência online. O relatório fornece detalhes sobre o uso de vídeos aprimorados por inteligência artificial, desinformação em mídias sociais, ataques cibernéticos para atingir candidatos e mecanismos para interromper o processo eleitoral. Como podemos perceber, este não é um trabalho realizado por grupos isolados, mas por atores que agem em sinergia e sincronia para atingir seu objetivo.

Contas vinculadas à Rússia em plataformas como X, Telegram e YouTube têm espalhado alegações falsas, incluindo vídeos, como aquele gerado por IA acusando Kamala Harris de caçar ilegalmente animais ameaçados de extinção na Zâmbia. Também circularam deepfakes da democrata zombando de uma tentativa de assassinato de Donald Trump e alegações infundadas de abuso sexual contra seu companheiro de chapa, Tim Walz. Como podemos perceber, são conteúdos fortes, com acusações graves que fogem aos parâmetros conhecidos de ataques de uma campanha política.

Grupos iranianos, se passando por americanos, procuraram encorajar eleitores a boicotar a eleição como forma de protesto contra o apoio dos EUA a Israel. Além disso, atores cibernéticos iranianos ligados ao Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica conduziram reconhecimento cibernético em sites eleitorais de estados indecisos no início deste ano e tiveram como alvo os principais veículos de comunicação dos EUA. Um processo meticuloso e calculado com o objetivo de desacreditar o sistema eleitoral.

Grupos de trolls ligados à China concentraram seus esforços de desinformação em candidatos republicanos que criticaram o Partido Comunista Chinês. Os senadores republicanos Marco Rubio e Marsha Blackburn, juntamente com os deputados, também republicanos, Barry Moore e Michael McCaul, foram alvos de falsas acusações de corrupção. McCaul enfrentou falsas acusações de uso de informação privilegiada e abuso de poder, especialmente após sua viagem a Taiwan, levando-o à lista negra do governo chinês. Marsha Blackburn, que lançou um anúncio de campanha mostrando-a “quebrando a China” para salvar os EUA, foi falsamente associada a doações eleitorais de fabricantes de opioides – uma operação realizada por robôs diretamente da China.

Este é um processo que certamente não está restrito aos Estados Unidos. O ataque de regimes autocráticos e autoritários ao redor do mundo com objetivo de enfraquecer e controlar democracias é denso, profundo e perigoso. Estamos diante de um mecanismo que opera nas sombras para manipular a opinião pública, destruir reputações e desacreditar sistemas eleitorais de forma direta e indireta. Certamente a beligerância e polarização encontradas em democracias como Brasil e agora os EUA não são mera coincidência. Enquanto a democracia estiver sob ataque, a nossa liberdade corre sérios riscos.

As lições de Bangladesh para a Venezuela e o Brasil

O poder não dura para sempre. Este é um dos ensinamentos mais claros que emergem da recente crise em Bangladesh, onde uma primeira-ministra de quatro mandatos, que já havia sido presa por corrupção, cai diante de uma onda de protestos massivos em que sua polícia assassinou mais de 200 estudantes. Isso traz lições tanto para a Venezuela quanto para o Brasil.

Em Bangladesh, a polarização política é intensa e intervenções militares são frequentes. A atual primeira-ministra, Sheikh Hasina, é filha do pai fundador da pátria, Sheikh Mujibur Rahman. Ele foi o primeiro presidente do país, apeado do poder pelo assassinato. Também foi o líder da guerrilha socialista que conseguiu a independência do Paquistão, numa guerra sangrenta.

Depois de um primeiro mandato conturbado, no final do século XX, Sheikh Hasina estabeleceu uma polarização com outra ex-primeira-ministra, Khaleda Zia. A violência escalou ao ponto de uma intervenção militar e uma campanha anti-corrupção dos militares que assumiram o poder. As duas acabaram presas.

Depois, as duas foram soltas para concorrer às eleições. Sheikh Hasina ganhou com folga e permaneceu durante 15 anos no poder. A situação foi se deteriorando até a gota d’água em junho. O país tinha uma cota de 30% do funcionalismo público para descendentes de quem lutou pela independência. Isso caiu em 2018 e agora a ex-primeira ministra pretendia reinstituir.

Estudantes de algumas universidades começaram a protestar, o movimento ganhou as ruas e a repressão foi violentíssima, com 200 assassinatos, além de sequestro e tortura de líderes do movimento. Nessa altura, nossa primeira-dama, Janja da Silva, recebeu a embaixadora do país, posou para fotos e usou até um figurino presenteado por ela na reunião internacional da Aliança de Combate à Fome.

A situação de Bangladesh se tornou insustentável. As próprias Forças Armadas concluíram que não valia a pena sustentar o regime com um país conflagrado, era uma situação sem saída. Foi providenciada a fuga da primeira-ministra para a Índia e sua saída do poder.

Para a Venezuela, a lição é clara: o poder de Nicolás Maduro, sustentado por eleições questionáveis e uma repressão violenta, é igualmente frágil. A recente crise eleitoral na Venezuela, com denúncias de fraude e repressão, evidencia a falta de legitimidade do governo Maduro. Em 2017, o país viu uma onda de protestos bastante ativa e com repressão brutal. Naquela época, a população ainda tinha alguma esperança de que mudanças no sistema eleitoral pudessem resolver a crise, mostrando à comunidade internacional as fraudes de Maduro nas eleições. Hoje, essa esperança foi perdida.

A oposição venezuelana conseguiu mostrar ao mundo as irregularidades do processo eleitoral, outros países reconheceram a fraude, mas Maduro segue no poder. As manifestações atuais são diferentes das de 2017, pois agora a população não espera mais que pequenas reformas eleitorais tragam mudanças. As pessoas estão nas ruas não para tentar derrubar um ditador que não possui a mesma liderança militar que Hugo Chávez tinha. A população está desesperançada e ciente de que a situação só mudará com uma pressão imensa e contínua.

Maduro também corre o risco de se tornar um problema para as Forças Armadas. Se o país continuar conflagrado, a solução dos militares pode ser semelhante à de Bangladesh. A oposição também não tem sobre os militares a mesma ascendência de Hugo Chávez, dependeria deles para se manter no poder.

Para o Brasil, a situação serve como um alerta. O governo de Lula, ao se alinhar com regimes autocráticos e figuras controversas, arrisca comprometer sua própria legitimidade e a posição do Brasil no cenário internacional. Lula é próximo de Maduro. Janja posava alegremente com a embaixadora de Bangladesh enquanto a primeira-ministra massacrava manifestantes em seu país.

Talvez seja inabilidade diplomática. Ou talvez o governo Lula esteja mesmo se alinhando ao pólo das grandes ditaduras internacionais.

Sem Biden, democratas conseguirão derrotar Trump?

O Partido Democrata dos Estados Unidos enfrenta um de seus maiores desafios históricos com a saída de Joe Biden da corrida presidencial. Era inevitável, considerando as crescentes preocupações sobre a saúde mental do presidente, algo amplamente discutido até mesmo entre democratas e antigos membros de sua campanha.

Nos EUA, a saúde de quem ocupa cargos públicos é uma questão séria, diferentemente do Brasil, onde figuras doentes já foram eleitas sem grande polêmica. Biden demonstrou publicamente sinais de desgaste, gerando questionamentos contínuos sobre sua capacidade de governar por mais quatro anos. Sua decisão de não concorrer novamente preserva seu legado e contrasta com a postura comum de políticos populistas, que se veem como os únicos representantes legítimos do povo.

A carta de Biden, anunciando sua retirada, é um exemplo de política madura e responsável, colocando o partido acima de suas ambições pessoais. A provável candidata democrata agora é Kamala Harris, embora a decisão final dependa da convenção nacional do partido, que reúne cerca de quatro mil delegados. Nomes influentes, como Nancy Pelosi, já endossaram Harris, indicando uma forte tendência a seu favor, apesar de seu desempenho modesto nas primárias anteriores.

A situação coloca os democratas em um dilema. Trocar Biden por outro candidato pode ser visto como fraqueza, enquanto mantê-lo seria arriscado devido às suas questões de saúde. A principal questão é: os democratas conseguirão encontrar alguém capaz de derrotar Donald Trump?

Vale lembrar que, no sistema eleitoral dos EUA, a vitória depende dos votos por estado, e não do total nacional. Trump venceu Hillary Clinton em 2016, apesar de ter menos votos totais, devido à sua vantagem em estados conservadores. A tendência é que essa dinâmica se repita, com Trump levando a melhor nos estados menores e mais conservadores.

Kamala Harris representa um progressismo elitista que podeser problemático com os eleitores norte-americanos, diferentemente de Biden, que não está nessa ala ideológica. Esta eleição será um teste significativo para os democratas.

O mais importante, no entanto, é que transcorra com serenidade. É preciso que a democracia dos EUA se mostre forte apesar da polarização. O resultado terá implicações globais, especialmente considerando a ascensão de potências como China, Irã e Rússia. A democracia mundial observará atentamente, ciente de que qualquer retrocesso nos Estados Unidos pode ter consequências internacionais profundas.

Vitória de Pirro

A direita nacionalista saiu derrotada mais uma vez nas eleições francesas. No entanto, desta vez, a reação contra Le Pen foi capitaneada por um somatório de forças: o centrismo de Macron aliado ao esquerdismo de Mélenchon. A soma forneceu ao grupo o direito de indicar o Primeiro-Ministro e governar a França em parceria com o Presidente, o que certamente exigirá uma enorme habilidade de ambos os lados.

O grupo liderado por Mélenchon, a Nova Frente Popular, é uma agremiação formada pelo Europa Ecologia, Partido Socialista, Partido Comunista da França e França Insubmissa, todos partidos de esquerda. Macron lidera o Ensemble, uma coalizão inicialmente fundada com nome de Ensemble Citoyens, que reúne partidos de tendências liberais, centristas e aqueles a favor da integração francesa na União Europeia. É formado pelo Renascimento, partido de Macron, maior dentro da coalizão, além do Horizonte, Movimento Democrático e União dos Democratas e Independentes.

A França será governada agora por esta coalizão de partidos de ambas as frentes. A Nova Frente Popular obteve 182 cadeiras no parlamento, enquanto o Ensemble atingiu 168, que somados a outros partidos de esquerda e centro deve chegar a 369 deputados de um total de 577. Será um desafio enorme acomodar todos interesses heterogêneos destes grupos na construção de políticas nacionais e no comando doméstico do país. Tudo indica que estaremos diante de um momento delicado que pode levar a impasses capazes de paralisar o avanço e modernização das políticas francesas.

Do outro lado, a Reunião Nacional cresceu de 89 para 143 cadeiras no parlamento, um grupo muito mais homogêneo e que terá facilidade de fazer oposição aos vencedores das eleições legislativas. Isto, em termos políticos, coloca o grupo em vantagem para as próximas eleições presidenciais em 2027, uma vez que não passará pelo desgaste de ser governo e permanecerá na confortável posição de ser a única opção competitiva contra a nova coabitação política entre centro e esquerda no poder.

Em suma, o triunfo deste domingo pode se transformar em uma vitória de Pirro – expressão utilizada para se referir a uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos irreparáveis, uma vez que a chegada de grupos, partidos e parlamentares tão heterogêneos ao poder realmente não serão capazes de produzir mudanças profundas. O resultado asfaltaria o caminho do nacionalismo de direita ao poder nas eleições de 2027, capazes de levar a Reunião Nacional ao Elysée e ao comando absoluto da Assembleia Nacional.

Além disso, os ventos de 2027 continuam a soprar em favor das direitas de corte nacionalista ao redor do mundo e sua consolidação em muitos países pode ajudar os nomes indicados pela Reunião Nacional a vencer as próximas eleições legislativas, bem como levar Marine Le Pen ao posto de Presidente.

Neste domingo, a direita nacionalista francesa saiu derrotada, enquanto a esquerda nacionalista saiu vitoriosa. Entretanto, nada altera o fato de que o populismo nacionalista saiu vencedor em ambos os lados do espectro político, e olhando sob este prisma, sem dúvida, quem saiu derrotada foi a população francesa, tanto no curto, como no perigoso longo prazo, que começa a ser irremediavelmente desenhado.

A França tomba nas mãos da extrema esquerda e do Islã

As redações ao redor do mundo respiram aliviadas, a aterrorizante “extrema direita” não venceu na França. A esdrúxula e incongruente união de última hora entre o campo macronista (Ensemble) e a Nova Frente Popular (França insubmissa, ecologistas, socialistas e comunistas) conseguiu – em uma reviravolta política que o Le Figaro descreveu como “surpresa monumental e um verdadeiro salto no desconhecido” – bloquear a temida ascensão do partido de Marine Le Pen. A barreira contra o Rassemblement Nationale deu certo, mas lançou a França no colo da extrema-esquerda.

Como assim extrema esquerda? Existe isso? Existe e acabou de obter uma grande vitória na França. Mas ela só existe no mundo real, não consta no vocabulário de boa parte dos jornalistas, que fizeram reserva de mercado das expressões “extrema”, “ultra” e “radical” para o outro lado do espectro político.

O cronista Eduardo Affonso se referiu a esse estranho fenômeno como um processo de “mexicanização da política e da linguagem”. Onde deveríamos encontrar reportagens ou análises políticas, encontramos comentário de novela mexicana:

“Mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho)”, escreveu Affonso.

Niilismo

Eu não tenho esse talento para escrever crônica, não possuo essa irreverência inteligente capaz de apontar o nó cego de uma questão séria, de modo leve, e fazer rir. Há certo peso na minha escrita. Ela é um pouco sombria. O mundo que vejo é sombrio. É um mundo que não percebeu que por trás da perda de sentido da linguagem está uma perda real de sentido, um niilismo que está gradualmente sendo substituído por novas ideologias, por novas religiões políticas.

E aqui não pretendo afirmar que aquilo que estão chamando hoje de “extrema-direita” seja a resposta adequada a essa crise. A própria direita política, inclusive a brasileira, parece não ter consciência de si nem do peso da sua história. Entendem-se como cidadãos de bem, belos e morais, esquecendo-se da quantidade de mal que a tentativa de introjetar na estrutura política e administrativa do Estado uma concepção moral absoluta já causou.

O que me parece é que, à esquerda e à direita, há muitos que já não identificam suas próprias raízes nem trazem consigo a consciência histórica dos males que a radicalização desses posicionamentos trouxe à humanidade.

Filosofia, política e linguagem

Um dos problemas básicos da filosofia tem sido o estudo da relação entre o ser e a linguagem ou a coisa e seu significado. Se atentarmos para isso, veremos que muitos problemas filosóficos poderão ser resolvidos com uma análise da linguagem, o que não reduz o escopo da filosofia, uma vez que o que resta como problematizável após a depuração dos falsos problemas é justamente aquilo que cumpre analisar com o rigor filosófico de quem se debruça sobre o real e não sobre o discurso.

O discurso político é o mais problemático do ponto de vista de uma abordagem filosófica porque faz parte do político o manuseio conceitual inadequado para fins de poder. Conjugado a isso, tem-se ainda a ambiguidade própria dos conceitos aí formulados, que não possuem a rigidez epistemológica de uma definição própria das ciências “não humanas”, nem a objetividade pretendida por aqueles que querem impor sua ideologia.

Faz parte do jogo político essa pretensão e essa ambiguidade, mas também faz parte do esforço de compreensão tentar limpar o terreno discursivo antes de tratar os problemas, deixando claro que os conceitos da ciência política não são estáticos nem unívocos.

Palavras como democracia, esquerda, direita, fascismo, liberalismo, conservadorismo, etc. não têm como referente algo fixo, com propriedades imutáveis, mas a própria experiência humana. Há uma experiência originária fundante do próprio conceito, que precisa servir de referência, mas há também as oscilações posteriores de significado, que se relacionam com as novas experiências históricas e com a história do uso que se faz do próprio conceito em questão.

“O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia”, escreveu Hannah Arendt no prefácio à sua obra Origens do totalitarismo.

Não se trata de direita e esquerda. Ambas descambaram nos regimes totalitários. Trata-se do ser humano e de sua dignidade. Pouco importa se um ou outro lado do espectro político arvora-se retoricamente defensor dessa dignidade. Nesse momento decisivo, pouco importa o discurso, mas a ação concreta, a oposição firme e não ambígua a tudo aquilo que é indefensável porque fere a humanidade na sua dignidade.

A extrema esquerda intolerante e antissemita

O mais proeminente e o mais radical dos líderes da aliança da esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, foi o grande vitorioso dessa eleição.

Mélenchon, que em certa ocasião chegou a bradar “La République, c’est moi!”, discursou logo após os primeiros resultados, exigindo que o presidente Emmanuel Macron chame a Nova Frente Popular para formar o governo. Segundo ele, após a vitória do NFP, Macron deve “sair, ou nomear um primeiro-ministro das nossas fileiras”. A aliança, disse ele, “está pronta para governar”.

Jordan Bardella (RN), por sua vez, lamentou que o resultado da votação tenha jogado “a França nos braços da extrema esquerda”.

O Rassemblement National não chegou ao poder dessa vez, mas ainda reúne um terço dos eleitores e suas pautas principais continuarão a se impor. A direita populista continuará forte na França e no mundo porque as pessoas se saturaram da hipocrisia de uma esquerda que segue à risca intelectuais amorais como Herbert Marcuse que, no texto “Repressive Tolerance”, negou o valor universal da tolerância para pregar literalmente “intolerância contra os movimentos da direita e tolerância aos movimentos da esquerda.”

Desde 7 de outubro de 2023 essa hipocrisia deixou de ser apenas estúpida para se tornar repulsiva. A esquerda, que retoricamente afirma estar do lado dos mais fracos, tolerou, justificou ou comemorou o pogrom bestial perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense.

A França, outrora palco da revolução em meio a qual os conceitos de direita e esquerda adquiriram seu significado político, sucumbiu, mais uma vez, ao radicalismo quando achou que seria uma boa ideia unir esquerda e extrema-esquerda antissemita numa “Nova Frente Popular”.

Essa aliança de extrema-esquerda, que saiu vitoriosa nessas eleições devido à renúncia de muitos candidatos macronistas em favor de candidatos da NFP que pudessem vencer o RN, foi firmemente rechaçada pelo que restou de inteligência, bom senso e idoneidade moral na França.

Em um manifesto no qual tentaram contrapor o universalismo humanista ao sectarismo de uma esquerda identitária e tribalista, os signatários do “arco republicano contra o antissemitismo” apelaram aos franceses para não votarem na “nova praga vermelho-marrom, não votar nesta mentira, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´, uma verdadeira impostura em circunstâncias tão trágicas.”

Percebam que o ponto de atenção do referido manifesto não é Marine Le Pen, o seu jovem pupilo Bardella, ou o seu partido Rassemblement National. A ameaça não é a tal “extrema-direita” que deixou as redações em polvorosa. Os signatários do manifesto sabiam que a hora era grave e a situação perigosa porque uma nebulosa político-ideológica antissemita estava avançando, distorcendo concepções, tornando-se cúmplice do terrorismo islâmico e aliando-se àqueles que querem “impor a sharia obscurantista”.

Enxergar isso e lutar contra isso seria o dever de uma consciência realmente humanista e autenticamente democrática ou republicana. Diante da urgência dessa luta, como afirma o manifesto, esquerda e direita perdem sua relevância conceitual, são posições secundárias. Só existe esquerda e direita dentro da política democrática, que é uma invenção ocidental; em uma República Islâmica só existirá a vontade do aiatolá, que é a vontade de Alá.

Islamo-esquerdismo é um fascismo

O próprio filósofo francês Michel Onfray, um dos signatários desse manifesto, autor de mais de cem livros, já explode em si mesmo a falsa ideia de que esquerda e direita são conceitos estáticos e suficientes para dar conta de fenômenos políticos e de pessoas em constante transformação.

Ele, que já se autointitulou um “socialista libertário não liberal” e já foi descrito como “puritano hedonista”, “revolucionário dândi” e outros paradoxos, parece fazer parte hoje daquele time de ateus que reconhece o valor incontornável da civilização judaico-cristã e que, por isso, insiste em defender o Ocidente contra seus inimigos internos e externos. “Hoje você tem o direito de ser antissemita, racista, homofóbico, misógino, desde que seja em nome do Islã”, denuncia o filósofo, que hoje se entende como um “conservador de esquerda” ou um “anarquista conservador”.

Seja como for, o prolífico autor tem sido uma das poucas vozes lúcidas na luta atual contra as loucuras do identitarismo woke e do islamo-gauchismo (islamo-esquerdismo) que assola a França. As recentes declarações e publicações de Michel Onfray têm o condão de desmontar a ideia preconcebida de que o ódio aos judeus é exclusividade da extrema-direita.

Em artigo que publicou no jornal Le Figaro logo após o ataque bestial de 07 de outubro, ele explica como o antissemitismo, que sempre esteve presente na esquerda, retornou com grande força por trás do antissionismo de fachada:

“Mélenchon, e os da LFI e do NUPES que o seguem, herdam este antissemitismo de esquerda. Depois da Shoah, não podemos mais ser antissemitas à moda antiga, somos agora antissionistas; a mudança semântica permite-nos vestir a velha podridão com um novo casaco. A incapacidade em que esta esquerda se encontra de chamar de terrorista um massacre em massa de populações civis inocentes, mulheres, idosos, crianças incluídas, por serem judeus, o que constitui um crime contra a humanidade, acrescenta um capítulo à história do antissemitismo de esquerda. Normal que, não querendo ver essa infâmia entre eles, afirmem encontrá-la entre Marine Le Pen, culpada de ser filha de seu pai!”, escreveu Onfray no referido artigo intitulado “O islamo-esquerdismo é um fascismo.”

E concluiu:

“Marx fez da vanguarda esclarecida do proletariado a elite destinada a impor a sua ditadura; Lenin queria que esta vanguarda fosse constituída militarmente como um partido. […] Mélenchon substitui o proletariado messiânico pela população composta pela delinquência periférica, pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pelo niilismo dos black blocs, pelo jihadismo dos subúrbios que anda de mãos dadas com a misoginia, a falocracia e, claro, o antissemitismo. Ele acredita que está explorando isso; mas ele é de fato quem está sendo instrumentalizado.

Os apoiadores jihadistas não querem saber de mulheres cisgênero, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, casais de lésbicas, transições transexuais, barrigas de aluguel, saladas de quinoa, turbinas eólicas e bicicletas elétricas da pequena burguesia

Nupesiana. Este braço que Mélenchon arma para seus fins pessoais se voltará contra ele quando chegar a hora. Nestas horas terríveis, os judeus seriam os primeiros a serem sacrificados. E, portanto, a França com eles”.

Como se vê, alguns filósofos, por insistirem em lidar com o real por trás dos discursos, acabam sendo capazes de conceber discursos proféticos.

Livres da Polarização

*Artigo de Augusto de Franco, Roberto Freire, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini

Há no Brasil de hoje dezenas de milhões de eleitores que não se sentem representados pelas forças que dominam a arena política. São esses – em boa parte – os que apoiam a democracia como um valor universal e que são contra toda sorte de preconceitos e discriminações. São os que acreditam na eficiência do Estado, mas defendem uma economia livre, querem aliar desenvolvimento e sustentabilidade, desejam empreender, mas precisam de apoio ou, quando menos, que não sejam atrapalhados, os que sabem que segurança é inteligência e a violência, irmã da desigualdade.

São os que não acham que um pouquinho de inflação faz bem, nem querem leis dos anos 1940 regulando o trabalho, como ficou patente com a decisão dos líderes governistas de abandonar o projeto com o qual o governo pretendia transformar em trabalhadores CLT os motoristas e entregadores de aplicativo. São os que não veem legitimidade em invasões e depredações de patrimônio público ou privado, sejam eles patrocinados pelo MST ou por partidários de golpes de Estado. São os que defendem, de forma intransigente, as liberdades de expressão, organização e manifestação de acordo com as regras do Estado Democrático de Direito.

Eles não estão nos extremos ou polos que viraram instrumento de análise da divisão a que o lulismo e o bolsonarismo submeteram a sociedade, ambos em busca do poder pelo poder. Eles não defendem, nem justificam, grupos terroristas como o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e demais milícias do Oriente Médio que servem aos propósitos da teocracia iraniana e estão sendo usados pelas grandes autocracias do planeta contra os regimes democráticos – tampouco apoiam Nicolás Maduro, Vladimir Putin ou outros ditadores, de esquerda, de direita ou fundamentalistas religiosos.

Quem falará pelos cerca de 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas? Os partidos políticos falharam em interpretar os sentimentos, captar as aspirações e endereçar soluções para os problemas desse imenso contingente populacional. Os que não minguaram viraram satélites dos dois campos que alimentam a clivagem social e política brasileira. Não por outra razão, pesquisa recente do Datafolha mostra que aumentou a desconfiança da população dos partidos políticos. Os números, aliás, são alarmantes: só 43% confiam “um pouco”.

A construção de alternativas à polarização, portanto, terá de partir dos insatisfeitos com esse estado de coisas. E, nesse campo, há grande diversidade. De intelectuais a políticos, passando por jovens idealistas, professores, profissionais liberais, trabalhadores de chão de fábrica e de empresas de tecnologia, entregadores e motoristas de aplicativos, empresários, agricultores, artistas, sindicalistas, cientistas, enfim, pessoas comuns que querem viver, estudar, trabalhar, empreender, se divertir, amar e se congraçar com seus semelhantes sabendo que somente a democracia pode configurar ambientes pacíficos onde seus direitos políticos e suas liberdades civis sejam respeitados e valorizados.

Uma oposição democrática aos populismos, no governo ou fora dele, já existe no Brasil. Ela ainda é pequena e está dispersa, mas não crescerá por mágica nas eleições deste ano ou nas próximas. Isso só vai acontecer se as forças políticas democráticas começarem a se articular para influenciar de pronto a agenda nacional, resgatando o espaço público dos populismos de esquerda e direita que o sequestraram. Isso exige conversação livre e franca entre pessoas que não imaginam ter o monopólio da verdade e que estão abertas a ouvir e entender os pontos de vista do outro e, se necessário, a mudar seus próprios pontos de vista, seja em busca de convergência, seja porque alguém teve uma ideia melhor. Isso exige empenho contínuo, um exercício permanente de olhar para a frente, de pensar o País para além das disputas de poder.

Há muita gente disposta a isso, dentro e fora dos partidos, centristas, à esquerda ou à direita, nos mais diversos Estados. Gente cansada do destrutivo e paralisante “nós contra eles”. Gente que espera há anos por políticas que deram certo em outros lugares do mundo, independentemente da ideologia de seus idealizadores, mas que aqui são sabotadas pela polarização. Seja na educação, com a reforma do ensino médio, ou no saneamento básico, com o marco legal, para ficar em dois exemplos recentes de tentativa de retrocesso.

Que todos esses comecem a se conectar, virtual ou presencialmente, não importa se em grande ou pequeno número. O resultado desse esforço não será uma frente de pessoas que pensam igual, mas uma ecologia de diferenças coligadas. Não se articularão apenas para lançar candidatos, embora daí nascerão opções aos extremos, mas para congregar quem deseja trabalhar pela despolarização. Em nome dos milhões de brasileiros que almejam viver em um país melhor e estão fartos de quem lucra com a divisão da sociedade brasileira.

*Roberto Freire é político e advogado, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini são políticos e médicos, Augusto de Franco é político e escritor.

Verdade e liberdade: John Milton ou Alexandre de Moraes?

Há dois tipos de leitores: aqueles que querem ler o que ainda não sabem, confrontar suas ideias prévias e ampliar sua compreensão das coisas e aqueles que querem ler o que já sabem para ter mais certeza de que estão certos e confrontarem com mais confiança os que pensam diferente.

O debate público no Brasil é majoritariamente protagonizado por esse tipo que quer impôr sua verdade. São pessoas que adotam determinado ponto de vista sobre questões complexas e, em vez de ponderarem sua análise e refinarem sua opinião, apressam-se para encontrar e reproduzir interpretações reducionistas que corroborem a sua estreita visão.

O debate atual em torno de fake news, tentativa de golpe de estado, defesa da democracia, discurso de ódio, liberdade de expressão e seu alegado cerceamento suscita questões para as quais não há resposta rápida, fácil, única e definitiva.

A despeito disso, quando nuances do debate são apresentadas, o analista que ousou não aderir prontamente às narrativas em voga é execrado pela militância com o neologismo de “isentão”, criado pelos radicais que querem evitar a dissidência e homogeneizar o discurso.

Muitos dos que hoje se arrogam defensores da liberdade de expressão são reacionários autoritários que demonizam os seus adversários e que tentariam calá-los se tivessem poder para isso; muitos dos que tiveram suas contas nas redes sociais suspensas usaram-na, de fato, para pregar uma ruptura institucional.

Eles não querem que isso seja dito. Bolsonaristas ficam incomodados quando esses detalhes são trazidos ao debate. Eles querem ir ao exterior denunciar cerceamento da liberdade de expressão no Brasil sem tocar no mérito do tipo de expressão que está sendo cerceada; querem denunciar ao mundo que a democracia brasileira está sob ataque do Judiciário sem fazer menção ao ataque contra a democracia intentado pelo Executivo.

Por outro lado, aqueles que retoricamente se pintam como mais afeitos à democracia também incorrem em fake news, discursos de ódio e manifestações violentas sem que, no entanto, sofram a mesma retaliação jurídica. Se a força da lei só incide sobre o lado A e faz vista grossa para o lado B, quem assim instrumentaliza a lei é quem mais descaracteriza a democracia que diz querer preservar.

O ministro Alexandre de Moraes tomou para si a prerrogativa de vigiar e punir toda e qualquer suposta ameaça à democracia, mas, como bem resumiu Felipe Moura Brasil, ao usar “decisões obscuras em inquéritos viciados para censurar e pôr no mesmo saco publicações legítimas (fato incômodo, crítica, opinião) e criminosas (calúnia, ameaça etc.)” ele “permite que delinquentes virtuais se limpem na sujeira dele, em nome da liberdade de expressão”.

A democracia brasileira é ainda precária, frágil e disfuncional. Sua engrenagem atual retroalimenta um Estado corrupto que mantém um sistema de privilégios. O que havia de melhor nela era a liberdade que tínhamos para denunciar, criticar e, assim, manter a esperança de reformá-la gradualmente. Agora, porém, sob o pretexto de preservar o regime que torna a liberdade possível, a liberdade possível de criticar o regime está sendo minada.

Há intolerantes de ambos os lados, esquerda e direita, que querem homogeneizar o discurso, calar a oposição e, para piorar, há juízes censores que querem o poder de editar esse debate extremamente polarizado e caótico.

Política e verdade

Apesar da impaciência que talvez o estimado leitor possa ter com a filosofia e a literatura, tendo em vista a urgência política, teimarei em finalizar esse texto trazendo para a conversa uma filósofa e um poeta.

Para Hannah Arendt, a pretensão de verdade absoluta no âmbito político é uma pretensão tirânica porque política é lugar de doxa (opinião) e não de episteme (conhecimento teórico absoluto e rígido). Não deve haver verdade dogmática no âmbito político, mas há um outro tipo de verdade que a política não pode negligenciar: a verdade factual.

O fato é a matéria bruta da opinião e a opinião é a matéria-prima da política. Não se deve confundi-los. Quando uma opinião é considerada fato e um fato é considerado mera opinião, o pensamento político representativo e plural perde a sua base de apoio.

A opinião, diz Arendt, requer a verdade factual como suporte e a própria “liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação factual seja garantida.

A mentira ou, em linguagem mais atual, a disseminação de fake-news é, pois, um problema ou um desafio a ser enfrentado pela democracia. Ocorre, porém, que a censura não resolve e ainda piora o problema.

Como já foi dito, as controversas decisões censórias do ministro Alexandre de Moraes incorreram no grave erro de não fazer as devidas distinções entre fato, opinião, fake news e incitação ao crime.

Analisar é separar, distinguir. Diante da dificuldade de assim proceder, optou-se pela via fácil da repetição, generalização e ausência de fundamentação das decisões. Para não deixar passar nada, o ministro censurou tudo. Ao fazê-lo, violou direitos e garantias fundamentais de alguns cidadãos.

Milton contra Moraes

As redes sociais trazem novos desafios às sociedades democráticas, que são, antes de tudo, sociedades plurais e abertas, nas quais há heterogeneidade, profusão de discursos, conflito de ideias, oposição e dissenso. A polêmica atual em torno da regulamentação das redes favorece uma rápida digressão final, na forma de retorno a um clássico liberal.

Em 1644, John Milton publicava Areopagítica, um opúsculo contra a pretensão do parlamento inglês de reestabelecer a censura. Nessa obra, Milton tentou mostrar que a determinação do verdadeiro e do falso, do que deve ser publicado ou suprimido, não pode estar nas mãos de poucos homens que são, em geral, de juízo vulgar. Sua argumentação mais forte, porém, aponta para o valor intrínseco da liberdade.

A censura é ruim não apenas porque é ineficaz no combate ao erro e ao vício, mas porque viola a liberdade, que é um valor positivo e necessário para o progresso do conhecimento. A censura impede que, no confronto com o erro, a verdade possa emergir, uma vez que a verdade e a falsidade precisam lutar para que a primeira venha a se estabelecer, ainda que provisoriamente. Milton já apontava, portanto, a necessidade do pluralismo para o progresso da coletividade e registrava sua rejeição à autoridade dos censores.

Optar pela censura é o mesmo que dizer que as pessoas devem ser tratadas como crianças necessitadas de tutela. “Serão elas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento que não seriam capazes de engolir nada que não passasse pelo filtro de um censor?”, pergunta John Milton, em 1644.

Seremos os brasileiros tão ingênuos, infantilizados, manipuláveis e ignorantes que não somos capazes de julgar por nós mesmos uma postagem em rede social sem precisar do filtro do censor Alexandre de Moraes? Perguntamos nós, em 2024.

As implicações políticas do affair Musk versus Alexandre

Não é surpresa ver bolsonaristas pegando uma carona nas falas de Elon Musk e lulopetistas indignados com o bilionário sul-africano e defendendo o Alexandre. Nem os bolsonaristas, nem o Musk, nem o PT têm a ver com a democracia. Tudo isso é fruto da vil polarização populista.

A polarização já capturou as interpretações sobre a controvérsia Elon Musk x Alexandre de Moraes. O que está em discussão, do ponto de vista da democracia, nada tem a ver com Musk ser dito de extrema-direita, se apoia ou não Trump por baixo dos panos, sabe-se lá se anarco-capitalista, libertarista ou defensor de uma impossível liberdade irrestrita, racista ou supremacista. Nem tem a ver com as origens de Alexandre de Moraes, com suas ligações pregressas com dirigentes do quase-extinto PSDB e agora estar alinhado ao PT ou com o fato de ter sido indicado ao STF por Michel Temer. Envereda-se por essas alegações para reduzir tudo ao jogo bipolar extrema-direita x esquerda, reacionários fascistas x progressistas, golpistas x defensores do Estado de direito, bilionários imperialistas nos EUA x defensores da soberania nacional do Brasil, apoiadores da liberdade de expressão x proto-ditadores que querem extingui-la; para resumir: bolsonaristas x lulopetistas. Assim fica fácil não responder as questões. Se Musk é bolsonarista (e tudo mais que não presta) ou se Alexandre é petista (idem), então estão resolvidas todas as questões.

Mas as questões que realmente importam não estão respondidas. São, basicamente, as seguintes. O império da lei em uma democracia se traduz pelo império das instituições encarregadas de aplicá-la? A soberania popular em uma democracia pode ser exercida por alguma instituição considerada soberana? Existem entes soberanos em uma democracia? Os indivíduos em uma democracia são cidadãos ou súditos de um poder tido por supremo? O STF é chamado de suprema corte porque não há nenhum outro tribunal acima dele a quem os cidadãos possam recorrer, ou porque é um poder supremo mesmo? E há mais questões conexas. A democracia se reduz à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas? Estado de direito é a mesma coisa que democracia? Por último, cabe a um tribunal ou aos seus membros assumir um papel militante em defesa da sua concepção de democracia (sobretudo quando essa concepção não foi referendada pelo voto dos cidadãos)? Em nome dessa defesa da democracia membros de um tribunal podem acumular as funções de investigar, acusar e julgar, constitucionalmente assinaladas a poderes distintos e independentes?

Não sabemos se o X poderá ser bloqueado no Brasil. Nunca foi bloqueado em uma nação democrática. Sim, em 18 anos de existência, nenhuma democracia bloqueou o Twitter. Isso só aconteceu em ditaduras como a China, a Coreia do Norte, o Irã, a Rússia, o Turcomenistão e Mianmar. O PT e o STF querem colocar o Brasil nessa lista das piores autocracias do planeta?

Se o bloqueio não acontecer agora, num rompante prepotente de quem confunde a soberania da lei com a sua própria soberania, tudo vai depender do rumo que as coisas tomarem nos próximos meses. Se o lulopetismo tiver um resultado muito adverso nas próximas eleições, o PT vai turbinar essa espécie de guerra civil fria para a qual foi feito e na qual se sente confortável. E será correspondido pelo bolsonarismo. Ou seja, os populistas, ditos de esquerda ou de direita, vão acelerar o tudo ou nada visando apenas vencer as eleições de 2026 a qualquer preço para se delongar no poder ou para voltar ao poder. E com esse crescimento da polarização, poderão vir, sobretudo da parte de quem controla o Estado, inevitáveis restrições de direitos políticos e liberdades civis. affaire Alexandre versus Musk nos obriga a acender o alerta amarelo.

Não houve, até agora, desbloqueio de contas censuradas pelo STF, nem bloqueio do Twitter, mas algo mudou na conjuntura. O mundo agora está tomando conhecimento de que existe alguma coisa errada ou, pelo menos, discutível, no papel militante que a suprema corte brasileira vem assumindo em nome da defesa da sua visão particular da democracia. Alguns ministros, não raro, reduzem a democracia à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas. Mas não são a mesma coisa. Repetindo, então, pela importância do dito. A democracia é o império da lei e não o império das instituições encarregadas de aplicá-las. Nenhuma instituição pode ser soberana em uma democracia e os cidadãos não podem virar súditos de qualquer instituição, nem mesmo da chamada ‘corte’ dita ‘suprema’ (duas designações, aliás, pouco consonantes com o espírito da democracia).

Mas os democratas nada temos a ver com Elon Musk. E o Twitter, aliás, nem foi invenção dele. Cada um deve publicar naquela mídia o que bem entender, assumindo as responsabilidades por isso. O fato do Musk ser dono do agora chamado X e nele emitir opiniões contrárias ao que acreditamos não viola a democracia, ainda que suas opiniões possam ser antidemocráticas. Também não cabe a nós fazer avaliações morais sobre Musk, dizer que ele é hipócrita porque critica Alexandre, mas não critica a China. Ora, o presidente do Brasil, Lula, também não critica a China, a Rússia e outras ditaduras enquanto posa de salvador da democracia. Ou dizer, como fez ontem o Guga Chacra na Globo News, que ele é um babaca. Muitos proprietários de empresas cujos serviços utilizamos também poderiam ser avaliados por alguém como babacas. E daí? É como não querer pegar um avião num aeroporto construído pela Odebrecht porque não gostamos de seus donos ou reprovamos os crimes que cometeram. Por último, não nos cabe – para sabujar o PT – abrir uma guerra contra Musk, investigando sua vida privada ou profissional para ver se ele bateu na babá, roubou dinheiro do pai ou censurou seus próprios funcionários. Ninguém vai casar com o Musk. Ademais, o Twitter é apenas uma mídia, quer dizer, um meio de interação social, que podemos usar ou não.

Procedimentos jurídicos de exceção por parte do STF foram admitidos ou tolerados para preservar a democracia dos ímpetos golpistas de Bolsonaro. Mas aquela ameaça foi desarmada. Treze meses depois da cenográfica intentona de 8 de janeiro, não há mais perigo iminente para a democracia (se é que algum dia realmente houve, pois querer dar um golpe não significa que ele seria bem-sucedido). O STF vem se comportando como se estivéssemos em 2021 ou 2022 ou na passagem de 2022 para 2023, mas o fato é que já estamos em abril de 2024, com um presidente eleito exatamente porque se colocou contra as ideias e práticas do bolsonarismo. E esse novo presidente está governando sem contestações disruptivas da ordem democrática. Estão esticando uma configuração passada para torná-la eterna de modo a justificar a adoção de medidas excepcionais, inclusive a inconstitucional censura. Ou o STF acorda para isso ou vai continuar investindo na polarização e na guerra civil fria que sobrevirá – com alto risco, aí sim, de enveredarmos por um caminho de autocratização da democracia brasileira. Passou da hora de voltar à normalidade.

Terminamos o presente artigo com esse apelo aos membros do STF. É hora de parar com isso. Em qualquer hipótese o desfecho será desfavorável para a instituição e para o país. Não importa se os populistas (de direita e de esquerda) estejam querendo explorar o caso Musk para turbinar a polarização. Urge voltar à normalidade.


P. S. (10/04/2024). Uma mensagem no X a partir do que ficamos sabendo pela imprensa depois do artigo acima ser publicado.

Só uma pergunta. O governo Lula está criando uma teoria da conspiração para dizer que as diatribes de Musk na verdade são parte de uma grande articulação da extrema-direita internacional com parlamentares bolsonaristas para atacar o PT, a soberania do Brasil e o Sul Global?

Só uma resposta. Ora, é óbvio que os bolsonaristas pegariam uma carona nas falas de Elon Musk e que os lulopetistas ficariam indignados com o bilionário sul-africano e defenderiam o Alexandre. Não precisa de conspiração nenhuma para isso acontecer.

Uma reflexão final. ‘Não reunir é a derradeira ordenação’ (uma lição de Frank Herbert). A “orquestração” não precisa ser organizada. Ela é processada pela polarização. Temos de entender que a polarização é um programa, isso quer dizer que ela programa os aglomerados. É um programa de fazer lados.