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A segunda guerra fria: um resumo iconográfico

Antes de qualquer coisa é preciso saber que uma segunda grande guerra fria já está instalada. E que ela não é, como a primeira, uma divisão de blocos Oeste x Leste compostos por países. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é uma campanha de exterminação das democracias liberais promovida pelas maiores autocracias do planeta que se instala dentro de todos os países, capturando setores internos não-liberais desses países, sobretudo governos e forças políticas populistas.

Na segunda guerra fria há conflitos quentes convencionais (entre países, como Rússia x Ucrânia) e não-convencionais (entre grupos sub ou não nacionais entre si e contra países, como Hamas x Israel), mas predomina a netwar: a nova forma de guerra do século 21. Países autocráticos estão na ofensiva nessa forma de guerra que tenta interferir na geopolítica regional e mundial e, além disso, na política interna de cada país. A netwar não é menos perigosa do que as guerras frias convencionais. Ela pode ensandecer multidões que, dependendo das circunstâncias, não hesitarão em tomar de assalto as instituições democráticas.

Há um campo autocrático e um campo democrático no mundo atual. Potencialmente estão no campo autocrático, segundo a classificação do V-Dem 2023 (modificada por mim), 33 autocracias fechadas (não-eleitorais), 56 autocracias eleitorais e um número não-determinado (menor do que 58) de regimes eleitorais parasitados por populismos (ainda chamados, benevolamente, de democracias). Potencialmente, ainda segundo o V-Dem 2023 modificado, estão no campo democrático as 32 democracias liberais e um número não-determinado (também menor do que 58) de regimes eleitorais formais não-parasitados por populismos (que poderiam ser chamados, com mais razão, de democracias apenas eleitorais).

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Para além do campo potencial, há um eixo autocrático se formando no mundo em que vivemos, imerso desde o início do século em uma terceira onda de autocratização.

O objetivo do eixo autocrático é exterminar as democracias propriamente ditas (liberais ou plenas).

Há um campo democrático potencial, mas não propriamente um eixo democrático formado por democracias plenas ou liberais. No apoio à Ucrânia contra a invasão do ditador Putin chegou-se a formar uma inédita coalizão de democracias liberais (que poderia ser considerada um embrião desse eixo).

O eixo autocrático está capturando regimes eleitorais parasitados por populismos.

No campo democrático estão as democracias formais, não parasitadas por populismos.

Tudo isso é um briefing. Para explicações mais detalhadas leia o artigo Democracia é democracia liberal.

A OTAN, a Rússia e a Ucrânia

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados Unidos, que lideraram a aliança vitoriosa, empenharam-se em estabelecer políticas que, de um lado, consolidassem sua posição de liderança, e, de outro, que contivessem a União Soviética e o comunismo em expansão.

De início, assistiu-se a uma reversão das alianças: os países derrotados, que compunham o Eixo – composto por Alemanha, Itália e Japão –, foram cooptados pelos vencedores e aproximaram-se da coalizão que venceu a guerra. Para essa reversão das alianças, foi essencial o Plano Marshall, que, iniciado em 1948, forneceu recursos para a recuperação e a reconstrução dos países europeus atingidos pelo conflito. Os países derrotados foram desarmados e passaram a enfrentar fortes restrições ao desenvolvimento de suas forças armadas e de sua indústria bélica, não podendo mais ter ou fabricar armas ou equipamentos de ataque, mas apenas de caráter estritamente defensivo. Já em 1952, os países europeus participantes do Plano Marshall atingiram os níveis de produção do período anterior à Guerra, o que abriu caminho ao futuro mercado comum europeu1.

Esse progresso econômico, com forte ajuda das subvenções americanas, contribuiu para frear o avanço do comunismo na Europa Ocidental, onde os partidos de inclinação marxista aumentavam sua participação – a exemplo do que ocorria na Itália e na França. No entanto, no Centro e no Leste europeu o comunismo aumentava sua presença e foi-se formando um bloco de países comunistas, liderados pela União Soviética. O mundo dividia-se em dois campos antagônicos e consolidava-se o período da Guerra Fria, no qual os blocos rivais se digladiavam, disputando influência política, econômica, industrial e tecnológica. A corrida armamentista entre os dois polos acirrava-se continuamente. Tratava-se de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um lado correspondia direta e simetricamente à perda do outro, e os líderes, os Estados Unidos e a União Soviética, impunham exigências de alinhamento e lealdade extremamente rígidas.

A expansão do comunismo, incentivada pela União Soviética, bem como pela China, sua aliada, atingia ou ameaçava países em várias partes do mundo, o que levou os Estados Unidos a empreenderem uma política de contenção, ou containment. Essa política deve muito de sua base teórica ao diplomata norte-americano George Kennan, que, em 1947, servindo em Moscou, redigiu o famoso long telegram , depois publicado na revista Foreign Affairs sob o pseudônimo “X”. Observe-se que a China, que se tornou comunista em 1949, era ainda um país subdesenvolvido, e o começo do seu crescimento econômico, tecnológico e militar data das décadas de 1970 e 1980. Assim, a principal preocupação dos EUA durante toda a Guerra Fria era a URSS, situação que perdurou até a derrocada da União Soviética no início da década de 1990.

Ao ter a estrutura estatal comunista desmontada, a então União Soviética, sucedida pela Rússia, viveu forte crise institucional, econômica e social. As poderosas forças militares soviéticas chegaram a ficar sem recursos para honrar os salários dos soldados, situação humilhante para uma antiga superpotência. A estrutura do bloco

soviético também ruiu. Os EUA poderiam então ter tentado atrair a Rússia para o sistema economico ocidental e buscar atrai-la também para valores e costumes ocidentais, pelos quais a juventude de então tinha fascinação.

Em 1949, formou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, sob a égide dos Estados Unidos. Tratava-se de mecanismo regional de defesa coletiva: seu tratado constitutivo previa que um ataque a qualquer de seus membros seria considerado um ataque contra todos (capítulo 5 do tratado constitutivo); todos os demais membros, portanto, tinha a obrigação de repelir agressões bélicas contra qualquer de seus integrantes. A reação soviética e de seus aliados europeus à criação da OTAN foi a fundação, em 1955, do Pacto de Varsóvia, estrutura igualmente defensiva.

A OTAN perdeu seu objeto principal que era defender o Ocidente da União Soviética e da expansão do comunismo quando ocorreu o desmantelamento da URSS e o consequente fim do regime comunista entre seus aliados do Leste europeu. No entanto, o acordo atlântico foi mantido e expandiu-se dos 12 membros iniciais para os atuais 31, contando a Finlândia2 e a Suécia, que está em processo final de adesão. A expansão da OTAN foi um dos motivos alegados pelo Kremlin para a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, quando seria iminente a colocação de baterias de mísseis próximo à fronteira russa, em território ucraniano, e mesmo a adesão da Ucrânia à OTAN. A expansão da OTAN aumentou o sentimento de cerco da Rússia, que existe desde os tempos imperiais.

A OTAN tem sido crucial na defesa da Ucrânia por meio do fornecimento de armamentos e de informações, além do treinamento de tropas. O apoio dos países da OTAN tem permitido à Ucrânia resistir à invasão de uma potência que conta com forças muito superiores. A aliança atlântica, que se encontrava dividida antes da invasão, uniu-se contra a ameaça russa, movimento que não era esperado pelo governo do Kremlin.

As próximas eleições nos Estados Unidos serão importantes para definir os rumos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O governo anterior dos EUA caracterizou- se por críticas acerbas à Aliança Atlântica, alegando que o peso da defesa da Europa recaía principalmente sobre os norte-americanos. No caso de vitória dos Republicanos no sufrágio deste ano, é possível projetar que em um Governo Trump, se retomar sua política do primeiro mandato, haverá uma significativa diminuição do apoio dos EUA à Ucrânia, deixando a Europa responsável pela defesa ucraniana, o que desequilibraria a guerra a favor da Rússia.

Artigo Embaixador Marcio Florencio Nunes Cambraia em conjunto com o Cientista Político Marcio Rodrigo Penna Borges Nunes Cambraia.

China aperta a pressão contra a democracia de Taiwan e ganha apoio do Brasil

No último sábado, 13 de janeiro de 2024, Lai Ching-te venceu as eleições presidenciais de Taiwan. É o representante do Partido Democrático Progressista, o governista, que chega ao poder pela terceira vez seguida, uma sequência inédita.

Foram eleições bastante tensas. O Partido Comunista Chinês definiu o pleito como a decisão entre guerra e paz. Lai Ching-te foi denunciado diversas vezes pelo país como um separatista perigoso.

Cinco dias depois das eleições, na quinta-feira, 18 de janeiro, a China realizou manobras militares e cruzou o estreito entre os dois territórios. Segundo Taiwan, foram manobras de combate aéreo e naval com 24 aeronaves e 5 embarcações. O estreito entre os territórios foi cruzado por 11 aeronaves.

No dia seguinte, o ministro das relações exteriores da China, Wang Yi, foi recebido oficialmente em Brasília pelo nosso ministro das relações exteriores, Mauro Vieira. Ele declarou que o Brasil apóia a política de “uma só China”, ou seja, a incorporação da democrática Taiwan pelo governo chinês.

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Taiwan, em 1912. Oficialmente, chama-se República da China. A China tem o nome oficial República Popular da China. São duas Chinas, por isso o nome de “uma só China”.

As coisas começaram a mudar na Revolução Comunista Chinesa, em 1949. Esse regime jamais reconheceu a existência de Taiwan. Era considerada uma província rebelde, como segue até hoje.

Na época, no entanto, a China era representada na ONU por Taiwan, que tinha até assento no Conselho de Segurança. Mas era a época da Guerra Fria e as coisas começaram a mudar. Em 1971, os Estados Unidos pararam de dar apoio a Taiwan no Conselho de Segurança. Vários outros países democráticos do ocidente seguiram na decisão. O Brasil não. Fomos contra a retirada de Taiwan da ONU em 1971, ano em que a representação passou a ser feita pela China.

Três anos depois, em 1974, foram rompidas as relações diplomáticas entre Brasil e Taiwan. Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas as relações comerciais com Taiwan também continuam e somos o principal parceiro nas Américas. O comércio envolve soja, minério de ferro, café e eletrônicos de alta tecnologia.

Entre maio e junho de 2014, o Senado brasileiro mandou uma comissão a Taiwan. O relatório foi feito pelo então senador Jorge Viana, que hoje é presidente da Apex, Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Todas as despesas foram pagas pelo governo estrangeiro. Transcrevo parte do relatório:

“Em nossa Missão Oficial, surpreendeu-nos a relação entre Taiwan e China. Apesar de não possuírem relações diplomáticas (China vê Taiwan como província e Taiwan se declara autônoma), há entre ambos forte relação comercial. São cerca de 800 voos por semana entre Taipei, capital de Taiwan, e as principais cidades chinesas, além de uma intensa relação comercial. Se na política e na diplomacia não há qualquer diálogo, nas relações comerciais as coisas fluem muito bem.

O Brasil precisa observar melhor essas particularidades e ampliar as relações comerciais, intercâmbio técnico e científico com Taiwan – apesar da inexistência de relações diplomáticas.

Nesse sentido e como resultado desta Missão Oficial, defendemos que o Brasil facilite a retirada de vistos e amplie o status do escritório de Taiwan no Brasil e do escritório do Brasil em Taiwan.

Por fim, vale ressaltar que Taiwan e Brasil compartilham do mesmo princípio de democracia e proteção aos direitos humanos. Os povos dos dois lados demonstram extrema simpatia e calorosa recepção. Enquanto Taiwan desenvolve fortemente sua indústria de produtos eletrônicos e de semicondutores, o Brasil mostra sua força no setor automobilístico, de bioenergia e mineração. Em vista disso, e com a colaboração de comunidade taiwanesa no Brasil, acredito que há muito espaço para que esses laços bilaterais cresçam ainda mais”. (grifo meu)

Na época, o atual presidente da Apex era favorável à ampliação das relações entre Brasil e Taiwan. Relatou que a situação com a China era muito mais complexa do que um rompimento. Há a briga política, mas há laços de economia e sociedade entre os dois povos.

O mais importante é ter frisado a identidade com os princípios democráticos e o respeito aos direitos humanos, conceitos que não são seguidos pelo Partido Comunista Chinês.

A China tem investido fortemente no reposicionamento como liderança geopolítica mundial, principalmente pelas dificuldades internas atuais. A política de filho único, que já foi revertida, causou um envelhecimento da população que dificulta as contas públicas. O mercado imobiliário tem problemas. As políticas adotadas durante a pandemia pioraram ainda mais a situação.

Recentemente, a relação entre China e Taiwan começou a entrar novamente em rota de colisão. No final do ano retrasado, durante o 20o Congresso do Partido Comunista Chinês, foi reafirmada a intenção de ocupação do território de Taiwan, por meios pacíficos “se possível”. Isso acendeu o alerta da comunidade internacional, que passou a se reposicionar.

No próprio ano de 2022, diversas autoridades norte-americanas fizeram visitas oficiais a Taiwan. Em represália, a China realizou exercícios militares no estreito entre os dois países. O presidente Joe Biden chegou a dizer que os Estados Unidos pegariam em armas para defender o “status quo” na região. Depois, a diplomacia suavizou as coisas, deixando claro que o país não entraria em guerra. No entanto, continua armando Taiwan. Agora, após as eleições, o posicionamento foi bem diferente. Joe Biden declarou que os Estados Unidos não apóiam a independência de Taiwan.

O governo Lula já havia se antecipado a isso. Em 14 de abril de 2023, foi emitido um comunicado diplomático conjunto entre Brasil e China. Um dos ítens dizia o seguinte: “O lado brasileiro reiterou seu firme apoio ao Princípio de Uma Só China, reconhecendo o governo da República Popular da China como o único governo legítimo de toda a China, e Taiwan como uma parte inseparável do território chinês. Ao reafirmar o princípio da integridade territorial dos estados, o Brasil apoiou o desenvolvimento pacífico das relações entre ambos os lados do Estreito de Taiwan. O lado chinês expressou grande apreço por esse posicionamento”.

Agora, o Brasil deu um passo além. Não apenas reafirmou sua posição como recebeu o ministro das relações exteriores da China no dia seguinte dos exercícios militares em Taiwan. É uma declaração de enorme peso simbólico, que nos coloca definitivamente em um lado de um potencial conflito.

Os tentáculos chineses usando a influência do Brasil chegam também aos BRICS. No comunicado conjunto do ano passado, já havia um protocolo de intenções: “Ambas as partes avaliaram positivamente o diálogo e a coordenação que mantiveram dentro de organizações internacionais e mecanismos multilaterais, e continuarão a fortalecer esse intercâmbio no âmbito da ONU e de outras organizações multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, bem como em agrupamentos plurilaterais como o G20, BRICS e BASIC. Além disso, o lado chinês expressou seu apoio à Presidência Pro Tempore do BRICS pelo Brasil em 2025. Ambos os lados comprometeram-se a aprofundar ainda mais a cooperação em todas as áreas dentro do BRICS. Eles apoiaram a promoção de discussões ativas entre os membros do BRICS sobre o processo de expansão do grupo e destacaram a necessidade de esclarecer os princípios orientadores, normas, critérios e procedimentos para esse processo de expansão com base em ampla consulta e consenso”.

Depois disso, o Brasil propôs a entrada da China nos BRICS, junto com diversas outras ditaduras. Os detalhes estão no artigo “O Brasil trocou a Alca pelo Bricstão e isso tem consequências”, que escrevi para o Instituto Monitor da Democracia em setembro do ano passado.

Por meio do soft power e do domínio econômico, a China tem se colocado cada vez mais como liderança geopolítica mundial. Isso significa para os países aliados decidir entre uma liderança global fundada em democracia e direitos humanos ou o oposto. O Brasil parece já ter decidido.