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A estratégia de conquista de hegemonia do neopopulismo no Brasil

A “fórmula” descrita neste artigo é a do neopopulismo ou do populismo de esquerda que floresceu, sobretudo na América Latina, no dealbar do presente século, com Hugo Chávez na Venezuela, Lula e Dilma no Brasil, Rafael Correa e Moreno no Equador, Evo Morales e Arce na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner e Fernández na Argentina, Maurício Funes e Cerén em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia – além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores. E além, é claro, de uma exceção, por não ser propriamente populista: o ditador castrista Miguel Díaz-Canel, de Cuba, uma remanescência marxista-revolucionária do século passado.

Mas o que se comenta a seguir vale, mutatis mutandis, para qualquer processo de conquista de hegemonia (inclusive, em parte, pelos intentados pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita) em regimes democráticos eleitorais (e até, como exceção, em regimes liberais).

Antes, porém, é necessário chegar a um acordo sobre os conceitos de hegemonia e populismo, tal como serão empregados neste artigo.

Hegemonia

Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.

Populismo

O termo populismo designa aqui um comportamento político que surgiu no século 21 e que se caracteriza pela divisão da sociedade com base em uma única ou dominante clivagem (povo x elites ou povo x establishment), o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós” contra “eles”) e a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Cabe notar que os populismos contemporâneos não têm muito a ver com os populismos tradicionais do século 20, caracterizados por demagogia, assistencialismo, clientelismo, irresponsabilidade fiscal: embora tais características permaneçam nos novos populismos do século 21, elas não são mais dominantes. Além do estatismo, que já estava mais ou menos presente no populismo antigo, surgiram (ou acentuaram-se) características como o majoritarismo (ou o hegemonismo), o antipluralismo e a formação de entidades tribais em permanente disputa antipolítica. Os populismos contemporâneos são modos de parasitar democracias eleitorais degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e estiolar substância liberal (sendo, portanto, iliberais ou contra-liberais). Seja para transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais. Existem hoje o populismo-autoritário ou nacional-populismo (Farage, Salvini, Bannon e Trump, Orbán, Le Pen, Wilders, Ventura, Abascal, Alexander Gauland e Alice Weidel, Bolsonaro etc.), dito de extrema-direita e o neopopulismo, dito de esquerda – que será particularmente focalizado no presente artigo.

A CONQUISTA DE HEGEMONIA PELO NEOPOPULISMO NO BRASIL

Vamos descrever a estratégia de conquista de hegemonia comentando o seguinte diagrama que  focaliza, particularmente, o caso do neopopulismo lulopetista no Brasil.

Advertências

Mas é necessário fazer duas advertências antes de começar. A primeira advertência é que, embora possa parecer assim, para alguns, não se trata de uma conspiração e sim de uma co-inspiração. As peças não se encaixam a partir de um plano diretor concebido nas sombras por um grupo secreto ou clandestino e nem se encaixam antes de as possibilidades práticas se manifestarem. Padrões autocráticos que remanesceram no subsolo da consciência de diversos setores considerados de esquerda ou progressistas, em algum momento de sintonizaram e se sinergizaram. Então a estratégia de conquista de hegemonia foi se conformando por composição de partes cognatas ou afins. Isso é o que significa co-inspiração. O PT jamais anunciou uma estratégia pronta e acabada. Mas é possível conectar suas concepções e práticas, propostas, medidas ou tentativas de aplicá-las, de sorte a compor um retrato dessa estratégia.

segunda advertência é que a estratégia de conquista de hegemonia examinada aqui não é extremista (usamos a palavra, embora esse conceito de ‘extremista’ seja inconsistente como categoria de análise), não quer destruir as instituições do Estado de direito e sim ocupá-las e hegemonizá-las, fazendo maioria em seu interior. Não prevê golpes de Estado, muito menos insurreições revolucionárias ou guerras populares – embora auto-golpes possam acontecer ao se configurarem ambientes favoráveis à quebra da ordem constitucional por parte de um governo neopopulista (como ocorreu na Venezuela e na Nicarágua). Mas isso pode ser considerado um desvio da estratégia original, que prevê um tratamento homeopático, não alopático. Para fazer um paralelo com os procedimentos dos velhos alquimistas, é uma via úmida, não uma via seca. Difícil é, porém, para quem não está realmente convertido à democracia (liberal), resistir à tentação de encurtar o caminho quando a correlação de forças se constela francamente favorável.

Um esquema descritivo

No diagrama abaixo estão os elementos principais da estratégia de conquista de hegemonia. É um desenho mais descritivo do que analítico.

A diagram of a diagram of the government

Description automatically generated with medium confidence

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1 – O PAPEL DO LÍDER POPULISTA

Apadrinhar e mesmerizar

Um líder com alta gravitatem é fundamental para dar um curto circuito nos mecanismos de proteção da democracia contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Ele deprime o sistema imunológico da democracia ao estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais, inabilitando seus sistemas de freios e contrapesos. A popularidade do líder é função da sua capacidade de apadrinhar as pessoas (identificando-se com elas e vendendo a ideia de que será capaz de resolver os seus problemas por elas) e de mesmerizar as massas, criando poços de potencial que deformam o campo interativo da convivência social. É como um buraco negro que suga todas as energias da sociedade, sulcando creodos e causando anisotropias nesse campo.

No caso do Brasil, no campo neopopulista, a partir do início deste século, esse papel de apadrinhar e mesmerizar é cumprido pelo líder Luis Inácio Lula da Silva.

O lider populista substitui o povo ao se apresentar como a síntese do povo. Encarnando-se como uma espécie de substituto do povo, o líder populista torna o povo desnecessário. E, pior, todos que dele discordam deixam de ser o (verdadeiro) povo.

Como afirmou o próprio Lula, em fevereiro de 2018, no Twitter:

“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.

E isso foi repetido por ele no final de junho de 2024, na mesma mídia social (já no exercício do seu terceiro mandato e quinto do PT):

“Eu não sou só um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo na presidência da República”.

O último tweet é uma variação do “L’État c’est moi” do monarca absolutista Luis XIV, com um passo adiante: “Je suis le peuple”.

Mais recentemente (em 06/07/2024), Lula declarou em um comício oficial:

“Quando eu estiver fazendo uma coisa errada, ao invés de vocês falarem ‘o Lula está errando’, vocês têm que falar “eu tô errando, porque o Lula é o nosso povo na presidência”.

A principal perturbação causada no campo interativo pelo líder populista é polarizar. Vamos analisar isso do ponto de vista das redes sociais (a referência aqui é à fenomenologia da interação entre pessoas, não às mídias sociais, como Facebook, X ou ex-Twitter, Instagram etc.). A polarização é chamada de afetiva (ou de emocionares – como disposições para a ação, independentemente de concordâncias ou discordâncias entre diferentes escolhas racionais) porque o campo interativo foi deformado. Como foi dito, mas vale repetir, a melhor coisa para deformar um campo é a presença de centros de alta gravitatem envolvidos em uma disputa adversarial (como é próprio dos populismos) que sugam as energias da sociedade parasitando o fluxo interativo da convivência social e sulcando caminhos, aqui chamados de creodos. Tornam-se espécies de buracos negros, onde tudo se abisma. O parasitismo pode, em alguns casos, tornar-se obsessor, quase um vampirismo. Então as pessoas escorrem por esses creodos sem fazer quaisquer juízos sobre suas qualidades e características.

2 – O PAPEL DO PARTIDO HEGEMONISTA

Defender e atacar

Então a primeira providência para conquistar hegemonia – além de dispor de um líder com as características descritas acima – é constituir um organismo vocacionado à hegemonia (ou seja, o organismo deve ser, ele mesmo, hegemonista) composto por militantes habilitados à praticar a política como continuação da guerra por outros meios, dirigidos estes, por sua vez, por um líder populista identificado com o próprio organismo. Ao fazer guerra, defendendo (seus integrantes e aliados) e atacando (seus oposicionistas, dissidentes e inimigos), os militantes tribalizam a política, obrigando todas as demais forças políticas a fazer o mesmo: os sem-tribo ficam completamente inabilitados para interagir no cenário político. E o fato dos outros também se tribalizarem reforça a degeneração da política como guerra do “nós” contra “eles” (ou seja, todos que não são “nós” ou não estejam subordinados à nossa direção).

A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo, uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias nas quais foram erigidos. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.

A conquista da hegemonia se dá primeiramente na sociedade e só depois no Estado. Uma vez tendo controlado o Estado, o organismo hegemônico avança em direção ao seu propósito de transformar a população em simpatizante da sua causa.

Os militantes então buscam estabelecer sua hegemonia nas mídias, nos partidos (da coalizão hegemonista), nas universidades e escolas, nas corporações (sindicais e assemelhadas), nos movimentos sociais e ONGs (que passarão a atuar como correias de transmissão do organismo hegemônico) e nos órgãos estatais.

Sem um partido com tais características (com “cabeça, tronco e membros” – como disse Lula, revelando que há uma diferença de status organizativo entre a “cabeça” e os “membros” -, ou seja, dirigentes, estrutura vertical de comando profissionalizada – o tronco; e os militantes) não é possível implementar uma estratégia de conquista de hegemonia. No caso do Brasil, os dirigentes e militantes do PT estão construindo e reforçando, pelo tempo de quase duas gerações (44 anos), esse organismo. Sim, isso não surge da noite para o dia, mas requer uma longa e árdua caminhada sujeita a vários percalços (derrotas sucessivas em eleições presidenciais em 1989, 1994, 1998; condenações e prisões dos principais dirigentes partidários por corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, associação criminosa ou formação de quadrilha, nos processos do Mensalão e do Petrolão; impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; prisão de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por 580 dias, de abril de 2018 a novembro de 2019).

A seguir uma pequena descrição de como os dirigentes e militantes atuam:

Nas mídias. Os dirigentes e militantes do PT criaram uma rede suja de sites e blogs para vender versões favoráveis ao partido (em 2014 já existiam: Brasil247, Forum, DCM, Opera Mundi, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Tijolaço, Rede Brasil Atual, Plantão Brasil, Outras Palavras, Carta Maior, Caros Amigos, Brasil de Fato, Mídia Ninja etc.). Com o advento das mídias sociais, criaram os MAVs (núcleos de militantes chamados de Mobilização em Ambientes Virtuais) e, mais recentemente, uma espécie de tropa de assalto, o “Gabinete da Ousadia” (por imitação ao chamado “Gabinete do Ódio” do governo Bolsonaro). Com a chegada ao governo (nos mandatos anteriores de Lula e Dilma, mas sobretudo no mandato atual de Lula), o PT passou a comprar a boa vontade dos grandes, médios e pequenos meios profissionais de comunicação com verbas de publicidade, conseguindo transformar alguns deles (inclusive canais de TV) naquilo que se chamava de “imprensa chapa-branca” ou assessoria de comunicação paralela (oficiosa) do governo. Militantes do PT viraram jornalistas e passaram a parasitar as redações de jornais, revistas e TVs. Em geral os oriundos de cursos universitários de jornalismo, de inclinação claramente esquerdista, formaram uma espécie de infantaria partidária. Antigos críticos passaram por uma conversão miraculosa e deram uma volta de 180 graus em sua orientação política (trânsfugas da democracia, de jornalistas, viraram propagandistas). Outros perderam a verve crítica ao poder que caracterizou seu comportamento nas últimas décadas. Outros, ainda, passaram a fazer jornalismo de fofoca, recebendo em tempo real pelo celular, enquanto estão no ar, informações de coxia plantadas por dirigentes partidários.

Nos partidos aliados. Na coalizão de partidos aliados, o PT, desde que surgiu, sempre foi amplamente hegemônico, satelizando as demais agremiações ditas de esquerda (PCdoB, PSOL, PDT, PSB etc.). O PT sempre atuou no campo de seus aliados ideológicos para ser uma espécie de “Central Única da Esquerda”. Internamente abrigou e estimulou uma profusão de tendências com o objetivo de impedir que essas forças políticas se estruturassem como organizações autônomas (e, também, mas não menos importante, para educar os seus militantes na luta interna, preparando-os para a prática da política como continuação da guerra por outros meios – e isso só se consegue configurando o ambiente partidário como um campo de luta interna permanente, quase uma associação de “inimigos íntimos”).

Nas universidades. Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).

Nas corporações. As corporações sindicais foram o berço do PT – ou um dos berços: os outros dois foram a esquerda marxista-leninista sobrevivente da ditadura militar e a chamada igreja da libertação, que abraçou a ideologia – chamada de teologia – da libertação. O papel principal, porém, foi desempenhado pelo chamado sindicalismo autêntico do ABC paulista e, em seguida, da CUT – Central Única dos Trabalhadores. Em vários períodos da história recente houve tal confusão entre sindicatos, centrais sindicais e partido, que os próprios militantes se confundiam, sem saber direito em que ambiente estavam. Era tudo, para efeitos práticos, a mesma coisa. Delúbio Soares, por exemplo, oriundo do meio sindical, virou dirigente partidário, mantendo o mesmo comportamento de sindicalista (ou seja, guiando-se pela máxima do “manda quem banca” e do uso privado – partidário – de recursos coletivos). Eles diziam – entre eles – que “sindicato é fonte de receita e partido é fonte de despesa”. Não apenas muitos candidatos foram extraídos do movimento sindical, mas boa parte das suas campanhas eleitorais (e aqui entra a maioria dos velhos dirigentes do PT) foi feita com recursos de toda ordem desviados do movimento sindical.

Nos movimentos sociais. Cabe dizer, preliminarmente, que a expressão ‘movimentos sociais’ é incorreta. Em geral são organizações hierárquicas, não movimentos. Organizações que, tais como os sindicatos, atuam como correias de transmissão do partido na sociedade e, inclusive, no Estado. O melhor exemplo é o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (de João Pedro Stedile) e o MTST (de Guilherme Boulos). O MST é uma organização política marxista-revolucionária, abrigada (e escondida) dentro de um movimento social, surgido em 1984. O MST tem direção estratégica e todas as demais características de uma organização revolucionária à moda antiga. Mas – atenção – o MST não é um mero aparelho do PT. As relações estratégicas do MST com o PT existem, mas com o “Partido Interno” (a referência aqui, para quem não se recorda, é ao 1984 de George Orwell). Cabe destaque também para o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, que é uma espécie de clone urbano do MST, surgido em 1997.

Nas ONGs. Sob o reinado petista as ONGs passaram, como brincou certa vez Manuel Castells, de organizações não-governamentais à organizações neo-governamentais. Sobretudo depois que chegou ao governo central, o PT passou a financiar as ONGs amigas, que dele ficaram dependentes. Cabe destacar aqui, pelo seu papel pioneiro, a ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, criada em 1991, abrigando, em parte, antigos dirigentes e militantes ou simpatizantes de organizações revolucionárias (algumas clandestinas) que ficaram sem seus aparelhos após a repressão da ditadura militar. Parte desses militantes tinham, inicialmente, uma visão crítica do PT, mas acabaram cedendo diante da expectativa do poder com a ascensão de Lula como principal líder da esquerda brasileira e, depois, com sua eleição e reeleição para a presidência da República.

Nos órgãos estatais. Chegando ao Estado, inicialmente pela eleição de parlamentares e executivos municipais e estaduais e, depois, ao governo federal, há uma mudança clara na correlação de forças. Ocupar o governo e estabelecer maiorias nos parlamentos (por qualquer meio, legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo – alugando parlamentares por meio de mesadas em dinheiro, da liberação de verbas para emendas legislativas ou da nomeação de seus apaniguados para cargos públicos) de sorte a poder conduzí-lo é fundamental para conseguir aparelhar a administração pública, as empresas estatais e os órgãos de controle, até – se for possível – as forças armadas e policiais e controlar o judiciário, seja por meio de nomeações legais, seja através de um processo de sedução ou de captura envolvendo, em alguns casos, a oferta de benesses indiretas e, em outros, a chantagem não declarada, mas insinuada, de revelar segredos comprometedores dos não-alinhados. O PT chegou a propor, por decreto (Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014), durante o governo Dilma Rousseff, a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado (sim, o lulopetismo aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então).

3 – O PAPEL DA IMPRENSA CHAPA-BRANCA

Interpretar e disseminar

O tema já foi tratado parcialmente acima, nos comentários sobre o papel dos militantes nas mídias (a infantaria petista nos jornais e TVs). Mas merece ser aprofundado mais um pouco. A chamada imprensa (os meios profissionais de comunicação) cumpre tarefas fundamentais aointerpretar e disseminar notícias favoráveis à estratégia de conquista de hegemonia; ou melhor, ao disseminar suas próprias interpretações como se fossem notícias.

Transformando opiniões em fatos pela repetição e difusão exaustivas, veículos profissionais de comunicação passaram a fazer parte, para efeitos práticos, de uma espécie de “partido ampliado”. Alguns canais de TV – mesmo incorporando alguns comentaristas críticos do governo (contados nos dedos de uma mão) – viraram centrais de abastecimento de munições para militantes e simpatizantes do partido oficial.

Há pesquisas mostrando que os militantes petistas se informam principalmente pela TV, ao contrário dos bolsonaristas, que preferem as mídias sociais e os programas de mensagens. Os petistas nunca abandonaram o sonho de ter um canal próprio de TV (tipo uma TV Pravda). Não deu certo com a antiga TV Lula, nem com as tentativas mais recentes de ter um canal partidário. Agora eles acham que deu certo com a Globo News e adotaram esse canal como se fosse seu próprio espaço de discussão. Por isso ficam tão indignados e intolerantes quando surge alguém na emissora que, destoando da média dos comentaristas, ousa criticar o governo e suas políticas nacionais e internacionais.

Então, quando aparece um analista emitindo opiniões destoantes daquelas legitimações chapa-branca proferidas por outros comentaristas alinhados ao governo Lula, os militantes iniciam imediatamente uma campanha de cancelamento dos primeiros chamando-os de fascistas para baixo (e aqui vêm os palavrões e as ofensas de todo tipo). Parece uma coisa menor, mas não é. Deve-se sempre olhar os sinais, os sinais fortes e os sinais fracos. O processo de autocratização começa sempre assim, ceifando uma flor singular num canto do jardim…

Se a emissora se deixar capturar por essa patrulha do abafa, que visa a espancar a pluralidade, virando uma espécie de Jovem Pan antiga com o sinal trocado, estará prestando um desserviço ao jornalismo e à democracia. A imprensa é uma instituição fundamental do regime democrático. Pode até, eventualmente, ser favorável a um governo, mas jamais pode aceitar ser parte orgânica do seu sistema de governança – como parece ser o caso.

Foi necessário que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretassem e disseminassem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos do organismo. Mídias comerciais, em alguns casos, transformaram-se em plataformas de lançamento para a guerra nas mídias sociais (ao mesmo tempo em que passaram a ser pautadas por essas últimas). Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, o PT descobriu a importância de infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir ou chantagear os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.

É significativo que o PT sempre tenha defendido o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Mais recentemente, passou a insistir na proposição de leis (ou de reforma de leis aprovadas no parlamento por intervenção política do Supremo Tribunal Federal) que, a pretexto de coibir fake news, criam simulacros de “ministérios da verdade”).

Não se pode esquecer aqui dos papeis dos institutos de pesquisa de opinião e das agências de checagem de notícias. É evidente que parte dessas instituições é simpática ao partido oficial. No caso dos institutos, para dar um exemplo, basta acompanhar a série histórica de pesquisas de intenção de voto de empresas como o IPEC, sempre com resultados fora (acima) da curva favoráveis ao candidato Lula em 2002 – o que ficou patente após o resultado oficial do pleito. Isso não significa necessariamente fraude, falsificação grosseira dos resultados das pesquisas, mas é operado de modo mais sutil, escolhendo uma base de dados mais favorável, o momento azado para a realização de um levantamento, a ordem das perguntas, o modo como estão formuladas e encadeadas etc. No caso das agências de checagem é a mesma coisa: boa parte delas focaliza mais os adversários do que os aliados do partido hegemonista.

Ainda deveriam ser mencionadas organizações como o Sleeping Giants, supostamente dedicadas a combater discursos de ódio e desinformação, que articulam o boicote (na verdade, a chantagem) a patrocinadores tentando sufocar financeiramente opositores do governo – em muitos casos até com justificadas razões. Mas é inegável que seus alvos são escolhidos seletivamente.

4 – O PAPEL DOS JURISTAS PARTIDÁRIOS

“Legalizar” e legitimar

Foi necessário que um contencioso de juristas estivesse pronto para “legalizar” e legitimar as ações do organismo e do seu líder. O principal papel dos juristas é reduzir problemas políticos a problemas legais, com isso evitando juízos políticos desfavoráveis ao organismo e ao seu líder, posto que, de pontos de vista estritamente legais (em geral procedimentais-formais), sempre há uma maneira de defender que não houve delito. Assim, se um julgamento foi anulado por erros processuais, por decurso de prazo ou pela idade avançada do réu, isso passa a significar que o réu foi absolvido e, portanto, que é inocente.

Exemplos de juristas partidários ou a serviço do partido hegemonista são hoje, no Brasil, o chamado Grupo Prerrogativas e várias associações de juizes, procuradores e advogados pela democracia. O Prerrogativas merece destaque. Não se sabe bem qual é a sua natureza jurídica, se tem CNPJ, se é um “movimento social”, se é uma organização da sociedade civil (uma ONG, como a Transparência – esta última, aliás, alvo de seus ataques). O Prerrogativas não apenas “legaliza” e legitima tudo que Lula faz de ilegal e ilegítimo, mas trabalha também para coonestar – com alegações claramente falsas – comportamentos ofensivos à democracia cometidos por organizações revolucionárias, como o MST (outra entidade de natureza misteriosa). Para todos os efeitos se comporta como uma organização para-partidária: seus membros são petistas ou fizeram campanha para o PT. Se mete em assuntos do poder legislativo: militou contra CPIs (como a do MST). Se mete em assuntos do poder judiciário: fez a defesa do ministro Dias Toffoli na imprensa (para incriminar a Transparência Internacional). Recentemente, o coordenador do grupo, para “legalizar” o que fez Lula em comício pró-Boulos, disse que pedir voto em palanque antecipadamente não afronta a lei pois é liberdade de expressão.

5 – O PAPEL DOS FAMOSOS, ARTISTAS E INFLUENCERS

Empatizar e mitificar

O PT foi o primeiro partido a entender que, no âmbito da sociedade, é necessário que diferentes plantéis de famosos, como os artistas de todas as áreas (atores e diretores de novelas e filmes, cantores, compositores e músicos, desportistas etc.), admirados por extensas parcelas da população, contribuam para aumentar a empatia com o organismo e com seu líder, chegando ao ponto de mitificar este último. Entenda-se bem: todas essas celebridades têm o direito, numa democracia, de apoiar um candidato ou o governo de um partido que julgam mais progressista, mais afeito à proteção dos direitos humanos, mais incentivador do mundo dos espetáculos (sobretudo com verbas oficiais) ou mesmo um representante mais fiel dos pobres. Mas não é disso que se trata aqui e sim do resultado de uma ação coordenada. Tudo isso, que deve parecer espontâneo é, em grande parte, organizado – pelo menos inicialmente – pela força política hegemonista. Ultimamente, passaram também a cumprir importante – e decisivo – papel os chamados influencers, como Felipe Neto.

O papel dos famosos, artistas e influencers, como foi dito, não é só gerar empatia pelo líder (Lula) e obter votos para ele quando se candidata, mas também mitificá-lo. Lula seria mais do que uma espécie de líder genial dos povos, seria a própria síntese do povo, semelhante a um demiurgo ou uma quase-divindade. E o próprio Lula, como vimos acima, insiste em alimentar esse mito.

6 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES DO JUDICIÁRIO

Nomear e controlar

Todos os neopopulistas tentam controlar o poder judiciário, em especial as supremas cortes de justiça dos regimes que parasitam. Alguns regimes, que já viraram ditaduras (como os da Venezuela e da Nicarágua), destruiram completamente a independência da justiça e passaram a demitir juízes de carreira ou contrários às suas investidas e a indicar seus esbirros para ocupar os tribunais. Mas outros governos neopopulistas, que parasitam regimes que ainda são considerados democracias (como a Bolívia e não se sabe em que medida o México e Honduras) também intervêm no poder judiciário. Em geral, os objetivos são legalizar a acumulação de mandatos falsificando a rotatividade democrática para se delongar nos governos e, em seguida, reformar as decisões parlamentares contrárias aos seus interesses.

O PT também nomeia membros que lhe são simpáticos no poder judiciário (sobretudo no STF, TSE e STJ) e, inclusive, militantes, como fez com o ex-advogado do partido (Dias Toffoli) e de Lula (Cristiano Zanin) para a suprema corte. Mas vai além. Atualmente (2023-2024), verificando-se minoritário no parlamento, nas mídias sociais e nas ruas, o PT busca compensar essa correlação de forças que lhe é desfavorável “governando” com o STF, ou seja, reformando, no “tapetão”, decisões do Congresso que prejudicam sua estratégia.

No Brasil, particularmente, há um perigo ainda maior: a normalização da atuação política do poder judiciário. Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante, sobretudo no judiciário. As formulações de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’, são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.

O problema é que vai crescendo, entre membros do poder judiciário, a ideia autoritária de “democracia militante” para combater – preemptivamente – ataques à democracia. Se a Justiça vira militante, ela se ideologiza. Deixa de ser imparcial ao esposar uma interpretação particular. E fica então vulnerável a ser controlada, direta ou indiretamente, por um partido.

7 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO PARLAMENTO

Eleger e conduzir

Aqui se trata de eleger o maior número de pessoas para os parlamentos, sobretudo para o Congresso Nacional. O objetivo é fazer maioria nas casas legislativas. Como isso é difícil de ser obtido com força própria ou com forças do próprio campo populista de esquerda e como um partido hegemonista é avesso à alianças (ou melhor, faz alianças quando está fraco para ficar mais forte e, ficando mais forte, mata seus aliados ao final), a tarefa de conduzir o parlamento usa todos os tipos de recursos para aprovar suas pautas e para eleger os presidentes das mesas legislativas. Na história recente do PT temos o exemplo do Mensalão (uma espécie de contribuição regular, não obrigatoriamente mensal, para alugar representantes fisiológicos ou corruptos de outras siglas levando-os a votar com o governo). Recentemente o uso de expedientes como esse ficaram mais difíceis no Brasil com o aumento do poder do parlamento sobre o orçamento (as emendas compulsórias e o chamado orçamento secreto).

8 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO GOVERNO

Eleger e aparelhar

Eleger governantes (executivos) – para ter o poder de nomear e demitir – é central na estratégia do neopopulismo lulopetista. O neopopulismo chega ao governo pelo voto e depois tenta se prorrogar no governo por tempo suficiente para conquistar os centros de decisivos de poder. Aparelhar tudo com militantes e simpatizantes partidários é fundamental: na administração direta, nas estatais, nos órgãos de controle e, se for possível, nas forças armadas e policiais.

É por isso que um partido hegemonista é tão avesso a autonomia de órgãos de Estado, como o banco central, as agências reguladoras e outros órgãos de controle, pois são uma restrição ao seu poder de mandar (nomear e demitir), governamentalizando e partidarizando instituições que deveriam ser de Estado e não de um governo particular. A estratégia do neopopulismo prevê uma privatização partidária da esfera pública.

Uma vez controlando o governo e os órgãos chaves do Estado, o processo de conquista de hegemonia volta-se novamente para a sociedade. Caberá então ao Estado, controlado pelo organismo hegemonista, educar a sociedade para estabelecer sua hegemonia de longa duração sobre ela.

Educar é tudo em um processo de autocratização não-disruptivo (ou seja, que não adote as vias do golpe de Estado ou do auto-golpe, da insurreição ou da guerra popular). Platão, o patriarca do pensamento autocrático ocidental, lançou os fundamentos dessa ação na sua distopia (ou retropia) totalitária, incorretamente intitulada ou traduzida como A República. Não havia, em Platão, um projeto propriamente político e sim um projeto pedagógico, um projeto de educação.

Está certo! Quem quer conquistar hegemonia não se dedica propriamente à política. Seu objetivo é extra-político. Hannah Arendt (1951), em obra ja citada aqui, estudando as maiores experiências autoritárias do século 20, concluiu que “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”. Só um movimento totalitário que consiga se materializar como governo totalitário pode obter, ainda que temporariamente, os resultados de uma autocratização total. Mas isso não significa que movimentos, governos e regimes autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) dos traços que caracterizam os totalitarismos.

Limitações da estratégia neopopulista de conquista de hegemonia

A estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar “por dentro” o “DNA” da democracia, tem muitas limitações.

Os populistas contam com a sua capacidade de permanecer nos governos que conquistam eleitoralmente, violando a rotatividade ou alternância democrática. Eles têm razões para acreditar nessa resiliência. Nenhum partido populista, seja considerado de direita (nacional-populista) ou de esquerda (neopopulista), sai facilmente do poder apenas pelo voto. Os exemplos são fartos.

À direita. o partido de Viktor Orbán não saiu: ele foi reeleito. O partido de Recep Erdogan não saiu: ele foi reeleito. O partido de Narendra Modi não saiu: ele foi reeleito. O partido de Vladimir Putin não saiu: ele foi reeleito. No campo do populismo-autoritário o partido de Donald Trump é uma das poucas exceções: saiu, mas deslegitimou a vitória de Joe Biden e está tentando voltar à presidência dos EUA com amplas chances de vitória.

À esquerda. O partido de Daniel Ortega, na Nicarágua, não saiu: ele foi reeleito n vezes. O partido Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, não saiu: o primeiro faleceu e o segundo, seu sucessor, foi reeleito n vezes. O partido de Rafael Correa, no Equador, não saiu: ele foi reeleito e emplacou seu sucessor Lenin Moreno. O partido de Evo Morales, na Bolívia, não saiu: ele foi reeleito n vezes até que sofreu um contra-golpe parlamentar em reação à sua tentativa de auto-golpe e, depois, elegeu seu sucessor Luis Arce (do mesmo Movimento ao Socialismo) com o qual se desentendeu. O partido de Manuel Zelaya, em Honduras, não saiu: ele foi preso, mas em seguida elegeu sua mulher Xiomara Castro. O partido de Lula e Dilma Rousseff, no Brasil, não saiu: Lula foi reeleito e fez sua sucessora Dilma, que sofreu impeachment. O partido de Fernando Lugo, no Paraguai, não saiu: ele sofreu impeachment. O partido de Maurício Funes, em El Salvador, não saiu: ele fez seu sucessor, Salvador Cerén, da mesma Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional. À esquerda, Cerén é a única exceção (já que Cristina Kirchner, na Argentina, não conta muito ao não ter conseguido emplacar Daniel Scioli seu sucessor, talvez porque ainda estivesse em transição do velho populismo peronista para o neopopulismo contemporâneo; mas ela voltou ao poder como vice de Alberto Fernandez cujo candidato a sucessor, Sérgio Massa, perdeu então as eleições para Javier Milei).

Com as exceções, mencionadas acima, que confirmam a regra, nenhum partido que abrigava esses populistas saiu do governo normalmente apenas pelo voto.

Mesmo assim, essa estratégia é de difícil implantação. Em primeiro lugar, porque ela é muito longa; ou seja, prevê um caminho difícil e arriscado, sujeito a imprevistos de toda ordem: legais e extra-legais, eleitorais ou não.

Por exemplo, um líder populista pode não ser reeleito, quebrando a continuidade da estratégia. Pode sofrer impeachment (como ocorreu com Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012 e com Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016). Seu principal líder pode ser preso por corrupção e outros crimes (como ocorreu com Lula, no Brasil, do início de 2018 ao final de 2019, ficando impedido de concorrer novamente). Pode ser vítima de um golpe ou contra-golpe em resposta a uma tentativa de auto-golpe (como ocorreu com Evo Morales, na Bolívia, em 2019). Pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o candidato de Cristina Kirchner, Daniel Scioli, na Argentina, em 2015); ou seu sucessor pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o sucessor de Maurício Funes, Salvador Cerén, em El Salvador, em 2019). Pode se desentender com seu sucessor (como ocorreu com Rafael Correa, no Equador, que entrou em disputa com Lenin Moreno, em 2018 e com Evo Morales, na Bolívia, que se desentendeu com Luís Arce recentemente).

Em segundo lugar, é uma estratégia que coloca desafios quase insuperáveis em países em que a democracia está minimamente consolidada. Depois da chegada eleitoral ao governo, o líder populista precisa ampliar a duração de seu mandato (o que as leis costumam proibir). Para tanto, tem que intervir no judiciário (em geral nas supremas cortes), substituir juízes (ou ministros) por militantes ou simpatizantes de seu partido (o que também não pode ser feito sem violar as leis vigentes). Não havendo – como no caso do Brasil – correlação de forças favorável que permita uma quebra do arcabouço legal, rasgando-se a Constituição, a solução é eleger sucessores do mesmo partido por tempo suficiente para alterar a composição das cortes de justiça lentamente (um por um) – o que leva à primeira dificuldade apontada acima (a extensão característica desse caminho).

Consideradas essas duas primeiras dificuldades, é explicável que partidos e líderes neopopulistas tenham cedido à tentação de converter seus regimes em ditaduras encurtando o caminho para a tomada do poder (como aconteceu na Venezuela de Chávez e Maduro e na Nicarágua de Ortega).

Outro desafio, que pode ser quase insuperável em algumas circunstâncias, é conseguir o controle das forças armadas e policiais. Em países – como, novamente, o Brasil – em que essas forças são antipáticas às ideias e práticas populistas de esquerda, isso requer também um longo caminho de intervenção legal nas listas de promoção de oficiais superiores, de mudança dos currículos da formação militar e de troca dos professores ou instrutores encarregados dessa atividade. A direção nacional do PT chegou a colocar a necessidade dessas providências, mas não teve força suficiente para levá-las a cabo.

Há ainda o desafio de conseguir recursos de monta, suficientes para financiar as operações dos militantes em todos as áreas de atividades, na sociedade e no Estado. Isso, em geral, abre um flanco legal (criminal). Não por acaso, muitos populistas de esquerda foram acusados de corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha (ou de organização criminosa), sendo então processados, condenados e presos. Não aconteceu somente no Brasil, onde todos os principais dirigentes petistas – sobretudo presidentes, ex-presidentes e tesoureiros da organização – acabaram encarcerados.

Por último, há o desafio de montar uma coalizão internacional de apoio. No âmbito da América Latina isso foi feito com o Foro de São Paulo e várias outras iniciativas oficiais (tipo Unasul), ou mesmo oficiosas ou informais. Com a ascensão de um eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua), ficou mais fácil alcançar tal objetivo, inclusive via BRICS (uma articulação política escondida sob a fachada de bloco econômico, coalhada de ditaduras e regimes eleitorais parasitados por populismos em que não figura nem uma democracia liberal) ou via o delírio chamado Sul Global (um substituto do velho terceiro-mundismo anti-imperialista), mas abre um flanco político perigoso que afasta os regimes eleitorais parasitados por governos neopopulistas (México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul etc.) do concerto dos países democráticos, sobretudo das democracias liberais (EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia). Ou seja, os países que tomam esse caminho perdem o discurso de que são democráticos ou de que estão defendendo a democracia ao polarizar seus ambientes políticos internos sob o pretexto de combater o populismo-autoritário (convertendo falsamente todos os que não estão subordinados às suas diretivas em extrema-direita, com o objetivo de impedir o surgimento de oposições democráticas).

É na política externa que o lulopetismo revela claramente o seu caráter não democrático – o que vale também para seus homólogos no campo do populismo de esquerda. Todas essas vertentes populistas: são contrárias (ou indiferentes) ao fortalecimento da União Europeia; discordam do apoio político, financeiro e militar à Ucrânia invadida pela Rússia; não apoiam as sanções a Putin; não apoiam a democracia isralense (não se fala aqui de apoiar o governo populista-autoritário de Netanyahu e sim de defender a único regime democrático do Oriente Médio); não condenam claramente o terrorismo do Hamas, do Hezbollah e do IRGC (a Guarda Revolucionária Iraniana ou Pásdárán); não repudiam o antissemismo (quando disfarçado de antissionismo); não defendem Taiwan contra as ameaças de invasão e anexação da ditadura chinesa; não defendem as democracias liberais contra as investidas do eixo autocrático; e não recusam o anti-americanismo (pelo contrário, o reforçam). Esses posicionamentos, de verificação bem prática, são suficientes para definir um caráter político avesso à democracia.

O fato de o nacional-populismo ou populismo-autoritário, dito de extrema-direita, ser uma ameaça (social) de curto prazo, mais agressiva e boçal à democracia, não normaliza, nem minimiza, a ameaça (política) de médio e longo prazos, do neopopulismo dito de esquerda.

A lógica da abundância

Reciclando um texto publicado na Escola-de-Redes há mais de dez anos

Antes de começar, um esclarecimento necessário. O que hoje se chama, equivocadamente, no Brasil e em outros países, de redes sociais são, na verdade, mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia): pode ser por conversas presenciais, sinais de fumaça, tambores, por e-mail, por telefone, pelo X ou pelo Facebook ou Instagram, até pelo WhatsApp ou Telegram (que nem são propriamente mídias sociais e sim programas de mensagens). Ou seja, redes sociais não são tecnologias, dispositivos, ferramentas, sites, algorítmos. Mídias sociais e programas de mensagens podem ser usados como ferramentas de netweaving, quer dizer, de articulação e animação de redes de pessoas, que chamamos – aqui, sim, propriamente – de redes sociais.

Redes sociais não são uma nova forma de organização e sim padrões de organização. Convencionou-se chamar de redes sociais as redes mais distribuídas do que centralizadas, tomando como base o famoso diagrama de Paul Baran (1964), publicado no paper On distributed communications, das topologias de rede:

Uma das coisas mais bacanas das redes sociais distribuídas (quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas) é a chamada “lógica da abundância”. Dizendo de outra maneira, de uma perspectiva menos estrutural e mais processual: se você não produz artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).

Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são – em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. Por exemplo, queremos escolher 5 pessoas para uma função qualquer, mas 10 pessoas estão postulando. Problema? Que nada! Basta escolher as 10. Quem disse que teriam que ser apenas 5? Essa determinação está, por acaso, nos “Dez Mandamentos”? Isso só será um problema se nos tornarmos escravos dos estatutos e regimentos: sim, em algum lugar foi definido que teriam que ser 5 pessoas, mas e daí? Qual o problema de mudar essa definição?

Ah! Mas é muita gente, não cabe na sala, vai dificultar o processo de decisão… Todas essas são, é óbvio, desculpas esfarrapadas para produzir artificialmente escassez. Não cabe na sala? Arrumamos uma sala maior ou fazemos um rodízio de quem entra e quem fica fora de cada vez. Vai dificultar o processo de decisão? Criamos duas instâncias e redefinimos as responsabilidades pelas funções.

O fato é que somente em estruturas hierárquicas (quer dizer, mais centralizadas do que distribuídas) essas coisas são realmente problemas. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriárquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo. Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não concordarem? Ora, bolas, os que não concordarem não devem aderir. E sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa aderirão a ela. E assim por diante.

O papel dos administradores das ferramentas de netweaving usadas em uma rede não é o de chefes, nem mesmo o de líderes. Eles devem ser netweavers, não coordenadores. Nem sempre um netweaver é a pessoa mais importante. Tem os hubs. Tem os inovadores. Tem os catalisadaores de processos de aprendizagem. Tem os guardiães do kernel. Todos esses papéis são tão ou mais importantes em uma rede do que o de netweaver.

As eleições para o parlamento europeu e a defesa do mundo livre

As eleições para o parlamento europeu devem ser vistas no contexto da segunda guerra fria, já instalada e movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. Apurados os resultados, pode-se dizer que venceu o mundo livre.

Não importa se quem defende as democracias liberais é dito de direita (como Ursula von der Leyen) ou de esquerda ou centro-esquerda (como Scholz ou Frederiksen).

E não importa se quem ataca as democracias liberais é dito de direita (Orbán ou Erdogan) ou de esquerda (Xi Jinping ou Kim Jong-un). Ou mesmo Putin, que apoia tanto a extrema-direita como a esquerda populista, desde que militem contra a ordem liberal e o mundo livre.

O eixo autocrático articula as maiores e mais cruéis ditaduras do planeta e os regimes iliberais (autocráticos, ainda que eleitorais): Rússia, China, Coréia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, Cuba, Venezuela, Nicarágua.

E o eixo autocrático está investindo para alinhar a si regimes eleitorais (que são chamados de democracias, mas não são democracias liberais) parasitados por populismos, como México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil e África do Sul.

O fundamental, então, não é ser ou se dizer de direita ou de esquerda e sim defender a ordem liberal e o mundo livre contra as investidas do eixo autocrático. A Europa tem a maior concentração de democracias liberais do planeta. Segundo o V-Dem 2024, a Europa tem 18 democracias liberais em 50 países (36%). Nas Américas são 7 democracias liberais em 36 países (19,4%). Na Oceania 2 em 14 países (14,29%). Na Ásia 4 em 49 países (8,2%). Na África 1 democracia liberal em 54 países (1,6%). Essas democracias liberais precisam ser defendidas

Mas não se trata mais, apenas, de defender a ordem internacional baseada em regras. Eclodida uma segunda grande guerra fria, trata-se de defender o mundo livre (as democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático visando a exterminá-las.

Então são quatro as prioridades agora:

1 – Defender a União Europeia.

2 – Defender a Ucrânia contra a invasão do ditador Putin.

3 – Defender Israel contra os ataques da teocracia iraniana e seus braços terroristas (Hamas, Hezbollah, Houthis etc).

4 – Defender Taiwan contra as tentativas de invasão e anexação da ditadura chinesa.

Ao contrário do que fizeram parecer alguns meios de comunicação, os que não concordavam com essas prioridades não ganharam, perderam as eleições para o parlamento europeu.

Casas da Democracia

I – O projeto

As Casas da Democracia são uma nova oportunidade de conexão e interação para quem se sintoniza com as ideias de que não existe democracia sem democratas, de que há um déficit acentuado de democratas na sociedade atual e de que é possível multiplicar o número desses democratas, ou seja, de agentes capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática, mesmo sem conformar maiorias (fermento não é massa).

As Casas da Democracia não são para todos, para a maioria ou para muitos, nem para poucos ou para um grupo seleto (previamente selecionado) de pessoas. São abertas a qualquer um. Não são a luz de um poderoso holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Uma rede de comunidades políticas locais, articulada de baixo para cima, em todas as localidades onde existam pessoas que desejem encontrar outras pessoas que se sintonizem com elas.

As Casas da Democracia não são uma organização centralizada e sim uma rede (mais distribuída do que centralizada). Regem-se pela lógica da abundância e não da escassez. São uma iniciativa Apache, não Asteca. Estão mais para Alcoólicos Anônimos do que para Microsoft.

As Casas da Democracia não têm chefe. Ninguém (nem mesmo os promotores iniciais da proposta) fala pelas Casas da Democracia em geral porque não existe essa organização nacional (abstrata): os que se articulam em uma casa, falam pela sua própria casa.

Cada Casa da Democracia é autônoma para adotar a sua forma de organização (desde que seja em rede), seu modo de funcionamento (desde que seja democrático) e decidir sobre suas atividades (desde que sejam compatíveis com os princípios da iniciativa). Cada Casa da Democracia deverá conseguir os meios e captar os recursos necessários para o seu funcionamento.

Qualquer pessoa descontente com a organização, o modo de funcionamento ou as atividades de uma Casa da Democracia pode sair e, se quiser, fundar sua própria casa.

Para fundar uma Casa da Democracia basta articular um conjunto de pessoas (no mínimo três: o átomo, ou melhor, a molécula inicial de uma rede) dispostas a fazer isso, que concordem com os princípios da iniciativa.

Ainda que seja desejável, não é necessário ter uma estrutura física para fundar uma Casa da Democracia. Mas é preciso ter uma rede de pessoas dispostas a interagir regularmente. As Casas da Democracia são sempre locais: podem ser organizadas em municípios, regiões de um município ou bairros. Mas também podem se reunir virtualmente.

As Casas da Democracia são apartidárias. Podem delas participar pessoas que pertençam a quaisquer partidos ou sem partido, desde que tomem a democracia como valor universal e como principal valor da vida pública, rejeitem os populismos e estejam dispostas a experimentar a democracia não apenas como modo de influir no Estado e sim também como modo de vida na sociedade.

II – Os princípios

Casas da Democracia é o nome de uma nova iniciativa política, organizada em rede distribuída, que procura conectar democratas brasileiros, reuni-los e multiplicá-los a partir de suas cidades.

Essa iniciativa pretende configurar, de baixo para cima, em localidades de todo o país, ambientes de livre-aprendizagem da democracia: as chamadas Casas da Democracia. E também procura experimentar novas formas de democracia local, não apenas como modo de administração política do Estado e sim também como modo de vida ou de convivência social, democratizando, onde for possível, diversas formas de sociabilidade existentes (dentre outras, as famílias, as escolas, as igrejas, as organizações civis, as empresas e os órgãos estatais, além dos grupos de amigos, as comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem e de projeto).

A estrutura e o funcionamento das Casas da Democracia são independentes de qualquer partido. Pessoas sem filiação partidária ou filiadas a quaisquer partidos podem participar das atividades das Casas da Democracia, desde que concordem com seus princípios e observem seu modo de funcionamento.

O movimento das Casas da Democracia é liberal no sentido político originário (democrático) do termo, quer dizer, dos que acham que a liberdade (e não a ordem) é o sentido da política e, vice-versa, dos que acham que ninguém pode ser livre sozinho: uma pessoa só é livre plenamente enquanto pode interagir na comunidade política. Um movimento, portanto, que defende o liberalismo político e não apenas o liberalismo-econômico. Nesse sentido, é um movimento de recusa aos populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita) que são i-liberais e majoritaristas.

As Casas da Democracia são um movimento de pessoas dispostas a interagir politicamente para defender a democracia que temos sem deixar de buscar novas formas de democracia que queremos, atuando sempre a partir de suas localidades.

É um movimento que procura conservar o que deve ser conservado (as instituições do Estado democrático de direito), reformar o que precisa ser reformado (a começar pela reforma da política) e inovar para dar continuidade ao processo de democratização do Estado e da sociedade.

Sim, trata-se – fundamentalmente – de um movimento de inovação democrática, que quer colocar na pauta temas contemporâneos que ainda não compareceram no debate político, como, por exemplo, a crise e os limites da democracia representativa e a experimentação de novas formas mais interativas de democracia numa emergente sociedade-em-rede, um novo federalismo diante da crise do Estado-nação, a superação da contraposição localismo não-cosmopolita x globalismo e a realidade emergente da glocalização, a superação da contraposição estiolante monoculturalismo x multiculturalismo: rumo à inevitável (e desejável) miscigenação cultural, a superação da inadequada classificação e da divisão das forças políticas em esquerda x direita e a superação da velha divisão entre visões mercadocêntricas e estadocêntricas do mundo: a sociedade como forma autônoma (subsistente por si mesma) de agenciamento, ao lado (e além) do mercado e do Estado.

O movimento das Casas da Democracia também quer discutir e ensaiar novas experiências de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas (sem abolirem a representação), com mandatos revogáveis, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais).

A ideia das Casas da Democracia partiu das seguintes constatações:

 Não existe democracia sem democratas.

 Os democratas sempre foram minoria. Seu papel precípuo não é arrebanhar maiorias e sim agir como agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática. Fermento não é massa. O importante não é que os democratas sejam maioria numérica e sim que consigam ensejar a formação de uma opinião pública democrática.

 Democratas não são liberais apenas no sentido econômico do termo e sim liberais-políticos (que tomam a liberdade como sentido da política e a democracia como valor universal e principal valor da vida pública).

 Mas uma minoria tão ínfima de liberais-políticos (como a que temos) não é capaz de cumprir o papel de defender a democracia (que temos), impedindo que ela se torne menos liberal e mais majoritarista (como querem os populistas) e, simultaneamente, avançar na direção das democracias mais interativas que queremos (mais conformes à morfologia e a dinâmica da sociedade contemporânea).

Esta é a razão principal pela qual virou um imperativo democrático da hora, numa época como a que vivemos, de recessão e desconsolidação democráticas, configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia voltados para a inovação política e social.

Em suma, liberais-políticos não se formam espontaneamente em volume desejável porque a cultura predominante não é liberal e porque estão em curso uma recessão e uma desconsolidação democráticas. Vivemos atualmente sob uma terceira onda de autocratização. Assim, é necessário proporcionar processos de aprendizagem teóricos e práticos da democracia que sejam permanentes. Este é o objetivo das Casas da Democracia.

As Casas da Democracia conformam uma grande rede, mais distribuída do que centralizada, de democratas que assumem como sua função precípua promover a aprendizagem democrática permanente, por meio do estudo, da reflexão e da experimentação.

É um empreendimento apache, não asteca, que objetiva acender muitos pontos de luz, no maior número possível de localidades, entendendo que a democracia não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas.

É um programa que estimula o espírito do voluntariado (como um hábito do coração) e incentiva a livre iniciativa e não a obediência, regido mais pela lógica da abundância do que da escassez (ou seja, em que a maioria nunca obriga a minoria a seguir suas decisões).

É um projeto que busca se reger por uma dinâmica cooperativa, não adversarial, configurando ambientes aprazíveis de convivência e não de constante luta interna.

É um chamado às “andorinhas” que estão dispersas para que possam se encontrar, se comprazer na sua convivência e se reproduzir.

Qualquer pessoa que concorde com os princípios e a forma de organização das Casas da Democracia pode se conectar a uma de suas casas.

As Casas da Democracia são sempre organizadas por cidade (ou, no caso de grandes cidades, por regiões distritais ou bairros). Elas são autogeridas por seus participantes. Não há uma administração central.

As Casas da Democracia são novos ambientes interativos capazes de ensejar a conexão e a multiplicação de agentes democráticos. Ninguém muda de opinião se não mudar de rede. Ninguém se converte à democracia porque ouviu discursos democráticos ou porque leu textos teóricos de democracia. É necessário interagir em novos ambientes democráticos.

Os links locais regulam o mundo. As Casas da Democracia são novas redes locais onde cada um pode reconhecer os seus pares e ser reconhecidos por eles. São espécies de “polis paralelas”, formadas por sintonia, oferecendo novos nichos antropológicos de reconhecimento mútuo que possibilitem a obtenção de sinergias para a proposição e a realização de projetos democráticos inovadores.

III – A visão

Não temos hoje, no Brasil, um número suficiente de pessoas que saibam explicar por que acham que a democracia é um valor universal e o principal valor da vida pública, que consigam distinguir uma posição liberal (em termos políticos) de uma posição i-liberal, que possam mostrar por que democracia não é a mesma coisa que majoritarismo e que estejam capazes de criticar os populismos contemporâneos mostrando por que eles são os principais adversários da democracia.

Claro que as pessoas que concordam com a democracia (a preferem à autocracia ou, pelo menos, a aceitam ou toleram) são – felizmente – muito mais numerosas. A maioria da nossa população (ou quase) tende a concordar com a democracia, conquanto o número dos que não a valorizam venha aumentando assustadoramente, no Brasil e no mundo.

Larry Diamond (2015) traçou um quadro da recessão democrática (na qual entramos em meados da primeira década deste século). Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017) detectaram a desconexão e a desconsolidação democráticas dos últimos anos. O mesmo Mounk e Jordan Kyle (2018) avaliaram empiricamente o estrago que o populismo faz na democracia. Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), juntamente com o pessoal do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), têm analisado a terceira onda de autocratização em que estamos imersos. Mas quantos entendem tudo isso? E quantos estão interessados nisso?

Não. Não é uma coisa para especialistas. Se não tivermos alguma noção dessas coisas como vamos poder cumprir o papel de agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública no mundo atual? Ou como vamos conseguir ser protagonistas de uma nova alternativa democrática na atualidade?

Em uma época onde vicejam pulsões autoritárias dos que negam ou se aproveitam das catástrofes para degenerar a democracia – seja, para nós, os democratas, uma espécie de Idade Média. Hora de fermentação, hora do grão morrer para germinar, hora de crescer escondido na escuridão geral e de usar nossos mil pontos de luz locais para fazer isso…

Sim, estamos em um daqueles momentos de virada em que as saídas tradicionais não adiantam.

A ideia pode até parecer heterodoxa, mas não deixa de ser fascinante. Não é possível enfrentar esta terceira onda de autocratização que nos assola manobrando nossos minúsculos barcos na superfície do mar revolto. Para atravessar a tormenta vamos ter de fazer acampamentos como aqueles imaginados por Ray Bradbury (1953), em Farenheit 451, onde pessoas-livro não deixavam o fio se interromper. Ou como, no relato de Thomas Cahill (1995), os monges irlandeses salvaram a (dita) civilização.

Václav Havel (1978), em O Poder dos Sem-Poder, usando uma ideia seminal de Václav Benda, aventou a hipótese da “polis paralela” como modo orgânico de resistência à dominação autoritária (que ele chamava de “pós-totalitária”). Não uma fuga, dizia ele:

“A polis paralela aponta para além de si mesma e faz sentido apenas como um ato de aprofundar a responsabilidade de um e para o todo, como uma maneira de descobrir o local mais apropriado para essa responsabilidade, não como uma fuga a ela”.

É disso que estamos falando.

Deu para visualizar?

Se tivermos algumas pessoas interagindo de modo distribuído em vários clusters, em cidades de todas as regiões, usando seus pequenos pontos de luz para trabalhar na escuridão (promovendo ambientes de aprendizagem da democracia, escrevendo nos jornais locais, pontificando nas TVs e rádios, com canais no Youtube e nas mídias sociais, se candidatando a cargos executivos e legislativos por velhas e novas agremiações, atuando em instituições do Estado e da sociedade), uma grande rede democrática pode ir se articulando sob a tormenta.

Sim, a democracia, como foi dito, não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Sempre foi assim, aliás. Quantos democratas convictos – que tomavam o sentido da política como a liberdade (e não a ordem) e atuavam condizentemente com isso – existiam em Atenas nos séculos 5 e 4 a. C., ou no parlamento inglês dos Bill of Rights no século 17? Muito poucos. Mas sem esses poucos, a democracia não teria chegado até nós.

Podemos ser poucos, mas não tão poucos que não sejamos capazes de fermentar o processo de formação da opinião pública. Sim, é para isso que existem os democratas, não para virarem maioria (quem aposta nisso – no majoritarismo – são os populistas, ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita, hoje os principais adversários da democracia no mundo e no Brasil).

Para Péricles – segundo o relato de Tucídides – Atenas era a escola da Grécia. Antes de tudo uma escola de democracia. A rigor uma não-escola, como burocracia do ensinamento, posto que a polis não estava murada, não exigia nada de ninguém. Não era como a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles. As ruas e praças da cidade eram os ambientes de aprendizagem em que se exercitavam os democratas, sobretudo os sofistas. O projeto antipolítico platônico era um projeto de ensino. O de Péricles, ao contrário, era um projeto verdadeiramente político, de aprender na livre interação entre os cidadãos mediada pelos fluxos da cidade – e a polis, como percebeu o último Hillman (1993), no brilhante discurso Psicologia, Self e Comunidade, era isso:

“Como nós imaginamos nossas cidades, como nós visualizamos seus objetivos e valores e realçamos sua beleza define o Self de cada pessoa desta cidade, pois a cidade é a exibição sólida da alma comum. Isto significa que você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis — fluxo e muitos. Para melhorar a você mesmo, você melhora a sua cidade. Esta ideia é tão intolerável ao Self individualizado que ele prefere a decepção do isolamento tranquilo e do retiro meditativo como o caminho para o Self. Eu estou sugerindo o contrário. Self é o verdadeiro caminho, as ruas da cidade”.

Eis aí o desafio. Não é uma ideia fascinante?

IV – A ação

Você quer uma nova política? Então pare de chamá-la de nova. Na civilização patriarcal a maior novidade nesse campo já aconteceu: ela se chama democracia. Para construir uma política democrática, entretanto, é necessário recomeçar de baixo – experimentando a democracia como modo-de-vida: em cada cidade, em cada bairro, em cada organização.

O projeto Casas da Democracia é simples. Há um déficit acentuado de democratas na sociedade brasileira. Isso significa que é preciso multiplicar o número de democratas estimulando a aprendizagem da democracia. Mas a aprendizagem da democracia tem as características de uma conversão: uma conversão não-religiosa, mas uma conversão. Essa conversão implica uma mudança do emocionar e do pensar. Ora, ninguém pode experimentar tal mudança se não mudar de rede (não adianta tentar convencer as pessoas com discursos). E, ademais, é preciso mudar as redes nas quais as pessoas conversam recorrentemente, no dia-a-dia – interagindo entre si e agindo juntas (pois são os links locais que regulam o mundo). Então cada Casa da Democracia é uma nova rede local (e por isso elas são constituídas de baixo para cima: por proximidade, com base sócio-territorial municipal ou distrital), um novo ambiente configurado para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem (ao se sintonizarem) e para fazer coisas juntas (ao se sinergizarem). Trata-se de conectar por desejos congruentes. É a única saída para não arregimentar por interesses. Se arregimentar por interesses, dá mais do mesmo. Cada Casa da Democracia é um novo nicho de “pegajosidade antropológica” capaz de ensejar que as pessoas fiquem próximas o suficiente para possibilitar as mudanças implicadas na conversão à democracia.

Eis algumas sugestões, que devem ser tomadas apenas como inspiração, não como uma pauta obrigatória de ações que devam ser realizadas pelas Casas da Democracia:

1) Envolver mais pessoas da sua localidade em processos de aprendizagem da democracia

2) Fazer palestras sobre democracia nas instituições de ensino e em outras organizações locais do Estado, da sociedade ou do mercado

3) Experimentar mudanças democráticas na gestão de organizações da localidade (do Estado, da sociedade ou do mercado); por exemplo, substituindo a lógica da escassez pela lógica da abundância

4) Experimentar substituir votações por sorteio, sempre que possível, nos procedimentos internos de organizações da localidade

5) Estimular a construção de equipamentos urbanos que facilitem a convivência (praças, bancos, sombras, calçadas, calçadões etc.) e publicizar as praças existentes configurando ambientes comuns (geração social de commons)

6) Organizar assembleias populares nas regiões administrativas ou nos bairros para discutir os problemas da localidade e para apresentar soluções

7) Realizar as próprias reuniões das Casas da Democracia em ambiente público e aberto, sempre que possível

8) Organizar sessões de cinema em praças, com conversação ao final

9) Criar ambientes comunitários de livre-aprendizagem sem restrições de entrada (etárias, de escolaridade etc.)

10) Instalar sessões de cocriação de soluções (tipo festivais de ideias e projetos) para os problemas da cidade, do bairro e das organizações locais e promover o desenvolvimento local

11) Participar regularmente de programas de rádio e TV com audiência significativa na cidade ou na localidade

12) Preparar candidatos comprometidos com a democracia para as próximas eleições

13) Capacitar legisladores e governantes eleitos para exercerem democraticamente seus mandatos

14) Fundar um jornal local (digital ou em papel) com análises do que está acontecendo, na localidade, na região, no país e no mundo, de um ponto de vista democrático

15) Fundar uma rádio comunitária

16) Estimular os representantes eleitos que usem aplicativos de comunicação com seus eleitores e criar novos mecanismos de interação democrática dos cidadãos na esfera pública

17) Propor mandatos coletivos ou co-vereanças

18) Criar (e testar) novos indicadores locais de democracia

19) Fazer um levantamento dos sinais de avanço do autoritarismo ou de desconsolidação da democracia na localidade (por exemplo, monitorar a porcentagem de pessoas que aderem à alternativas populistas)

20) Fazer um levantamento dos ativos democráticos da localidade.

Visite o site das Casas da Democracia.

As eleições para o parlamento europeu e a defesa do mundo livre

As eleições para o parlamento europeu devem ser vistas no contexto da segunda guerra fria, já instalada e movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. Apurados os resultados, pode-se dizer que venceu o mundo livre.

Não importa se quem defende as democracias liberais é dito de direita (como Ursula von der Leyen) ou de esquerda ou centro-esquerda (como Scholz ou Frederiksen).

E não importa se quem ataca as democracias liberais é dito de direita (Orbán ou Erdogan) ou de esquerda (Xi Jinping ou Kim Jong-un). Ou mesmo Putin, que apoia tanto a extrema-direita como a esquerda populista, desde que militem contra a ordem liberal e o mundo livre.

O eixo autocrático articula as maiores e mais cruéis ditaduras do planeta e os regimes iliberais (autocráticos, ainda que eleitorais): Rússia, China, Coréia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, Cuba, Venezuela, Nicarágua.

E o eixo autocrático está investindo para alinhar a si regimes eleitorais (que são chamados de democracias, mas não são democracias liberais) parasitados por populismos, como México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil e África do Sul.

O fundamental, então, não é ser ou se dizer de direita ou de esquerda e sim defender a ordem liberal e o mundo livre contra as investidas do eixo autocrático. A Europa tem a maior concentração de democracias liberais do planeta. Segundo o V-Dem 2024, a Europa tem 18 democracias liberais em 50 países (36%). Nas Américas são 7 democracias liberais em 36 países (19,4%). Na Oceania 2 em 14 países (14,29%). Na Ásia 4 em 49 países (8,2%). Na África 1 democracia liberal em 54 países (1,6%). Essas democracias liberais precisam ser defendidas

Mas não se trata mais, apenas, de defender a ordem internacional baseada em regras. Eclodida uma segunda grande guerra fria, trata-se de defender o mundo livre (as democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático visando a exterminá-las.

Então são quatro as prioridades agora:

1 – Defender a União Europeia.

2 – Defender a Ucrânia contra a invasão do ditador Putin.

3 – Defender Israel contra os ataques da teocracia iraniana e seus braços terroristas (Hamas, Hezbollah, Houthis etc).

4 – Defender Taiwan contra as tentativas de invasão e anexação da ditadura chinesa.

Ao contrário do que fizeram parecer alguns meios de comunicação, os que não concordavam com essas prioridades não ganharam, perderam as eleições para o parlamento europeu.

A Netwar

A netwar é a nova forma de guerra em uma sociedade-em-rede. Não é, como geralmente se pensa, a luta sem quartel travada nas mídias sociais (que dela representam apenas um pequeno aspecto). Antes de qualquer coisa, a netwar é social, não digital. É uma guerra que alcança as redes de pessoas (inclusive as que não interagem nas mídias sociais).

Para entender isso temos de voltar ao início da segunda década deste século, quando houve uma explosão das mídias sociais (incorretamente chamadas, no Brasil e em outros países, de redes sociais). Mídias sociais não são redes sociais. Poderiam ser, no máximo, ferramentas de netweaving. Acabaram, infelizmente, sendo o oposto ao conspirar contra as redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia). Não, não são ferramentas, dispositivos tecnológicos, sites, aplicativos, programas, algoritmos.

A netwar extravasa, não elimina, as guerras quentes (os conflitos armados que comumente chamamos de guerra). Aliás, o fato de um conflito ser armado só agrava circunstancialmente sua gravidade (pela ameaça mais premente às vidas humanas e dos demais seres vivos). Essencialmente, porém, ela altera o modo de regulação dos conflitos tornando-o menos pazeante e mais adversarial ou antagônico, ao produzir inimigos. Sim, a guerra, qualquer guerra, não é destruição de inimigos (um “efeito colateral”), mas construção de inimigos. Não importa se o inimigo da vez é a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de George Orwell (1949). A guerra constroi inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais, adotando padrões de organização hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos.

A netwar diminui os graus de distribuição das redes sociais e, consequentemente, altera a sua conectividade e a sua interatividade (ver imagem abaixo).

Imagem ilustrativa by Renato Cecchettini. Ao cortar conexões, a netwar multicentraliza a rede, quer dizer, converte uma rede mais distribuída do que centralizada em uma rede mais centralizada do que distribuída.

Não é “guerra de propaganda”. É reengenharia topológica. Ela multicentraliza (e estilhaça) as redes em miríades de esferas privadas opacas. É uma espécie de clustering fortemente restringido. A chamada tribalização, ou ilhamento em bolhas, é um dos efeitos observáveis dessa perturbação na fenomenologia da interação. A netwar desatalha, ou seja, corta as conexões (atalhos) entre os clusters. Ao fazer isso, conecta para dentro e desconecta para fora. E exclui nodos dos mundos sociais que habitavam. Com tudo isso, ela altera molecularmente comportamentos numa velocidade inimaginável, como numa reação em cadeia. Novos organismos sociais, malignos para a democracia, nascidos dessa operação, erigem-se em dias ou até em horas, talvez. Não há comparação com o tempo gasto para estruturar uma SS (Schutzstaffel) ou um Exército de Guardiães da Revolução Islâmica (Pásdárán), mais conhecido como Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC).

A netwar que está em curso – na segunda guerra fria que já eclodiu – é muito mais perigosa para as democracias do que todas as guerras mundiais do século passado (a primeira e a segunda guerras e a primeiro guerra fria).

Toda realidade política sob a terceira onda de autocratização em que vivemos está afetada por essa segunda guerra fria que se instalou, notadamente, a partir da terceira década do século 21. Como foi dito, não é uma terceira guerra mundial, nos moldes das duas anteriores, nem é uma reedição da primeira guerra fria do século 20, porque não é uma guerra de blocos demarcados sobre a geografia do globo. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é fractal, se instala dentro de cada país.

Um eixo autocrático, o mais poderoso já conformado em toda a história humana (Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, além de várias outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África e de Bharat – este último ainda uma incógnita), está movendo uma netwar mundial, uma campanha de isolamento e exterminação das democracias liberais. E, para tanto, está conquistando o alinhamento de regimes eleitorais não liberais parasitados por populismos (México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, Indonésia et coetera).

Essa segunda guerra fria é uma guerra essencialmente política (ou antipolítica, quer dizer, contra a política: que não é guerra e sim evitar a guerra), com múltiplos eventos regionais de guerra quente (conflitos armados) que servem, fundamentalmente, para alimentar a netwar. A guerra do Hamas contra Israel não é uma guerra regional visando a alcançar objetivos militares locais, mas uma das espoletas para a explosão de uma netwar global. Mesmo que vença militarmente no terreno de Gaza, Israel já perdeu a netwar cujo palco é o mundo inteiro (e tanto é assim que se manifesta nos campi das universidades americanas, passando pelas ruas e praças de Paris, de Londres e de Bogotá, até chegar na avenida Paulista no Brasil). A guerra de Putin contra a Ucrânia não é só contra a Ucrânia, para conquistar território e se apropriar de recursos naturais, e sim contra a ordem liberal vigente na Europa e nos Estados Unidos. E ela é travada em todo lugar, até na Assembleia Geral da ONU e no seu Conselho de Segurança.

As três dezenas de democracias liberais que restaram não vão conseguir passar incólumes por essa nova guerra mundial que já está em curso: ao que tudo indica haverá declínio de direitos políticos e liberdades civis até mesmo nesses países de democracia mais avançada ou plena (União Europeia sem Hungria, Reino Unido, Noruega e Suíça, EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia).

Não se sabe ainda o que acontecerá, mas já se pode apostar que não será bom para as democracias.

Livres da Polarização

*Artigo de Augusto de Franco, Roberto Freire, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini

Há no Brasil de hoje dezenas de milhões de eleitores que não se sentem representados pelas forças que dominam a arena política. São esses – em boa parte – os que apoiam a democracia como um valor universal e que são contra toda sorte de preconceitos e discriminações. São os que acreditam na eficiência do Estado, mas defendem uma economia livre, querem aliar desenvolvimento e sustentabilidade, desejam empreender, mas precisam de apoio ou, quando menos, que não sejam atrapalhados, os que sabem que segurança é inteligência e a violência, irmã da desigualdade.

São os que não acham que um pouquinho de inflação faz bem, nem querem leis dos anos 1940 regulando o trabalho, como ficou patente com a decisão dos líderes governistas de abandonar o projeto com o qual o governo pretendia transformar em trabalhadores CLT os motoristas e entregadores de aplicativo. São os que não veem legitimidade em invasões e depredações de patrimônio público ou privado, sejam eles patrocinados pelo MST ou por partidários de golpes de Estado. São os que defendem, de forma intransigente, as liberdades de expressão, organização e manifestação de acordo com as regras do Estado Democrático de Direito.

Eles não estão nos extremos ou polos que viraram instrumento de análise da divisão a que o lulismo e o bolsonarismo submeteram a sociedade, ambos em busca do poder pelo poder. Eles não defendem, nem justificam, grupos terroristas como o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e demais milícias do Oriente Médio que servem aos propósitos da teocracia iraniana e estão sendo usados pelas grandes autocracias do planeta contra os regimes democráticos – tampouco apoiam Nicolás Maduro, Vladimir Putin ou outros ditadores, de esquerda, de direita ou fundamentalistas religiosos.

Quem falará pelos cerca de 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas? Os partidos políticos falharam em interpretar os sentimentos, captar as aspirações e endereçar soluções para os problemas desse imenso contingente populacional. Os que não minguaram viraram satélites dos dois campos que alimentam a clivagem social e política brasileira. Não por outra razão, pesquisa recente do Datafolha mostra que aumentou a desconfiança da população dos partidos políticos. Os números, aliás, são alarmantes: só 43% confiam “um pouco”.

A construção de alternativas à polarização, portanto, terá de partir dos insatisfeitos com esse estado de coisas. E, nesse campo, há grande diversidade. De intelectuais a políticos, passando por jovens idealistas, professores, profissionais liberais, trabalhadores de chão de fábrica e de empresas de tecnologia, entregadores e motoristas de aplicativos, empresários, agricultores, artistas, sindicalistas, cientistas, enfim, pessoas comuns que querem viver, estudar, trabalhar, empreender, se divertir, amar e se congraçar com seus semelhantes sabendo que somente a democracia pode configurar ambientes pacíficos onde seus direitos políticos e suas liberdades civis sejam respeitados e valorizados.

Uma oposição democrática aos populismos, no governo ou fora dele, já existe no Brasil. Ela ainda é pequena e está dispersa, mas não crescerá por mágica nas eleições deste ano ou nas próximas. Isso só vai acontecer se as forças políticas democráticas começarem a se articular para influenciar de pronto a agenda nacional, resgatando o espaço público dos populismos de esquerda e direita que o sequestraram. Isso exige conversação livre e franca entre pessoas que não imaginam ter o monopólio da verdade e que estão abertas a ouvir e entender os pontos de vista do outro e, se necessário, a mudar seus próprios pontos de vista, seja em busca de convergência, seja porque alguém teve uma ideia melhor. Isso exige empenho contínuo, um exercício permanente de olhar para a frente, de pensar o País para além das disputas de poder.

Há muita gente disposta a isso, dentro e fora dos partidos, centristas, à esquerda ou à direita, nos mais diversos Estados. Gente cansada do destrutivo e paralisante “nós contra eles”. Gente que espera há anos por políticas que deram certo em outros lugares do mundo, independentemente da ideologia de seus idealizadores, mas que aqui são sabotadas pela polarização. Seja na educação, com a reforma do ensino médio, ou no saneamento básico, com o marco legal, para ficar em dois exemplos recentes de tentativa de retrocesso.

Que todos esses comecem a se conectar, virtual ou presencialmente, não importa se em grande ou pequeno número. O resultado desse esforço não será uma frente de pessoas que pensam igual, mas uma ecologia de diferenças coligadas. Não se articularão apenas para lançar candidatos, embora daí nascerão opções aos extremos, mas para congregar quem deseja trabalhar pela despolarização. Em nome dos milhões de brasileiros que almejam viver em um país melhor e estão fartos de quem lucra com a divisão da sociedade brasileira.

*Roberto Freire é político e advogado, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini são políticos e médicos, Augusto de Franco é político e escritor.

Uma enorme falsificação está em curso

O conceito de extrema-direita está sendo usado para promover uma enorme falsificação. Quem for contra Lula, o PT e seu governo, é logo classificado como extrema-direita. Pior, quem for a favor da resistência ucraniana à invasão do ditador Putin e contra o terrorismo do Hamas é suspeito de ser de extrema-direita. Quem for contra o eixo autocrático (a articulação das ditaduras de Rússia, China, Irã e seus braços terroristas, Coréia do Norte, Síria, Cuba, Venezuela e Nicarágua) é olhado como extrema-direita. Quem for contra o BRICS e o “sul global” é acusado de ser de extrema-direita.

A extrema-direita está sendo construída como o inimigo universal e único, às vezes chamado de “internacional fascista”. Com isso se esconde as ameaças do eixo autocrático às democracias liberais e as alianças espúrias de quem promove essa falsificação com as maiores ditaduras do planeta.

Mas são duas – e não apenas uma – as principais ameaças globais contemporâneas à democracia liberal.

Sim, existe de fato uma ameaça de extrema-direita às democracias, juntando ditadores e populistas-autoritários que se articulavam ou se articulam no The Movement e no CPAC e em outras iniciativas. Dela participam ou participaram Putin, Grillo e Casalégio (5 Stelle), Salvini e Meloni, Le Pen, Orbán, Trump e Steve Bannon, o pessoal do Brexit, Wilders, Chrupalla, Weidel e Gauland, Abascal, Ventura, Bukele e Bolsonaro.

Mas ela não é a única ameaça, nem a mais forte, às democracias. Ditadores e neopopulistas de esquerda, articulados no BRICS e no “sul global”, são uma ameaça muito mais premente. Ela reúne ditadores como Putin (novamente), Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei e a Guarda Revolucionária Iraniana, pelo menos treze grupos terroristas do Oriente Médio (com destaque para o Hamas e o Hezbollah), da Ásia, da África e da América Latina (Canel, Maduro, Ortega). Mas o mais grave é que a esse bloco se alinharam ou estão se alinhando neopopulistas como Kirchner, Funes, Zelaya, Lourenço, Obrador, Petro, Evo e Arce, Correa, Lula, Widodo e Subianto, e Ramaphosa. Esse eixo autocrático em ascensão é, objetivamente, o grande interessado na falsificação de dizer que a extrema-direita é o (único) inimigo universal.

Aliados ao eixo autocrático – sobretudo no Brasil, o PT, mas no plano global todos os que se denominam antifascistas – estão fazendo um carnaval com essa história do bicho-papão da “internacional fascista” de extrema-direita. Caberia perguntar-lhes: quer dizer que Kim Jong-un não é de extrema-direita? E Xi Jinping? E Vladimir Putin? E o aiatolá Khamenei? E o genocida Assad? E o Yahya Sinwar (Hamas)? E o Nasrallah (Hezbollah)? E o Canel, o Maduro e o Ortega? Não são, eles responderão. Afinal, todo esse pessoal é antifascista. Então tudo bem?

E que tal examinarmos os antifascistas presentes no BRICS? Ali não figura nenhuma democracia plena (segundo a The Economist Intelligence Unit 2023). Nenhuma democracia liberal (segundo o V-Dem 2024). Quais os regimes que comparecem nesse arranjo autoritário? Segundo o V-Dem 2024: Brasil – democracia eleitoral, flawed ou regime eleitoral parasitado por populismos; Rússia – autocracia eleitoral; Índia – autocracia eleitoral; China – autocracia fechada; África do Sul – democracia eleitoral, flawed ou regime eleitoral parasitado por populismo; Egito – autocracia eleitoral; Etiópia – autocracia eleitoral; Irã – autocracia eleitoral; Arábia Saudita – autocracia fechada; Emirados Árabes Unidos – autocracia fechada. E ainda querem colocar no bolo mais três ditaduras: Venezuela, Nicarágua e Síria.

Todo esse contingente, por ser antifascista, supostamente não ameaça a democracia? Ora, isso é uma falsificação grosseira. Se ditaduras não ameaçam a democracia, seremos obrigados a intercambiar os conceitos de ditadura e democracia. Quem sabe teremos de colocar os trinta regimes piores colocados no ranking do V-Dem 2024, classificados pelo Índice de Democracia Liberal (LDI), no topo da lista.

Quais são esses países? Em ordem de autocratização crescente são: Guiné, Catar, Irã, Uzbequistão, Emirados Árabes Unidos, Gaza, Haiti, Sudão do Sul, Azerbaijão, Rússia, Burundi, Cuba, Guiné Equatorial, Cambodja, Venezuela, Bareim, Síria, Iemem, Chade, Arábia Saudita, Sudão, Tadjiquistão, China, Belarus, Turcomenistão, Afeganistão, Nicarágua, Mianmar, Coréia do Norte, Eritreia. Vários desses, note-se, são países do eixo autocrático atualmente em guerra contra as democracias liberais.

E teremos de colocar no final da lista as cerca de trinta democracias liberais que restaram; a saber, em ordem de democratização decrescente: Dinamarca, Suécia, Estônia, Suíça, Noruega, Irlanda, Nova Zelândia, Finlândia, Costa Rica, Bélgica, Alemanha, França, República Checa, Austrália, Holanda, Luxemburgo, Chile, Reino Unido, EUA, Uruguai, Letônia, Espanha, Itália, Canadá, Islândia, Japão, Taiwan, Barbados, Butão, Coréia do Sul, Seicheles, Suriname.

Assim inverte-se tudo. Basta, para tanto, uma revisão dos conceitos. Tal revisionismo pode ser operado com quatro medidas:

Em primeiro lugar, reduzir democracia à cidadania ou à oferta estatal de bem-estar para o povo pobre (“casa, comida e roupa lavada” dispensadas por um governo popular) ou à luta pela redução das desigualdades socioeconômicas.

Em segundo lugar, avaliar que as mais avançadas democracias do planeta, as democracias plenas, as democracias liberais, são falsas democracias (“democracias burguesas” ou governos do “macho branco no comando”), regimes impostos pelas elites (classistas dominantes ou neocolonialistas) para estabilizar sua forma de dominação e continuar explorando o “terceiro mundo”; ou, agora, o “sul global”.

Em terceiro lugar estabelecer que a democracia não é um valor universal, mas ocidental e que, portanto, tanto faz uma ditadura ou uma democracia: a Rússia ou a Ucrânia, a China ou Taiwan, o Irã ou Israel.

Em quarto lugar, assumir que as autocracias são preferíves às democracias quando se colocam ao lado das grandes massas despossuídas do mundo contra o imperialismo norte-americano e o colonialismo europeu, que supostamente seriam as fontes de todo mal que assola a humanidade.

As implicações políticas do affair Musk versus Alexandre

Não é surpresa ver bolsonaristas pegando uma carona nas falas de Elon Musk e lulopetistas indignados com o bilionário sul-africano e defendendo o Alexandre. Nem os bolsonaristas, nem o Musk, nem o PT têm a ver com a democracia. Tudo isso é fruto da vil polarização populista.

A polarização já capturou as interpretações sobre a controvérsia Elon Musk x Alexandre de Moraes. O que está em discussão, do ponto de vista da democracia, nada tem a ver com Musk ser dito de extrema-direita, se apoia ou não Trump por baixo dos panos, sabe-se lá se anarco-capitalista, libertarista ou defensor de uma impossível liberdade irrestrita, racista ou supremacista. Nem tem a ver com as origens de Alexandre de Moraes, com suas ligações pregressas com dirigentes do quase-extinto PSDB e agora estar alinhado ao PT ou com o fato de ter sido indicado ao STF por Michel Temer. Envereda-se por essas alegações para reduzir tudo ao jogo bipolar extrema-direita x esquerda, reacionários fascistas x progressistas, golpistas x defensores do Estado de direito, bilionários imperialistas nos EUA x defensores da soberania nacional do Brasil, apoiadores da liberdade de expressão x proto-ditadores que querem extingui-la; para resumir: bolsonaristas x lulopetistas. Assim fica fácil não responder as questões. Se Musk é bolsonarista (e tudo mais que não presta) ou se Alexandre é petista (idem), então estão resolvidas todas as questões.

Mas as questões que realmente importam não estão respondidas. São, basicamente, as seguintes. O império da lei em uma democracia se traduz pelo império das instituições encarregadas de aplicá-la? A soberania popular em uma democracia pode ser exercida por alguma instituição considerada soberana? Existem entes soberanos em uma democracia? Os indivíduos em uma democracia são cidadãos ou súditos de um poder tido por supremo? O STF é chamado de suprema corte porque não há nenhum outro tribunal acima dele a quem os cidadãos possam recorrer, ou porque é um poder supremo mesmo? E há mais questões conexas. A democracia se reduz à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas? Estado de direito é a mesma coisa que democracia? Por último, cabe a um tribunal ou aos seus membros assumir um papel militante em defesa da sua concepção de democracia (sobretudo quando essa concepção não foi referendada pelo voto dos cidadãos)? Em nome dessa defesa da democracia membros de um tribunal podem acumular as funções de investigar, acusar e julgar, constitucionalmente assinaladas a poderes distintos e independentes?

Não sabemos se o X poderá ser bloqueado no Brasil. Nunca foi bloqueado em uma nação democrática. Sim, em 18 anos de existência, nenhuma democracia bloqueou o Twitter. Isso só aconteceu em ditaduras como a China, a Coreia do Norte, o Irã, a Rússia, o Turcomenistão e Mianmar. O PT e o STF querem colocar o Brasil nessa lista das piores autocracias do planeta?

Se o bloqueio não acontecer agora, num rompante prepotente de quem confunde a soberania da lei com a sua própria soberania, tudo vai depender do rumo que as coisas tomarem nos próximos meses. Se o lulopetismo tiver um resultado muito adverso nas próximas eleições, o PT vai turbinar essa espécie de guerra civil fria para a qual foi feito e na qual se sente confortável. E será correspondido pelo bolsonarismo. Ou seja, os populistas, ditos de esquerda ou de direita, vão acelerar o tudo ou nada visando apenas vencer as eleições de 2026 a qualquer preço para se delongar no poder ou para voltar ao poder. E com esse crescimento da polarização, poderão vir, sobretudo da parte de quem controla o Estado, inevitáveis restrições de direitos políticos e liberdades civis. affaire Alexandre versus Musk nos obriga a acender o alerta amarelo.

Não houve, até agora, desbloqueio de contas censuradas pelo STF, nem bloqueio do Twitter, mas algo mudou na conjuntura. O mundo agora está tomando conhecimento de que existe alguma coisa errada ou, pelo menos, discutível, no papel militante que a suprema corte brasileira vem assumindo em nome da defesa da sua visão particular da democracia. Alguns ministros, não raro, reduzem a democracia à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas. Mas não são a mesma coisa. Repetindo, então, pela importância do dito. A democracia é o império da lei e não o império das instituições encarregadas de aplicá-las. Nenhuma instituição pode ser soberana em uma democracia e os cidadãos não podem virar súditos de qualquer instituição, nem mesmo da chamada ‘corte’ dita ‘suprema’ (duas designações, aliás, pouco consonantes com o espírito da democracia).

Mas os democratas nada temos a ver com Elon Musk. E o Twitter, aliás, nem foi invenção dele. Cada um deve publicar naquela mídia o que bem entender, assumindo as responsabilidades por isso. O fato do Musk ser dono do agora chamado X e nele emitir opiniões contrárias ao que acreditamos não viola a democracia, ainda que suas opiniões possam ser antidemocráticas. Também não cabe a nós fazer avaliações morais sobre Musk, dizer que ele é hipócrita porque critica Alexandre, mas não critica a China. Ora, o presidente do Brasil, Lula, também não critica a China, a Rússia e outras ditaduras enquanto posa de salvador da democracia. Ou dizer, como fez ontem o Guga Chacra na Globo News, que ele é um babaca. Muitos proprietários de empresas cujos serviços utilizamos também poderiam ser avaliados por alguém como babacas. E daí? É como não querer pegar um avião num aeroporto construído pela Odebrecht porque não gostamos de seus donos ou reprovamos os crimes que cometeram. Por último, não nos cabe – para sabujar o PT – abrir uma guerra contra Musk, investigando sua vida privada ou profissional para ver se ele bateu na babá, roubou dinheiro do pai ou censurou seus próprios funcionários. Ninguém vai casar com o Musk. Ademais, o Twitter é apenas uma mídia, quer dizer, um meio de interação social, que podemos usar ou não.

Procedimentos jurídicos de exceção por parte do STF foram admitidos ou tolerados para preservar a democracia dos ímpetos golpistas de Bolsonaro. Mas aquela ameaça foi desarmada. Treze meses depois da cenográfica intentona de 8 de janeiro, não há mais perigo iminente para a democracia (se é que algum dia realmente houve, pois querer dar um golpe não significa que ele seria bem-sucedido). O STF vem se comportando como se estivéssemos em 2021 ou 2022 ou na passagem de 2022 para 2023, mas o fato é que já estamos em abril de 2024, com um presidente eleito exatamente porque se colocou contra as ideias e práticas do bolsonarismo. E esse novo presidente está governando sem contestações disruptivas da ordem democrática. Estão esticando uma configuração passada para torná-la eterna de modo a justificar a adoção de medidas excepcionais, inclusive a inconstitucional censura. Ou o STF acorda para isso ou vai continuar investindo na polarização e na guerra civil fria que sobrevirá – com alto risco, aí sim, de enveredarmos por um caminho de autocratização da democracia brasileira. Passou da hora de voltar à normalidade.

Terminamos o presente artigo com esse apelo aos membros do STF. É hora de parar com isso. Em qualquer hipótese o desfecho será desfavorável para a instituição e para o país. Não importa se os populistas (de direita e de esquerda) estejam querendo explorar o caso Musk para turbinar a polarização. Urge voltar à normalidade.


P. S. (10/04/2024). Uma mensagem no X a partir do que ficamos sabendo pela imprensa depois do artigo acima ser publicado.

Só uma pergunta. O governo Lula está criando uma teoria da conspiração para dizer que as diatribes de Musk na verdade são parte de uma grande articulação da extrema-direita internacional com parlamentares bolsonaristas para atacar o PT, a soberania do Brasil e o Sul Global?

Só uma resposta. Ora, é óbvio que os bolsonaristas pegariam uma carona nas falas de Elon Musk e que os lulopetistas ficariam indignados com o bilionário sul-africano e defenderiam o Alexandre. Não precisa de conspiração nenhuma para isso acontecer.

Uma reflexão final. ‘Não reunir é a derradeira ordenação’ (uma lição de Frank Herbert). A “orquestração” não precisa ser organizada. Ela é processada pela polarização. Temos de entender que a polarização é um programa, isso quer dizer que ela programa os aglomerados. É um programa de fazer lados.

Revolução em Curso

Há muita confusão na análise sobre o significado da ascensão da chamada extrema-direita, designação equívoca e anacrônica para o populismo-autoritário ou nacional-populismo (5 Stelle-Grillo-Casaleggio, Le Pen, Brexit, Bannon-Trump, Wilders, Orban, Erdogan, AfD, Chega, Vox, Olavo-Bolsonaro etc.) que floresceu, em especial, após o final da primeira década do século 21.

Não é uma reedição pura e simples dos fascismos dos anos 20-30 do século passado, ainda que seus próceres expressem, via-de-regra, um comportamento fascistoide. Pode-se dizer que é fascista no sentido daquele “Ur-fascismo” ou “fascismo eterno” de Umberto Eco; ou no sentido atribuido por Primo Levi: cada época tem o seu próprio tipo de fascismo; mas não, porém, no sentido estrito do termo em termos histórico-políticos.

Não é um projeto alternativo de sociedade, conservador em termos clássicos, para disputar com liberais e socialistas os rumos da política e sim uma irrupção antipolítica que não tem projeto algum, mas cujo resultado objetivo não é outro senão destruir o sistema tal como está configurado desde o final da segunda grande guerra.

É, nos seus próprios termos, um processo revolucionário que, como tal, não se enquadra no pacto formado em torno de regras aceitas por todos para dar curso ao jogo político. Poderia ser mal-comparado a um torneio de futebol em que um dos times parte para o vale tudo, até gol com a mão, porque o objetivo não é ganhar dos outros times para vencer o torneio e sim acabar com o próprio torneio.

Ora, isso é revolucionário, ainda que para trás, quer dizer, reacionário. As forças revolucionárias tradicionais, chamadas de progressistas, quer dizer, revolucionárias para frente, consideradas de esquerda, foram (ou em breve serão) as mais impactadas por essa insurgência dos novos (velhos) revolucionários para trás. E tiveram (ainda têm) grande dificuldade de perceber que suas táticas foram desconstituídas (ou pelo menos neutralizadas) pela entrada em cena de tribos antipolíticas extremistas, ditas de direita. Não perceberam bem o que aconteceu e continua acontecendo.

O caso do Brasil

Impossível deixar de notar a espantosa incapacidade da militância de esquerda do século passado (da primeira guerra fria) de entender o que está acontecendo. Vejamos o caso do Brasil. Há dez anos já havia ficado claro que o PT perdeu o monopólio das ruas. Cinco anos depois, ficou claro que perdeu também o monopólio das novas mídias (que ainda mantinha em virtude da rede suja de sites e blogs petistas). Não lhe restou alternativa senão se entrincheirar (usando jornalistas alinhados e verbas governamentais de propaganda) em alguns veículos de comunicação tradicionais, incorporando-os ao seu próprio sistema de governança. Em editorial de hoje (30/03/2024), o jornal O Estado de São Paulo abordou o tema sob o título A rua da esquerda está deserta.

Isso não significa que as novas forças que emergiram foram melhores do que as anteriores. O populismo-autoritário (dito de extrema-direita), inclusive por não respeitar as regras mínimas da democracia, conseguiu ser igual ou pior do que o neopopulismo (dito de esquerda). Significa apenas que o PT perdeu o monopólio das ruas e das mídias sociais. O que dirigentes e militantes, ainda exilados no século 20, não se perguntam, é o seguinte: por que isso acontece? Eis o ponto.

Muitas análises começam errando por viés (excesso de ideologia). Avaliam, por exemplo, que as grandes manifestações de rua de 2013 abriram caminho para a ascensão da extrema-direita. No Brasil, em particular, interpretam que no junho de 2013 se tratou de antipetismo (já que teve um impacto na drástica queda de popularidade de Dilma Rousseff, a presidente petista que estava no governo). Mas 2013 não foi nada disso. Não foi um ato de oposição ao governo. Foi uma revolta contra o sistema. O resultado de uma insatisfação difusa que se organizou de forma distribuída, molecularmente e sobre a qual ninguém poderia ter controle. Do ponto de vista da nova ciência das redes foi um swarming.

Junho de 2013 inaugurou a manifestação distribuída, na qual cada manifestante era – e pautava – sua própria manifestação, nela chegando com suas próprias pernas e levando seus próprios cartazes artesanais. Isso foi uma ruptura com as manifestações centralizadas dos sindicatos, centrais e partidos de esquerda, nas quais havia acarreamento e, no final, pagamento de manifestantes (com dinheiro vivo mesmo, além do tal sanduiche de mortadela com tubaína – o que já representava um sinal de decadência ou apodrecimento).

Claro que a atribuição de sentido para um ato é sempre uma disputa. Mas, no caso de 2013, não havia com quem disputar. As pessoas estavam descontentes com o sistema, mas quando perguntadas o que entendiam por sistema não sabiam responder. O que não significa que não estivessem descontentes com o sistema (e deve-se entender aqui por sistema a centralização que deixa as pessoas alheias às decisões sobre tudo que pode afetar suas vidas, notadamente do Estado e suas instituições hieráquicas, inclusive os partidos).

O que está acontecendo?

O que está havendo, portanto, não é a ascensão de uma chamada extrema-direita possível de ser combatida pela direita civilizada, pelo centro moderado liberal e pela esquerda progressista. É uma revolução antipolítica (contra a forma e a dinâmica adotadas pela política praticada por todas essas vertentes). Abrir uma guerra de cerco e aniquilamento contra a extrema-direita não vai resolver o problema. Pelo contrário, pode até agravá-lo porque existe base social real e as pessoas que engrosssam essas movimentações avaliadas como reacionárias não estão exatamente cumprindo ordens, seguindo diretivas, porque não estão aglomeradas em formas de organização centralizadas. Estão apenas se sintonizando e às vezes se dessintonizando, mas sempre nos seus próprios termos. E, chegado o dia da eleição, essas pessoas dão votos politicamente incorretos… Deus do céu! A extrema-direita está crescendo.

Não, os culpados não são as mídias sociais, o fenômeno é social antes de ser um problema das tecnologias, dos programas e dispositivos que viabilizam conexões e ensejam interações. O fenômeno tem a ver com as verdadeiras redes sociais, não com as mídias sociais (no Brasil incorretamente chamadas de “redes sociais” – o que só introduz mais confusão na análise).

Sem entender o que está acontecendo nas redes sociais, suas topologias (seus graus de distribuição) e a fenomenologia da interação que nelas se manifesta, será impossível avançar.