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Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

A Netwar

A netwar é a nova forma de guerra em uma sociedade-em-rede. Não é, como geralmente se pensa, a luta sem quartel travada nas mídias sociais (que dela representam apenas um pequeno aspecto). Antes de qualquer coisa, a netwar é social, não digital. É uma guerra que alcança as redes de pessoas (inclusive as que não interagem nas mídias sociais).

Para entender isso temos de voltar ao início da segunda década deste século, quando houve uma explosão das mídias sociais (incorretamente chamadas, no Brasil e em outros países, de redes sociais). Mídias sociais não são redes sociais. Poderiam ser, no máximo, ferramentas de netweaving. Acabaram, infelizmente, sendo o oposto ao conspirar contra as redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia). Não, não são ferramentas, dispositivos tecnológicos, sites, aplicativos, programas, algoritmos.

A netwar extravasa, não elimina, as guerras quentes (os conflitos armados que comumente chamamos de guerra). Aliás, o fato de um conflito ser armado só agrava circunstancialmente sua gravidade (pela ameaça mais premente às vidas humanas e dos demais seres vivos). Essencialmente, porém, ela altera o modo de regulação dos conflitos tornando-o menos pazeante e mais adversarial ou antagônico, ao produzir inimigos. Sim, a guerra, qualquer guerra, não é destruição de inimigos (um “efeito colateral”), mas construção de inimigos. Não importa se o inimigo da vez é a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de George Orwell (1949). A guerra constroi inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais, adotando padrões de organização hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos.

A netwar diminui os graus de distribuição das redes sociais e, consequentemente, altera a sua conectividade e a sua interatividade (ver imagem abaixo).

Imagem ilustrativa by Renato Cecchettini. Ao cortar conexões, a netwar multicentraliza a rede, quer dizer, converte uma rede mais distribuída do que centralizada em uma rede mais centralizada do que distribuída.

Não é “guerra de propaganda”. É reengenharia topológica. Ela multicentraliza (e estilhaça) as redes em miríades de esferas privadas opacas. É uma espécie de clustering fortemente restringido. A chamada tribalização, ou ilhamento em bolhas, é um dos efeitos observáveis dessa perturbação na fenomenologia da interação. A netwar desatalha, ou seja, corta as conexões (atalhos) entre os clusters. Ao fazer isso, conecta para dentro e desconecta para fora. E exclui nodos dos mundos sociais que habitavam. Com tudo isso, ela altera molecularmente comportamentos numa velocidade inimaginável, como numa reação em cadeia. Novos organismos sociais, malignos para a democracia, nascidos dessa operação, erigem-se em dias ou até em horas, talvez. Não há comparação com o tempo gasto para estruturar uma SS (Schutzstaffel) ou um Exército de Guardiães da Revolução Islâmica (Pásdárán), mais conhecido como Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC).

A netwar que está em curso – na segunda guerra fria que já eclodiu – é muito mais perigosa para as democracias do que todas as guerras mundiais do século passado (a primeira e a segunda guerras e a primeiro guerra fria).

Toda realidade política sob a terceira onda de autocratização em que vivemos está afetada por essa segunda guerra fria que se instalou, notadamente, a partir da terceira década do século 21. Como foi dito, não é uma terceira guerra mundial, nos moldes das duas anteriores, nem é uma reedição da primeira guerra fria do século 20, porque não é uma guerra de blocos demarcados sobre a geografia do globo. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é fractal, se instala dentro de cada país.

Um eixo autocrático, o mais poderoso já conformado em toda a história humana (Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, além de várias outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África e de Bharat – este último ainda uma incógnita), está movendo uma netwar mundial, uma campanha de isolamento e exterminação das democracias liberais. E, para tanto, está conquistando o alinhamento de regimes eleitorais não liberais parasitados por populismos (México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, Indonésia et coetera).

Essa segunda guerra fria é uma guerra essencialmente política (ou antipolítica, quer dizer, contra a política: que não é guerra e sim evitar a guerra), com múltiplos eventos regionais de guerra quente (conflitos armados) que servem, fundamentalmente, para alimentar a netwar. A guerra do Hamas contra Israel não é uma guerra regional visando a alcançar objetivos militares locais, mas uma das espoletas para a explosão de uma netwar global. Mesmo que vença militarmente no terreno de Gaza, Israel já perdeu a netwar cujo palco é o mundo inteiro (e tanto é assim que se manifesta nos campi das universidades americanas, passando pelas ruas e praças de Paris, de Londres e de Bogotá, até chegar na avenida Paulista no Brasil). A guerra de Putin contra a Ucrânia não é só contra a Ucrânia, para conquistar território e se apropriar de recursos naturais, e sim contra a ordem liberal vigente na Europa e nos Estados Unidos. E ela é travada em todo lugar, até na Assembleia Geral da ONU e no seu Conselho de Segurança.

As três dezenas de democracias liberais que restaram não vão conseguir passar incólumes por essa nova guerra mundial que já está em curso: ao que tudo indica haverá declínio de direitos políticos e liberdades civis até mesmo nesses países de democracia mais avançada ou plena (União Europeia sem Hungria, Reino Unido, Noruega e Suíça, EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia).

Não se sabe ainda o que acontecerá, mas já se pode apostar que não será bom para as democracias.

A segunda guerra fria: um resumo iconográfico

Antes de qualquer coisa é preciso saber que uma segunda grande guerra fria já está instalada. E que ela não é, como a primeira, uma divisão de blocos Oeste x Leste compostos por países. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é uma campanha de exterminação das democracias liberais promovida pelas maiores autocracias do planeta que se instala dentro de todos os países, capturando setores internos não-liberais desses países, sobretudo governos e forças políticas populistas.

Na segunda guerra fria há conflitos quentes convencionais (entre países, como Rússia x Ucrânia) e não-convencionais (entre grupos sub ou não nacionais entre si e contra países, como Hamas x Israel), mas predomina a netwar: a nova forma de guerra do século 21. Países autocráticos estão na ofensiva nessa forma de guerra que tenta interferir na geopolítica regional e mundial e, além disso, na política interna de cada país. A netwar não é menos perigosa do que as guerras frias convencionais. Ela pode ensandecer multidões que, dependendo das circunstâncias, não hesitarão em tomar de assalto as instituições democráticas.

Há um campo autocrático e um campo democrático no mundo atual. Potencialmente estão no campo autocrático, segundo a classificação do V-Dem 2023 (modificada por mim), 33 autocracias fechadas (não-eleitorais), 56 autocracias eleitorais e um número não-determinado (menor do que 58) de regimes eleitorais parasitados por populismos (ainda chamados, benevolamente, de democracias). Potencialmente, ainda segundo o V-Dem 2023 modificado, estão no campo democrático as 32 democracias liberais e um número não-determinado (também menor do que 58) de regimes eleitorais formais não-parasitados por populismos (que poderiam ser chamados, com mais razão, de democracias apenas eleitorais).

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Para além do campo potencial, há um eixo autocrático se formando no mundo em que vivemos, imerso desde o início do século em uma terceira onda de autocratização.

O objetivo do eixo autocrático é exterminar as democracias propriamente ditas (liberais ou plenas).

Há um campo democrático potencial, mas não propriamente um eixo democrático formado por democracias plenas ou liberais. No apoio à Ucrânia contra a invasão do ditador Putin chegou-se a formar uma inédita coalizão de democracias liberais (que poderia ser considerada um embrião desse eixo).

O eixo autocrático está capturando regimes eleitorais parasitados por populismos.

No campo democrático estão as democracias formais, não parasitadas por populismos.

Tudo isso é um briefing. Para explicações mais detalhadas leia o artigo Democracia é democracia liberal.