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Facção criminosa e organização terrorista

Eu assisti, ninguém me contou. No decorrer da invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, o apresentador da Globo News chamou repetidamente os vândalos de terroristas. Depois a emissora corrigiu essa abordagem (sem dizer que corrigiu, nem porque corrigiu). Os invasores tinham intenções golpistas (chamar uma intervenção militar para interromper o mandato do presidente recém-eleito e já empossado, Lula da Silva), mas eles eram terroristas?

Jair Bolsonaro (já eleito e ainda não empossado) declarou no final de 2018 na avenida Paulista: “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”. Os militantes do MST (de Stédile) e do MTST (de Boulos) são terroristas?

Putin acaba de fazer aprovar nestes dias, pelo parlamento fantoche da ditadura russa, um tratado de parceria estratégica com o ditador Maduro para, entre outras coisas, combater o… terrorismo. Ele, Putin, há sete anos, já havia chamado os opositores de Maduro (Maria Corina incluída) de terroristas e continua qualificando seus próprios opositores na Rússia como terroristas. O mesmo faz o ditador Erdogan na Turquia. Estão vendo como esse assunto é delicado?

O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.

A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto antigo em debate, de 1996, já caracterizava terrorismo como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.

Mas praticar atos que infundem o terror nem sempre é suficiente para caracterizar uma organização como terrorista. Por exemplo, em guerra mudam-se os critérios. No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo?

La Résistance, a resistência francesa à ocupação hitlerista, era terrorista? Era uma organização armada, não-regular, não-legal, que praticava atos violentos (matava, sequestrava, mutilava seres humanos, sabotava, explodia bombas etc.) com efeitos claramente propagandísticos: visando atemorizar a população civil para dissuadi-la de colaborar com o nazismo. E aí? Aí vale porque os invasores eram estrangeiros? Quer dizer que o que define terrorismo não é a natureza das ações praticadas e sim os motivos pelos quais foram praticadas? Quer dizer que se ações tipicamente terroristas forem praticadas em defesa da pátria ou da nação – e da soberania nacional – está valendo? Que ética é capaz de resistir a tais critérios?

Além disso, todos os governos autoritários classificam seus opositores mais incômodos como terroristas e, para tornar juridicamente válida essa classificação, tentam criar novas leis (ou modificar leis já existentes) para tipificar como terroristas as ações ofensivas dos que se lhe opõem.

O assunto é espinhoso e exige que nos concentremos no básico. E o básico é o seguinte:

Organizações terroristas sempre têm uma causa político-religiosa (incluídas aí as religiões laicas, como certas ideologias revolucionárias). Na verdade o terrorismo é, a rigor, uma via antipolítica para alcançar algum objetivo não-mercantil (ou extra-mercantil).

Facções criminosas não são organizações terroristas. Elas não têm causa nenhuma. Não se vê “soldados” do narcotráfico (ou “trabalhadores do narcotráfico”, segundo Gustavo Petro) sacrificando suas vidas para atingir um objetivo. Por exemplo, se imolando em praça pública ou detonando um colete de explosivos no meio de uma multidão para matar o maior número de pessoas. Não se vê nem mesmo um “lobo solitário” do narcotráfico esfaqueando uma pessoa na rua em nome da sua causa de libertação (como faziam os zelotas na antiga Palestina ocupada pelos romanos) ou em nome da instauração de um califado universal (como os jihadistas do Estado Islâmico ou da Al Qaeda).

Facções criminosas, ditas do narcotráfico, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, são organizações com objetivos de lucro. São empresas bandidas. Ou seja, seu comportamento não é presidido por uma racionalidade extra-mercantil. Pode-se dizer que são um novo tipo de organização criminosa para o enfrentamento do qual as forças de segurança não estão preparadas.

A rigor as facções criminosas, em especial o PCC, não são mais nem organizações dedicadas ao tráfico de drogas como seu negócio principal. São uma espécie de máfia (amoral, mas sem familismo), de base prisional (parte de seus principais comandantes estão protegidos dos seus concorrentes nas prisões, sob custódia do Estado), que lucram com a venda e a cobrança ilegal de serviços, a imposição de taxas sobre negócios privados e a extorsão da população capturada em seus territórios.

Segundo artigo de Arthur Trindade, publicado no Correio Braziliense de ontem, “um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, existiam 88 facções de base prisional no Brasil. Sendo que 72 delas têm atuação local como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e têm conexões internacionais”.

Fala-se de uma coordenação entre governos federal e estaduais para enfrentar o crime organizado. Não basta. A situação chegou a tal ponto que é necessário um verdadeiro pacto social. Por mais que se aumente a repressão, a inteligência e os recursos, isso não bastará. É necessária a participação da sociedade e, inclusive, a colaboração das populações sequestradas nos territórios dominados pelas facções (muitas vezes na forma de resistência que não pode se revelar). Todavia, governos populistas, ditos de esquerda ou de direita, não são capazes de promover nada disso. Os de esquerda continuam acreditando que a criminalidade deriva da desigualdade social – o que leva à uma perigosa leniência, como se os criminosos fossem rebeldes primitivos que só existissem em razão da brutal desigualdade social e da exploração econômica, da opressão política e da dominação e discriminação ideológica das elites, dos capitalistas, dos imperialistas, dos neocolonialistas, sobre os trabalhadores ou o povo pobre. Os de direita continuam acreditando que existem os homens do bem e os homens do mal e que os primeiros devem exterminar os segundos pela força bruta, extirpando as maçãs podres da cesta – o que é a barbárie.

Definir as facções criminosas como organizações terroristas é uma armadilha autoritária. É conveniente para os que acham que se trata de eliminar fisicamente os bandidos (na base do “bandido bom é bandido morto”, ao arrepio das normas que regem os Estados democráticos de direito). Ninguém se escandaliza quando forças de segurança policiais ou militares abatem a tiros um terrorista, seja em Telavive, em Chicago, em Londres ou Amsterdã. Ninguém cobra que o terrorista seja preso, após a leitura de seus direitos e apresentado a um juiz. Há um consenso (tácito) sobre isso, que atravessa as ditaduras e chega até às mais plenas democracias liberais.

Mas matar os membros das facções criminosas não resolve o problema. Mil chacinas policiais ou militares não resolverão o problema. Cada “soldado” morto no narcotráfico será substituído rapidamente por outro. Cada “comandante” morto será sucedido por outro. Antes de qualquer coisa porque, a despeito dos riscos imensos, o negócio é muito lucrativo. E também porque o ambiente configurado nas favelas e periferias é favorável à instalação e replicação de uma cultura que valida, aos olhos de parte das comunidades, tal comportamento. Os feitos dos “heróis insurgentes” dos morros são cantados em prosa ou verso por artistas populares, cujas músicas são ouvidas por todos, crianças, jovens, adultos e idosos que nada têm a ver com o crime. Sim, o que estou dizendo é que há base social que permite que esse tipo de organismo nasça, cresça, se desenvolva e se reproduza.

Vários fatores combinados permitiram (e continuam permitindo) o surgimento (e a proliferação) desse tipo de organização criminosa. O principal desses fatores é uma depressão no campo interativo que extermina velozmente capital social. CV, PCC e Milícias surgem desse black hole. Uma deformação do tecido da sociedade – e uma degeneração do Estado inclusive (sobretudo no caso das milícias, que não surgem por ausência de Estado já que são uma espécie de dark side do próprio Estado). As facções criminosas do narcotráfico são uma degeneração do modo de agenciamento chamado mercado, assim como as milícias são uma degeneração do modo de agenciamento chamado Estado. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Esquerda latino-americana abandona luta venezuelana pela democracia

O Prêmio Nobel da Paz de Maria Corina Machado deveria ter unido a América Latina na celebração da resistência democrática ao autoritarismo. Em vez disso, expôs uma profunda divisão ideológica.

Em seu anúncio, o Comitê Norueguês do Nobel descreveu Machado como “um dos exemplos mais extraordinários de coragem civil na América Latina nos últimos tempos”, destacou seu trabalho de uma vida inteira pela democracia diante da máquina violenta do regime de Nicolás Maduro e o vínculo inextricável entre democracia e paz. O regime de Maduro é uma força desestabilizadora e destrutiva na região, e seu domínio contínuo é uma mancha na região que todos os latino-americanos deveriam desejar ver encerrada.

Em vez de aclamação universal, no entanto, as reações dos líderes políticos latino-americanos se dividiram em linhas ideológicas, com líderes da direita exultando com a notícia e os da esquerda, com algumas exceções notáveis, optando por ignorar a conquista, criticar o Comitê do Nobel por politizar o prêmio ou castigar Machado por uma série de ofensas. A reação destaca até que ponto os compromissos ideológicos têm precedência sobre a fidelidade à democracia entre muitos na esquerda latino-americana.

Embora as críticas de líderes autoritários como o presidente cubano Miguel Díaz-Canel fossem esperadas, o silêncio de líderes democraticamente eleitos é decepcionante. A presidente mexicana Claudia Sheinbaum, quando questionada sobre o prêmio, evitou responder com um “sem comentários” e uma referência lacônica à tradição mexicana de não interferência. O brasileiro Lula da Silva também não fez nenhum comentário, e seu assessor Celso Amorim criticou o Comitê do Nobel por uma decisão que, segundo ele, priorizou a política em detrimento da paz.

O presidente colombiano Gustavo Petro, após publicar inicialmente uma mensagem de felicitações, porém ambígua, disparou uma série de perguntas a Machado sobre como sua aproximação com líderes estrangeiros como Benjamin Netanyahu poderia levar à democracia na Venezuela e, em vez disso, apelou por um diálogo nacional na Venezuela.

Notavelmente, Bernardo Arévalo, o presidente de esquerda da Guatemala, escreveu uma nota de felicitações a Machado por X, sendo praticamente o único entre os líderes de esquerda a reconhecer Machado.

Houve respostas discretas dos líderes de esquerda do Uruguai e do Chile, frequentemente considerados baluartes da democracia na região. Yamandu Orsi, do Uruguai, declarou que este teria sido um bom ano para o prêmio não ter sido concedido. E o presidente chileno, Gabriel Boric, não se pronunciou sobre o assunto, embora seu ministro das Relações Exteriores tenha parabenizado Machado.

As reações revelam como os compromissos ideológicos suplantaram os princípios democráticos na região. Não que Machado deva estar isenta de críticas. Pode-se questionar seu apoio às sanções americanas ou o grau em que ela se alinhou ao presidente Donald Trump, incluindo o apoio ao reforço militar americano no Mar do Caribe, sem desconsiderar a importância e o peso moral de sua campanha.

E sim, Machado dedicou seu prêmio a Trump, uma atitude calculada para manter o apoio da democracia mais poderosa do mundo em um momento em que os líderes regionais abandonaram sua causa.

Mas a facilidade com que muitos na esquerda ignoram ou menosprezam Machado e seu movimento expõe a falsidade de sua retórica sobre solidariedade e democracia, bem como a elevação de princípios defendidos como soberania e não interferência acima de direitos civis básicos e normas democráticas.

O contraste é impressionante. Líderes de esquerda analisam o apoio de Machado às sanções e seu alinhamento com Trump, mas permanecem em grande parte em silêncio sobre a prisão de quase 2.000 dissidentes por Maduro após as eleições de julho, a tortura sistemática documentada por organizações de direitos humanos ou a transformação da Venezuela em um Estado criminoso pelo regime.

O presidente Lula chegou a sugerir em 2023 que a democracia estava “prosperando” na Venezuela e criticou a “narrativa de autoritarismo” contra Maduro – isto é, sobre um regime que baniu candidatos da oposição, fechou a mídia independente e forçou 8 milhões de pessoas ao exílio.

Por sua vez, Machado permanece focada em construir um movimento democrático na Venezuela e lançar as bases para um retorno à democracia. Ela provavelmente continuará buscando apoio onde quer que o encontre e afirma que os governos devem fazer uma escolha simples: “estar com o povo da Venezuela ou com um cartel narcoterrorista”.

A resposta fragmentada de hoje, tanto ao roubo eleitoral de Maduro quanto ao Prêmio Nobel de Machado, revela o quanto a ideologia atualmente divide a América Latina, deixando os democratas venezuelanos isolados e a região enfraquecida. Até que os líderes latino-americanos possam celebrar a coragem democrática, independentemente de sua coloração política, eles permanecerão incapazes de enfrentar as ameaças autoritárias em seu próprio hemisfério.

Como observou o Comitê Nobel, “a liberdade nunca deve ser considerada garantida, mas deve ser sempre defendida — com palavras, com coragem e com determinação”. Essas são precisamente as qualidades que faltam entre os atuais líderes da região.

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Censura à direita: a batalha política pela linguagem

Tão logo pensei na expressão “censura à direita” para servir de título a este artigo, dei-me conta da sua ambiguidade.

O duplo sentido decorre da estrutura sintática da frase. De fato, a preposição “a” na locução “à direita” pode indicar tanto a direita como sujeito agente da censura (apontando a censura promovida pela direita) quanto a direita como sujeito paciente da censura (apontando a censura promovida pela esquerda).

Sabendo que o leitor tenderá a interpretar a frase com base no seu conhecimento prévio, valores e expectativas, achei por bem manter a anfibologia do título como uma espécie de armadilha ou pegadinha com a qual espero ter fisgado leitores de ambos os espectros políticos.

De todo modo, acrescentei um subtítulo que dá ao leitor ansioso uma pista acerca do rumo que esse artigo tende a tomar: “a batalha política pela linguagem.”

Em artigo publicado no mês passado, intitulado “Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke” escrevi que a eleição de Donald Trump foi uma reação ao avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista, mas escrevi também que deveríamos estar atentos, pois o absurdo da cultura woke não deveria ser enfrentado por meios igualmente absurdos e autoritários.

Infelizmente, porém, as coisas estão tomando esse rumo e à “revolução do senso comum” tem faltado o mais elementar bom senso.

O governo Trump está eliminando, com sucesso, programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O problema é que, para conseguir isso, ele está também cerceando, em certos aspectos, a liberdade de expressão e apagando um pouco da história.

O jornal New York Times compilou uma lista extensa de termos que estão sendo evitados ou proibidos pela gestão do atual presidente americano.

A lista inclui termos já esperados como “LGBTQ”, “não binário”, “identidade de gênero”, “multicultural” “sexualidade”, mas também “defensores”, “ativismo”, “opressão”, “nativo americano”“mulheres”, “injustiça”, “imigrantes”, “vítimas”, “deficiência”, “prostitutas”, “socioeconômico” e por aí vai.

As centenas de palavras sob bandeira vermelha estão sendo apagadas de sites públicos e currículos escolares.

Em alguns casos, gerentes de agências federais foram apenas orientados a ter cautela no uso dos termos, em outros casos, porém, as palavras foram proibidas.

A presença das “palavras erradas” também pode sinalizar automaticamente a necessidade de revisão de propostas de subsídios e contratos.

Essa política não se limita à linguagem em documentos textuais. De acordo com a matéria veiculada no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ), o Pentágono está revisando seu acervo fotográfico para remover imagens que não se alinham com essa nova diretriz, tendo criado uma base de dados com milhares de fotos destinadas à remoção.

Entre as imagens em risco de remoção está a da aeronave “Enola Gay”, que lançou a primeira bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, embora o nome da aeronave remeta não à condição homossexual, mas ao nome da mãe do piloto.

Fotos dos “Tuskegee Airmen”, primeiros pilotos afro-americanos da Segunda Guerra, reconhecidos como heróis por sua contribuição para o fim da segregação militar nos Estados Unidos, além de fotos das primeiras mulheres em papéis ativos nas Forças Armadas também correm risco de ser removidas.

Apesar de o presidente Trump e seu fiel conselheiro, Elon Musk, se apresentarem como arautos da liberdade de expressão e serem assim aclamados pela direita brasileira, a identificação e supressão de vocabulário específico pode implicar uma séria e perigosa restrição do debate em relação a tópicos considerados indesejados pelo governo.

A situação é um tanto complexa quando consideramos que o extenso e extravagante vocabulário woke disseminado por décadas representa, de fato, a tentativa de controle da narrativa por parte da esquerda progressista. Mas a forma como o combate ao wokismo está evoluindo na guerra cultural dos EUA aponta para um estreitamento do debate genuíno.

A linguagem, que deveria ser instrumento de reflexão e libertação, é manipulada ora por um lado, ora pelo outro, sob diferentes pretextos ideológicos. Seja na gestão Biden, seja na gestão Trump, o que se percebe é a tentativa reiterada de controle linguístico.

O que podemos tirar de lição é que tanto a esquerda quanto a direita batalham para encaminhar a sociedade a um mundo autoritário – quiçá totalitário – no qual não há verdade e a linguagem é apenas o reflexo do poder.

Direita e esquerda: os dois polos da estupidez

Direita e esquerda reduziram-se, no Brasil, a dois polos de estupidez. Isso chegou a um nível tal que não parece haver mais vida inteligente em nenhum dos lados dessa militância.

Cada um dos polos ideológicos, claro, vai se julgar superior; direitistas reacionários, principalmente aqueles que adquiriram seus conhecimentos políticos via Olavo de Carvalho e Brasil Paralelo medirão seu próprio conhecimento por contraposição à educação doutrinária e militante predominantemente de esquerda, a qual chamam depreciativamente (com uma dose de razão) de educação Paulo Freire.

Em ambos os lados, porém, há mero verniz intelectual encobrindo vasta ignorância. E aqui não faço apologia a um eruditismo vão e pedante. Pelo contrário, penso que faz falta nos dias de hoje a simplicidade da vida comum, o desprezo cético por teorias e discussões inócuas.

Temos vivenciado uma contínua subordinação das mais diversas esferas da vida às exigências políticas. Mas não há pensamento onde só há ideologia e, paradoxalmente, a politização de tudo equivale à própria destruição da política.

Isso tende a provocar nas pessoas mais sóbrias e ponderadas uma saturação, uma hostilidade e desprezo pela política e suas questões.

O debate público passa a padecer, com isso, de uma fuga de cérebros: aqueles que poderiam contribuir com alguma palavra sensata rendem-se ao cansaço e ao tédio, enquanto os exaltados, os fanáticos, os parvos e os mal-intencionados alçam a voz, preenchendo ruidosamente todos os espaços públicos, das redações de jornais aos púlpitos das igrejas, das tribunas às cátedras universitárias, das redes sociais aos quadros do funcionalismo público.

Essa extensão da visão político-partidária-ideológica para instâncias nas quais a importância política está justamente no caráter apolítico do exercício de tais funções é perigosa.

Há décadas, no importante ensaio “Verdade e Política”, a pensadora Hannah Arendt já alertava que determinadas instituições públicas, embora estabelecidas e apoiadas pelos poderes, precisam estar ciosamente protegidas da influência e da pressão política.

A politização, por exemplo, do judiciário e das instituições de ensino, algo tão gritante no Brasil, é inegavelmente prejudicial à cultura democrática, embora os que politizam tais setores o façam, na maioria das vezes, em nome da democracia.

Outro setor seriamente afetado pela estupidificação ideológica, pela má-fé e pelo servilismo dos que se curvam ao poder em detrimento de suas precípuas funções é a imprensa.

Em artigo recente, o jornalista Felipe Moura Brasil analisou o problema do ativismo no jornalismo mostrando os prejuízos da ausência de distinção entre informação e juízo de valor:

“No mercado da comunicação, além da eventual indistinção entre setores noticiosos, analíticos e opinativos, há profissionais e ´especialistas´ que buscam dar ares de informação a seus juízos de valor, enviesando o noticiário e turbinando um dos maiores problemas do nosso tempo: a perda da base comum de realidade objetiva, que finca as discussões públicas em alicerces factuais”, escreveu o diretor de Jornalismo desse portal O Antagonista e da revista Crusoé.

No já referido ensaio, Hannah Arendt analisa essa confusão entre fato e opinião, assim como a hostilidade à verdade factual quando esta se opõe ao lucro ou ao prazer de um determinado grupo. Esse aspecto também é abordado no artigo de Felipe Moura, que denuncia o ativismo político autoritário que busca deslegitimar com ofensas e distorções as poucas fontes idôneas de conhecimento factual.

Hannah Arendt foi uma filósofa judia, que fugiu do nazismo e se estabeleceu nos Estados Unidos, tornando-se uma pensadora mundialmente reconhecida por ocasião da publicação de As origens do totalitarismo (1951).

Sua obra analisa não apenas as entranhas de uma sociedade que se precipitou no abismo totalitário, mas expõe também os resquícios de tendências totalitárias que permanecem em germe nas sociedades atuais.

Não apenas na sociedade mundial, mas também aqui, na sociedade brasileira, há uma atmosfera autoritária perigosa, um ar difícil de respirar, politizado demais. Os sinais de que estamos no caminho da servidão voluntária são numerosos.

Esse caminho se alarga mais toda vez que o influente militante da direita aponta o dedo para toda a esquerda, amaldiçoando-a e o influente militante da esquerda aponta o dedo para toda a direita, defenestrando-a, como se apenas ali, no espectro político que não lhe diz respeito, estivesse todo o perigo e todo o mal.

A demonização do adversário político serve aos propósitos dos autoritários e o pendor autoritário é ambidestro.

O Brasil está mergulhado em um caos social. A raiva, o rancor, a decepção, a frustração dos brasileiros será mais uma vez manipulada, instrumentalizada se não rompermos a bolha da ignorância e do fanatismo.

Ainda somos uma democracia. Uma democracia disfuncional, agonizante. Cabe a nós, porém, revigorarmo-nos como nação livre, plural e tolerante ou deixarmos o nosso país se enterrar de vez ao som da trombeta apocalíptica de qualquer discurso político demagógico de ocasião.

Más Companhias

Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Clube Autocrático

O ano inicia com um novo formato do BRICS. Entram no clube fundado por China, Brasil, África do Sul, Rússia e Índia, os seguintes novos sócios: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O bloco passa a ser formado por dez países depois desta que é considerada a mais importante ampliação do grupo que opta por uma guinada autocrática, tornando-se definitivamente um fórum hostil ao movimento democrático.

O novo BRICS ou BRICS 10, como tem sido chamado em alguns fóruns internacionais, é composto em sua vasta maioria, ou seja, 80%, por países que não possuem qualquer traço democrático em suas estruturas, sendo considerados ditaduras ou autocracias.  As exceções são Brasil e África do Sul. Nenhum membro, entretanto, pode ser classificado como uma democracia liberal plena.

A avaliação é a mesma daquela realizada pelos principais órgãos que medem os níveis de democracia em escala global, como a Freedom House sediada nos Estados Unidos, Universidade de Gotemburgo na Suécia e Economist Intelligence Unit com base no Reino Unido. O cálculo geral mostra que hoje existe uma ampla maioria de ditaduras e autocracias no mundo e o número de democracias vem regredindo constantemente.

O movimento de expansão do BRICS, portanto, é a expressão clara deste movimento pelo qual passa o mundo em tempos recentes, porém, as consequências deste caminho ainda não foram medidas. Entretanto, causa ansiedade notar que nações classificadas como democracias eleitorais ou imperfeitas como o Brasil se deixem seduzir pela aliança com países que violam garantias e liberdades conquistadas ao longo da História. Nosso país deveria rumar em sentido oposto, consolidando alianças com democracias.

Dentro do BRICS 10, o Brasil agora estará ao lado de autocracias eleitorais, ou seja, aquelas que realizam eleições simplesmente protocolares como Rússia, Egito, Índia e Etiópia, onde sabemos antecipadamente os vencedores. Além destas, agora somos sócios de autocracias fechadas, países já sem qualquer pudor em aplicar uma política despótica, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Irã e China, considerados também regimes autoritários consolidados.

Em Buenos Aires houve uma correção de rumo. O novo governo fez a opção por declinar do convite do BRICS, uma vez que não acredita nos propósitos de um grupo que possui a autocracia como fator balizador e a liderança da China como farol. Os argentinos foram além e falam em diminuir a dependência do investimento chinês que tem tornado aos poucos muitos países reféns dos desejos de Pequim.

Este é o principal ponto deste clube autocrático. O BRICS está longe de ser uma iniciativa que eleva países periféricos a serem partícipes do concerto internacional. O grupo se tornou a principal base de lançamento de iniciativas, financiamento e apoio mútuo de uma política baseada em interesses que estão em confronto direto com os valores ocidentais de liberdade e democracia. Um clube que mina os esforços em prol da democracia, liberdade e soberania daqueles que rejeitam sua cartilha. Uma forma de imperialismo e dominação que de forma silenciosa vem impondo sua agenda e seus interesses em escala global.  

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal

Polarização doméstica e insegurança global

Concordo com  Ian Bremmer, fundador e CEO do Eurasia Group, famosa consultoria em análise de risco político, e Robert Gates, secretário da Defesa nas administrações dos ex-presidentes George W. Bush (Republicano) e Barack H. Obama (Democrata), quando criticam a atual disfuncionalidade do sistema político norte-americano e se preocupam com às consequências perigosas do presente grau inédito de polarização doméstica para a segurança dos Estados Unidos e seus aliados.

Recente pesquisa nacional do Centro de Política da Universidade da Virgínia, liderado pelo professor Larry Sabato, contribui para agravar esses temores. Realizado entre 25 de agosto e 11 de setembro últimos, entrevistando amostra nacional de eleitores registrados como Democratas, Republicanos ou Independentes desde 2008, o survey apontou tendências perturbadoras na opinião pública americana. Se a eleição de novembro de 2024 fosse antecipada para hoje, 52% dos respondentes escolheriam reeleger Joe Biden; e 48% iriam de Donald Trump.

Quanto às preferências partidárias, 44% dos entrevistados se definem como Democratas; 38% como Republicanos; e 18% como Independentes. Dos autodeclarados Democratas, 88% expressam intenção de reeleger Biden; 90% dos autodeclarados Republicanos querem a volta de Trump à Casa Branca; enquanto os autodeclarados Independentes dividem-se quase igualmente entre o segundo (51%) e o primeiro (49%).

Questões econômicas: dos 34% dos entrevistados que se autorrotulam como Progressistas (esquerda), 80% pretendem votar em Biden; entre  os 42% dos autodefinidos  Conservadores, 76% cravarão Trump;  e dos 25% que se dizem Moderados, 60% ficam com Biden e 40% com Trump.

Questões sociais:  78% dos respondentes que se declaram Conservadores preferem Trump nesse quesito; e 82% dos que se declaram Progressistas preferem Biden. Entre os que se definem como Moderados no campo social, 54% preferem Biden e 45% preferem Trump.

Agora vêm os resultados mais ‘preocupantes’ da pesquisa para o futuro da democracia na América. Para 41% dos eleitores de Trump e 30% dos eleitores de Biden consideram que a discórdia no país é tão aguda que apoiariam a separação (secessão) entre estados “vermelhos” (maioria Republicana) e “azuis” (maioria Democrata).

Dos eleitores de Trump, 31%  já não creem que a democracia seja um sistema viável e aceitam experimentar formas de governo alternativas. A opinião é compartilhada, ‘pelo avesso’, por 24% dos eleitores de Biden.

Amplos 70% dos que pretendem reeleger o presidente Democrata no ano que vem receiam que uma vitória Republicana resulte em dano duradouro para a república; 68% dos eleitores de Trump alimentam os mesmos na hipótese de uma vitória Democrata.

Fatia robusta do eleitorado de Biden (41%) julga que quem apoia o Partido Republicano e sua ideologia tenha se tornado tão extremista a ponto de que isso justificaria o uso da violência para impedir o G.O.P. de alcançar seus objetivos; 38% dos eleitores de Trump pensam o mesmo a respeito dos Democratas.

Os Estados Unidos estão vivendo sob o signo do identitarismo partidário: 40% dos eleitores de Biden admitem que os valores e crenças políticos formam parte significativa de sua identidade e considera que votar “no outro partido” é ser desleal. E 39% dos eleitores de Trump nutrem as mesmas atitudes em relação aos Democratas.

De acordo com 31% dos eleitores de Trump, os fins justificam os meios e qualquer ação do Partido Democrata será aceitável desde que sirva para atingir os objetivos partidários — atitude compartilhada por 21% do eleitorado trumpista.

Parruda parcela dos eleitores de Biden concorda com o emprego de meios não democráticos para a consecução das seguintes metas ‘progressistas’: restrição/proibição de armas de fogo (74%); programas obrigatórios pró-diversidade em todas as empresas (69%); redistribuição da riqueza para combater as desigualdades de renda (56%); regulação/restrição de manifestação de pontos de vista considerados discriminatórios ou ofensivos (47%); limitação de certos direitos, como liberdade de expressão para proteger os sentimentos e a segurança de grupos marginalizados (31%).

Muitos eleitores de Trump também topam contornar normas democráticas a fim de prestigiar objetivos conservadores: introdução de leis exigindo respeito aos símbolos e líderes nacionais (50%); repressão a protestos e demonstrações que o governo considere ameaçadores da ordem pública (45); autoridade do presidente para desconsiderar decisões do Congresso na área de segurança nacional (37%); restrições à expressão de opiniões consideradas antipatrióticas (37%).

Os temas ‘quentes’ da imigração e da educação evidenciam ainda mais esse abismo político-ideológico: 78% dos entrevistados pró-Biden consideram necessário reformar as leis de imigração a fim de atender às necessidades dos imigrantes ilegais e contribuir para enriquecer a diversidade social da América (contra 58% dos respondentes pró-Trump), enquanto 70% dos eleitores de Trump — e 32% dos de Biden — apoiam a adoção de leis que limitem o acesso dos imigrantes ilegais ao perca-os de trabalho e aos benefícios sociais da educação, da saúde e da seguridade. De outra parte, dos entrevistados pró-Biden sugerem que o currículo escolar enfatize injustiças sistêmicas e outros aspectos negativos da história dos Estados Unidos (contra 55% dos respondentes pró-Trump). Ao mesmo tempo, esse eleitorado trumpista acredita que as escolas públicas devem ser obrigadas a ministrar educação cívica e enfatizar o patriotismo, sem conferir destaque a aspectos negativos da história nacional  (contra 28% do eleitorado de Biden).

Por último, mas não em último, o relatório da pesquisa revela que os eleitores continuam profundamente divididos em suas opiniões quanto ao resultado da disputa presidencial de 2020: 56% dos eleitores de Trump, mas 23% dos de Biden, creem que foi o Republicano que venceu aquele pleito e que a presidência lhe foi roubada por meio de fraude e manipulação do sistema eleitoral. Já 88% dos eleitores de Biden creem que aquela eleição presidencialí foi segura, livre de fraudes e que o candidato Democrata colheu uma vitória inequívoca, em contraste com os parcos 4% dos eleitores de Trump que compartilham essa confiança.

Desafios do Investimento Estrangeiro

Investimento estrangeiro é um assunto que está na pauta do Brasil. Somos um país com forte déficit de poupança interna, que precisa de capital externo para realizar investimentos. Esta é uma realidade antiga que nenhum governo de direita, esquerda ou centro conseguiu resolver e pelo menos nas últimas quatro décadas faz parte do debate brasileiro.

Em 2021, os americanos aportaram US$ 200,1 bilhões no Brasil, ou 22,2% do valor total investido no país. A China, apesar de ser um parceiro comercial relevante, investiu no mesmo período apenas US$ 49,7 bilhões, uma fatia de modestos 5,5%. A Europa foi além e investiu US$ 566,9 bilhões no Brasil, quase o triplo dos americanos. Em tempos de discussão de um acordo de livre-comércio com os europeus, um dado relevante que precisamos manter em nosso radar.

As vantagens em lidar com União Europeia e Estados Unidos são claras, afinal, estamos lidando com países democráticos com instituições estáveis, judiciário independente e regras definidas. Para fluxos de comércio constantes e longos, que geram emprego e riquezas, pilares como estes são essenciais, pois fornecem segurança e manutenção das regras, elementos centrais para dinâmicas comerciais profundas, saudáveis e sólidas, afinal, democracias gostam de democracias.

Para além das democracias, a China desponta como um parceiro sedutor para os países sedentos de investimentos, porém com recursos direcionados para áreas definidas.  Nos últimos anos, o setor de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica foi aquele que mais recebeu investimentos chineses no Brasil. Portos e minas também estão na mira de Pequim. Um desenho que avança sobre setores estratégicos.

Diante disso, é preciso entender até que ponto o investimento estrangeiro em setores críticos, concentrados em empresas de um mesmo país, podem afetar nossa soberania e segurança como nação. Isto porque em geral são empresas que se confundem com governos autoritários e respondem exclusivamente ao seu interesse nacional – algo que se tornou um fato em nações seduzidas pela chuva de yuans proporcionada por Pequim.

Enquanto África e América Latina tem aberto suas portas sem maiores restrições, Europa e Estados Unidos buscaram proteger sua soberania em setores estratégicos. Para evitar tornarem-se vulneráveis, a solução passou por diversificação e competição, ao contrário do modelo proposto pelos chineses. Países desenvolvidos têm buscado receber investimento, porém evitam a dependência. Para isso usam aquilo que se convencionou chamar no meio internacional de mecanismos de verificação, conhecido como screening mechanism, uma ferramenta que merece maior atenção no Brasil.

Em tempos modernos, de inteligência artificial e sistemas remotos de controle, qualquer país pode se tornar vulnerável, especialmente aqueles que precisam demasiadamente de recursos externos. É preciso evitar riscos, atrair capitais de qualidade, essencialmente de países democráticos e criar mecanismos de verificação para que o país evite se tornar refém de países autoritários em setores estratégicos – recursos que chegam fáceis, mas cobram um alto custo adiante. Este é o grande desafio que se impõe ao Brasil, evitar trocar o estatismo do passado pela submissão externa a regimes autoritários no futuro.

Como o crime organizado deforma a democracia latino-americana

Quando o crime está em ascensão, a própria democracia sofre uma crise de confiança.

O assassinato do candidato presidencial equatoriano Fernando Villavicencio, há um mês, sublinha uma ameaça crescente à democracia em toda a América Latina: a influência crescente de grupos criminosos e de governos que parecem relutantes ou incapazes de enfrentar o crime organizado.

O poder do crime organizado põe em risco o futuro da região e, como importante motor da migração para os Estados Unidos, aponta para uma deterioração ainda maior da crise fronteiriça antes de melhorar.

O crime organizado está presente na América Latina há décadas, mas aumentou dramaticamente a sua presença geográfica nos últimos anos e evoluiu para se tornar mais adaptável e inovador. Mesmo com o aumento da produção e do tráfico de drogas, muitas organizações criminosas diversificaram-se para outras atividades, como a extorsão, a mineração de ouro e o tráfico de seres humanos. Em alguns países, grupos criminosos outrora dominantes dividiram-se em grupos menores. E as linhas entre organizações criminosas e grupos armados de orientação ideológica tornaram-se cada vez mais tênues.

Esta expansão do crime organizado ameaça a democracia latino-americana em vários níveis.

Primeiro, o fracasso dos governos democráticos em fazer progressos contra o crime reforça a crença de que a democracia não é adequada para resolver problemas. Isto é visto mais claramente na edição de 2023 da pesquisa de opinião pública Latinobarómetro, que conclui que apenas 48% dos latino-americanos preferem a democracia a outros sistemas de governo (abaixo dos 63% em 2010), e que um número crescente está aberto ao autoritarismo. A turbulência política em alguns países reduziu ainda mais o foco dos governos no crime, minando qualquer possibilidade de consenso sobre políticas anticrime e reduzindo a coordenação entre governos, criando mais oportunidades para a exploração do crime organizado.

As organizações criminosas também estão corroendo a democracia através das suas extensas ligações com as elites políticas da região. Antes de ser assassinado, Villavicencio denunciou a classe política do seu país por ter sido contaminada pelo crime organizado, num caso apresentando uma queixa contra 21 candidatos a presidente de câmara com alegadas ligações a grupos criminosos. À medida que o crime organizado se tornou mais fragmentado e se expandiu para novas atividades, procurou novas alianças políticas, o que foi facilitado pela fraqueza dos partidos políticos.

Em alguns países, o crime organizado também desafia diretamente a governança democrática, intimidando funcionários ou impedindo os governos de desempenharem funções básicas.

Na Colômbia, os grupos criminosos expandiram o seu controle territorial, ameaçando ou banindo funcionários eleitos que não cooperam, apropriando-se de fundos públicos destinados a infraestruturas e outros serviços, ou restringindo a circulação dos residentes. A Ouvidoria de Justiça da Colômbia alertou recentemente que as eleições regionais marcadas para 29 de outubro poderiam ser comprometidas pela expansão de grupos criminosos e pela sua interferência no processo eleitoral.

No México, os cartéis exibem regularmente a sua força, desafiando cada vez mais o monopólio governamental sobre a violência. O destacamento mais frequente de militares por parte do Presidente López Obrador para combater os cartéis não resultou em ganhos tangíveis para os mexicanos que estão sujeitos às depredações dos cartéis.

De acordo com um estudo da Universidade de Chicago, 13% da população da América Latina vive atualmente sob um sistema de governança criminal, no qual o crime organizado governa ou co-governa um território ou população. O exemplo mais extremo está na Venezuela, onde o regime de Nicolás Maduro preside um sistema em que grupos criminosos favorecidos colaboram com o regime para ajudá-lo a manter o controle e a explorar conjuntamente o tráfico de drogas e a mineração ilegal de ouro.

A criminalidade na região está criando um terreno fértil para regimes mais autoritários. Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele subjugou as notórias gangues de rua do país através de um programa de encarceramento em massa e mantendo um estado de emergência desde março de 2022. Ele agora tem o maior índice de aprovação de qualquer líder na região, está sendo copiado nos países vizinhos Honduras e está inspirando líderes com ideias semelhantes em toda a região. Ele também planeja concorrer à reeleição, embora a Constituição de El Salvador proíba a reeleição presidencial.

À medida que o crime organizado continua a evoluir e a expandir-se, os líderes democráticos da região devem trabalhar para demonstrar que é possível combater o crime organizado no contexto de uma democracia robusta. Isto exige que os governos mantenham um compromisso de longo prazo para construir sistemas de aplicação da lei e de justiça que possam resistir à influência corruptora dos criminosos, desenvolver abordagens localizadas que reflitam a natureza adaptável e fragmentada do crime organizado atual e cooperar entre si no combate às organizações transnacionais.

Também exige maior compromisso e urgência por parte dos Estados Unidos. A população da América Latina precisa de melhores opções do que os modelos da Venezuela e de El Salvador.

Publicado originalmente no Dallas Morning News.