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Imagem: murathakanart/Shutterstock

Ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente

Há quem defenda que a terceira guerra mundial já começou. Há quem julgue que falar em terceira guerra mundial é exagero. O fato é que se desdobram diante dos nossos olhos sonolentos e incrédulos uma série de alianças e movimentações militares muito preocupantes. A sequência de lances da última semana não pode ser menosprezada:

Em resposta ao envio de tropas norte-coreanas para lutar pela Rússia na guerra de invasão contra a Ucrânia, o presidente cessante dos Estados Unidos, Joe Biden, liberou o uso de mísseis de longo alcance contra as regiões russas de fronteira. Ato contínuo, o tirano da Rússia, Vladimir Putin, revisou a doutrina nacional de defesa a fim de alargar as condições de uso do arsenal nuclear.

Na nova doutrina, o lançamento de mísseis de longo alcance contra a Rússia passou a ser motivo para uso de armas nucleares. Mísseis esses que logo foram disparados pela Ucrânia. Sergei Lavrov, o ministro das relações exteriores da Rússia declarou então – em solo brasileiro, pois aqui estava por ocasião da cúpula do G20 – que o ato era visto “como uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia” e que a Rússia responderia de maneira “apropriada”.

É verdade que Putin já levantou o espantalho nuclear dezenas de vezes, mas até para quem está acostumado com a retórica das trocas de ameaças bélicas, o momento é preocupante.

Poder de destruição e poder político

Recordo-me de um trabalho escolar de História que precisei fazer, em 1995, a fim de marcar os cinquenta anos do lançamento da bomba atômica sobre as cidades japoneses Hiroshima e Nagazaki. Aluna aplicada que eu era, fiz boa pesquisa; o que li e as imagens que vi foram impressionantes para os meus doze anos de idade. Quase consigo reviver a sensação de choque e angústia com que colei os recortes de uma edição especial sobre o tema em uma cartolina para a apresentação escolar.

Um clarão apocalíptico e milhares de vidas aniquiladas instantaneamente. A liberação de uma enorme concentração de energia e seus efeitos devastadores. A radioatividade como terrível subproduto da já pavorosa explosão. Se há um inconsciente coletivo, essa imagem provavelmente está lá, nas profundezas do nosso psiquismo, e os acontecimentos atuais são de modo a favorecer a sua eclosão em estranhos pesadelos.

Putin está, mais uma vez, blefando? Tal questão nos desperta para a enorme responsabilidade ética que pesa sobre a política atual.

Em fragmentos de textos nos quais disserta sobre a definição de Política, a pensadora Hannah Arendt explica que a pergunta sobre se a política ainda tem algum sentido é “forçosamente formulada em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição cujo monopólio os Estados detêm.” É no mínimo instável uma situação na qual “a continuidade da existência da humanidade e talvez de toda a vida orgânica da terra” depende da política; e de políticos que costumam blefar.

Questionada, em entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel, sobre a probabilidade real de uma guerra nuclear, além de toda a retórica, Sharon K. Weiner, uma professora de Relações Internacionais da Universidade de Princeton e especialista em estratégia de armas nucleares respondeu: “O que me incomoda é que, a despeito do fato de que morreríamos numa guerra nuclear, ambos não temos voz na questão de saber se as armas nucleares serão ou não utilizadas.”

Alguns trechos dessa interessante entrevista, publicada em abril deste ano, me chamaram atenção. Segundo a professora, “não existe nenhum acordo secreto para impedir o uso de armas nucleares antes que o mundo seja destruído”. Ninguém sabe bem o que acontecerá se a Rússia realmente usar armas nucleares contra a Ucrânia porque não há diretrizes de como evitar uma escalada. A única estratégica com a qual se trabalha é a lógica de que “a outra parte poderá, em algum momento, sentir-se compelida a desescalar – simplesmente para salvar o mundo.”

A hipótese de que não haverá uma guerra nuclear sustenta-se, portanto, em uma crença na racionalidade dos políticos que têm poder de decisão sobre o uso de tais armas. Ninguém usaria armas nucleares porque o mundo poderia acabar. “Ninguém é doido de começar uma coisa dessas”, ouço por aí. Não me parece que este seja um argumento decisivo e tranquilizador. Há, pois, alguma probabilidade de que o atual conflito se desenvolva da pior forma possível.

Trump e o nó ucraniano

Os eleitores dos Estados Unidos deram uma vitória incontestável ao candidato republicano Donald Trump e ao movimento político que o cerca, conhecido pela sigla MAGA do slogan Make America Great Again usado pela primeira campanha de Trump. Em sua campanha Trump prometeu pacificar a Ucrânia no dia primeiro de sua gestão, descartando as hipérboles naturais de uma campanha eleitoral como se desenha, até o momento, a política do futuro governo para a Ucrânia.

É preciso ter em mente que a solução para a guerra na Ucrânia, ainda que negociada, não será uma reedição das conferências de Yalta e Potsdam nas quais os nascentes superpoderes decidiram os destinos de muitas nações ao findar da Segunda Guerra Mundial. E, qualquer construção negociada terá que balancear uma miríade de interesses alimentados por inúmeras correntes de opinião em cada um dos atores envolvidos. Em outras palavras, Trump e sua equipe terão que lidar com interesses internos de vários grupos nos EUA, com outros atores, incluindo aí, os aliados europeus e a China, além dos cálculos de Putin. E isso tudo sob forte escrutínio da imprensa, da opinião pública e das casas legislativas dos Estados Unidos.

Além de complexa, a situação ucraniana é dinâmica, ou seja, os interesses vão se adaptando aos movimentos dos atores e outras fontes de tensão extra-regional que influenciam e limitam a capacidade de ação dos envolvidos. A gestão Biden, por exemplo, teve dificuldade de implementar uma política de rápida ajuda militar para Ucrânia, uma vez que isso envolve o envio de equipamentos militares, em uso, ou da reserva das Forças Armadas Americanas, o que gera uma série de embaraços e reações no Congresso e na própria máquina burocrática.

A escassez de material bélico, por sua vez, propiciou a manutenção do lento e custoso, em termos de vidas humanas, avanço da Rússia e deu tempo para que o gigante eurasiático encontrasse maneiras de enfraquecer e subverter o isolamento internacional e as sanções. Construindo, por exemplo, seu acordo com a Coreia do Norte, para importação de armas e o envio de soldados.

Há relatos de múltiplas fontes sobre a concentração de forças russas na Ucrânia mostra que pode haver uma ofensiva russa de inverno, se as condições climáticas forem brandas, que deixa claro que para os russos a percepção é que um momento positivo nos esforços de guerra. No front interno a sociedade russa não dá sinais de inquietação e protestos massivos, mesmo com as elevadas perdas humanas e seu sistema econômico tem conseguido se manter funcionando. No contexto regional, a Europa não mostra sinais de compromisso em aumentar sua capacidade industrial bélica e todos esses fatores juntos apontam para uma Rússia, muito pouco disposta a negociar alguma resolução pacífica para a guerra.

O tema paz na Ucrânia tende a ocupar muito da agenda internacional do início de mandato de Trump e pode ser afetado por sua política comercial que tenciona aumentar tarifas dificultando as relações com aliados europeus e com a China, que muitos em seu movimento veem como o verdadeiro adversário estratégico dos EUA no mundo atual.

Diante desse cenário, não obstante uma eventual participação russa em fóruns, conferências e negociações bilaterais, esses esforços só obterão um acordo de paz, que preserve a independência ucraniana, se as circunstâncias pressionarem Putin a escolher a paz revertendo o cenário descrito acima, e esse é o nó que Trump precisa desatar.

Foto: Natalia KOLESNIKOVA AFP.

Imperialismo Autoritário

O imperialismo é um conjunto de ideias, medidas e mecanismos que, sob determinação de um país, procuram efetivar políticas de expansão, domínio territorial, econômico ou cultural sobre outras regiões geográficas. Apesar do conceito de imperialismo, derivado de uma prática assente na teoria econômica, ter somente surgido no início do século XX, sua prática é recorrente ao longo dos séculos por muitas nações, civilizações e mais recentemente por Estados-nação.

Existem alguns países que possuem o imperialismo como elemento norteador de suas ações, um verdadeiro traço de suas personalidades como nação. Este elemento está claramente presente no pivot da Ásia, a Rússia, que ao longo dos séculos foi palco de políticas expansionistas. É possível identificar este elemento no domínio soviético em países da Ásia Central e do Leste da Europa, tornando-se suas repúblicas. Em tempos mais recentes, este elemento está presente na tentativa de domínio econômico, político e cultural dos mesmos países, agora independentes, atingindo seu ápice com a invasão territorial da Ucrânia ordenada pelo Kremlin.

O imperialismo também sempre foi presente na Ásia, seja na Mongólia, o maior império de terras contíguas da história, mas passando também pelo Império Khmer, atualmente o Camboja, pela ascensão do poderio nipônico na expansão e domínio do Japão pelo continente e mais recentemente em escala local e global pela China, que passou a ser governada pelo Partido Comunista desde a Guerra Civil que terminou em 1949, levando o antigo líder, Chiang Kai-shek, a viver no exílio, em uma ilha conhecida como Taiwan.

Assim como a Rússia, que ainda sente o gosto amargo do fim do império soviético, quando possuía duas dezenas de repúblicas, hoje países independentes, na sua esfera de influência e domínio, a China também custa a aceitar a realidade de que ao longo de décadas Taiwan se tornou um país independente. Pequim se expandiu para o Tibete e outras regiões da península asiática, porém jamais conseguiu controlar Taiwan, um desejo antigo que mexe com as placas tectônicas da geopolítica internacional.

Isso se explica porque Taiwan se tornou um país independente de fato e de direito ao longo dos anos, adotando todos os passos necessários para firmar-se como economia relevante, parceiro comercial confiável, uma democracia plena e centro vibrante na área de inovação e tecnologia, com índices altíssimos de educação. O país que produz hoje cerca 66% da produção mundial de chips, com 56% destes semicondutores saindo da lavra da TSMC, possui em torno de si um chamado “escudo de silício” que o protege, uma vez que um abalo econômico causado por uma guerra na região seria algo devastador para a economia de todo o planeta.

O imperialismo tornou-se um risco no atual plano das relações internacionais, pois tem sido usado de forma sistemática por regimes antidemocráticos para consolidar e ampliar o poder de líderes autoritários. Os casos são vários e começam pelos aqui já citados, ou seja, pelo avanço da Rússia pela Ucrânia, das ameaças chinesas em direção a Taiwan, porém também nas ameaças da Venezuela à Guiana, do expansionismo iraniano no Oriente Médio, da instabilidade causada pela Coréia do Norte em direção ao Seoul. O gene do autoritarismo, uma prática que se tornou popular em tempos recentes, carrega consigo os riscos do imperialismo, colocando o mundo em situação cada vez mais instável e perigosa em tempos recentes.

Falsa Democracia

Os opositores de Maduro ainda se iludem com as eleições na Venezuela, com a ingênua esperança de que a vontade dos eleitores seja respeitada dentro de um processo limpo e lícito. Apenas uma mera ilusão. Todos sabem, assim como ocorreu na Rússia, que estamos diante simplesmente de mais uma fraude eleitoral. O atual presidente será reeleito, não importa a vontade do povo e o resultado das urnas será aquele decidido por Maduro no Palácio de Miraflores, sede do governo venezuelano.

É sempre importante lembrar, a Venezuela, assim como a Nicarágua de Ortega, é uma ditadura e manipula os instrumentos da democracia para fortalecer a autoridade, jamais buscando legitimidade de qualquer ordem para mais um “mandato” de Maduro. Para ele, a aprovação popular ou a legitimidade internacional de seu governo é simplesmente irrelevante. Lembremos que mesmo contestado e sem reconhecimento externo, seu governo foi “reeleito” em 2018 com ampla margem e assim ocorrerá novamente.

Estamos diante de uma fraude eleitoral que sustentará por mais algum tempo uma falsa democracia responsável por perseguir, encarcerar, torturar aqueles que ousam divergir. Para além disso, estamos lidando com um narco-estado, permeado pelo crime, tráfico e presença de máfias infiltradas nos órgãos governamentais. Um governo criminoso que absorveu em suas instâncias setores organizados de interesses ilícitos transnacionais.

A Venezuela, portanto, se situa entre as antidemocracias do mundo, um regime fechado, brutal, totalitário e ditatorial, alinhado com autocracias e regimes autoritários mundo afora. O eixo político é conhecido e permeia os países que lideram o BRICS, especialmente Irã, China e Rússia, que perseguem opositores, minorias, mas que em lugares como o Brasil possuem tratamento especial diante da subserviência comercial que aos poucos vem se tornando submissão política.

Aliás, é lamentável que o Brasil, uma democracia imperfeita, porém razoavelmente livre, se alinhe a países autoritários, que praticam flagrantes violações humanitárias. Tolerar tais violações em troca de yuans e investimentos em nossa economia é compactuar com perseguições políticas e limpezas éticas, como acontecem com os iugures, o silêncio e a submissão das mulheres a um sistema político onde não possuem vez e voz e a tortura como instrumento sistemático de manutenção do regime. Compactuar com o crime nos faz cúmplices deste sistema bárbaro e antidemocrático.

Repiso sempre que nosso país deve procurar ambientes mais arejados e livres. Como principal país da América do Sul, não podemos silenciar diante dos abusos cometidos pelo regime de Maduro, tampouco nos associarmos com países que apoiem tais crimes. A posição do Brasil deve ser a defesa da liberdade, democracia e respeito intransigente dos valores humanitários e nossas alianças econômicas devem respeitar também este arcabouço de valores sob pena de estarmos financiando violações injustificáveis.

É preciso sempre repetir: As eleições na Venezuela serão mais uma farsa com o objetivo de concentração de poder em seu ditador, assim como ocorreu na Rússia, com apoio dos parceiros de repressão China e Irã. Maduro é mais uma peça deste intrincado jogo de poder internacional que visa o realinhamento do mundo na direção de regimes autocráticos. Uma triste realidade com a qual o Brasil jamais poderia compactuar.

Más Companhias

Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Clube Autocrático

O ano inicia com um novo formato do BRICS. Entram no clube fundado por China, Brasil, África do Sul, Rússia e Índia, os seguintes novos sócios: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O bloco passa a ser formado por dez países depois desta que é considerada a mais importante ampliação do grupo que opta por uma guinada autocrática, tornando-se definitivamente um fórum hostil ao movimento democrático.

O novo BRICS ou BRICS 10, como tem sido chamado em alguns fóruns internacionais, é composto em sua vasta maioria, ou seja, 80%, por países que não possuem qualquer traço democrático em suas estruturas, sendo considerados ditaduras ou autocracias.  As exceções são Brasil e África do Sul. Nenhum membro, entretanto, pode ser classificado como uma democracia liberal plena.

A avaliação é a mesma daquela realizada pelos principais órgãos que medem os níveis de democracia em escala global, como a Freedom House sediada nos Estados Unidos, Universidade de Gotemburgo na Suécia e Economist Intelligence Unit com base no Reino Unido. O cálculo geral mostra que hoje existe uma ampla maioria de ditaduras e autocracias no mundo e o número de democracias vem regredindo constantemente.

O movimento de expansão do BRICS, portanto, é a expressão clara deste movimento pelo qual passa o mundo em tempos recentes, porém, as consequências deste caminho ainda não foram medidas. Entretanto, causa ansiedade notar que nações classificadas como democracias eleitorais ou imperfeitas como o Brasil se deixem seduzir pela aliança com países que violam garantias e liberdades conquistadas ao longo da História. Nosso país deveria rumar em sentido oposto, consolidando alianças com democracias.

Dentro do BRICS 10, o Brasil agora estará ao lado de autocracias eleitorais, ou seja, aquelas que realizam eleições simplesmente protocolares como Rússia, Egito, Índia e Etiópia, onde sabemos antecipadamente os vencedores. Além destas, agora somos sócios de autocracias fechadas, países já sem qualquer pudor em aplicar uma política despótica, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Irã e China, considerados também regimes autoritários consolidados.

Em Buenos Aires houve uma correção de rumo. O novo governo fez a opção por declinar do convite do BRICS, uma vez que não acredita nos propósitos de um grupo que possui a autocracia como fator balizador e a liderança da China como farol. Os argentinos foram além e falam em diminuir a dependência do investimento chinês que tem tornado aos poucos muitos países reféns dos desejos de Pequim.

Este é o principal ponto deste clube autocrático. O BRICS está longe de ser uma iniciativa que eleva países periféricos a serem partícipes do concerto internacional. O grupo se tornou a principal base de lançamento de iniciativas, financiamento e apoio mútuo de uma política baseada em interesses que estão em confronto direto com os valores ocidentais de liberdade e democracia. Um clube que mina os esforços em prol da democracia, liberdade e soberania daqueles que rejeitam sua cartilha. Uma forma de imperialismo e dominação que de forma silenciosa vem impondo sua agenda e seus interesses em escala global.  

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal

A China vai a Wall Street e ameaça a segurança dos Estados Unidos

Recentemente, a Shein, gigante chinesa do e-commerce de roupas, anunciou a sua primeira IPO (oferta pública de ações) na NYSE, bolsa de valores de Nova York, tendo como principais subscritores colossos financeiros como o J. P. Morgan/Chase, a Goldman Sachs e o Morgan Stanley. Várias agências governamentais dos Estados Unidos documentam numerosos casos envolvendo a Shein em casos que vão da violação de direitos de propriedade intelectual e práticas trabalhistas ‘tóxicas’ até sonegação fiscal e sistemáticas operacionais danosas ao meio ambiente. O episódio transborda das páginas do noticiário econômico para sinalizar mais um conflito entre os interesses da alta finança e a segurança nacional da América.

A preocupação com a ofensiva do Partido Comunista da China contra a ordem internacional liberal (livre-comércio, liberdade de navegação, direitos civis e liberdades democráticas etc) garantida pelo poderio norte-americano desde o fim da Segunda Guerra pode ser considerada o derradeiro e único bastião do consenso bipartidário sobre política externa em Washington, D. C.

Durante a administração Republicana de Donald Trump, a Casa Branca publicou um documento de Estratégia de Defesa Nacional (2018) rotulando a China como principal rival da América entre as grandes potências mundiais. Dois anos depois, ainda naquele governo, uma “ordem executiva” (decreto presidencial) proibiu investimentos de companhias dos Estados Unidos em empresas ligadas ao complexo industrial-militar chinês.

Mais recentemente (agosto do corrente ano), a administração Democrata de Joe Biden baixou outro decreto com maiores restrições a esses investimentos,  na China e em outros países adversários (countries of concern).

Na contramão dessas regras, conforme observam os pesquisadores da Foundation for the Defense of Democracies Emily de LaBruyère e Nathan Picarsic em artigo de opinião para o prestigioso portal político The Hill (9 de dezembro último), outras grandes empresas, como o conglomerado Hesai Group, fabricante de sensores – laser de uso dual (militar e civil), acaba de protagonizar o maior lançamento de ações de uma firma chinesa NYSE desde 2021.

Depois de um breve período de incertezas ante as manobras do PC e do governo da República Popular da China destinadas a restringir a influência política dos seus ‘campeões nacionais’, sua presença em bolsa agora cresce como nunca. Em junho deste ano, 65 companhias chinesas aguardavam na fila para ser listadas na NYSE, número que pulou para 116 em outubro.

Por lei, as empresas da China são obrigadas, sempre que requisitadas pelo Estado-partido único, a submeter quaisquer dados e informações relativos aos seus clientes, parceiros e investidores estrangeiros. A holding Lidar, que controla o já referido grupo Hesai, desenvolve e produz tanques, drones e toda uma ampla variedade de sistemas de armamentos. Outras firmas, como a própria Shein, há muito tempo são denunciadas por explorar a mão de obra de prisioneiros da etnia islâmica uigur em Xinjiang, violando compromissos internacionalmente assumidos pelos Estados Unidos em prol dos diretos humanos e práticas trabalhistas justas.

Ora, não é preciso ser um grande historiador ou exímio analista político para saber que os ditadores comunistas, na China e alhures — ontem, hoje e sempre —, não permitem jamais que a iniciativa privada possa ameaçar o monopólio de poder político do partido único. Essa interferência desabrida perturba o funcionamento dos mercados e acarreta  prejuízos às vezes bilionários aos investidores. Foi esse o caso do Didi (concorrente chinês do Uber e outros aplicativos de transporte individual), quando, em meados do ano passado, foi obrigado pelo governo de Pequim  a cancelar seu registro na NYSE e transferir suas ações para a bolsa de Hong Kong. O que estava em jogo era a ampliação do controle estatal sobre os dados pessoais dos passageiros….

LaBruyère e Picarsic concluem  seu artigo frisando  o aquilo que não é segredo para ninguém: as medidas de segurança do governo dos Estados Unidos  em relação ao rival chinês simplesmente não vão funcionar — e este continuará financiando a modernização dos seus arsenais com os dólares dos investidores americanos — enquanto os interesses de Wall Street (habituais e generosos financiadores de campanhas eleitorais dos dois partidos) falarem mais alto que o imperativo da defesa….

Agora imaginem o prezado leitor e a estimada leitora quão mais perigosa é a situação de países como o Brasil e os nossos vizinhos latino-americanos, com suas óbvias fragilidades institucionais e deficiente formação de capital ante a crescente investida econômica e política da China neste continente!

O dilema de uma só China

Semicondutores controlam o mundo moderno, os chips de computador que permitem processamento de grandes quantidades de dados, comunicações instantâneas globalmente e funcionamento de nossos computadores e celulares são feitos usando semicondutores. A importância econômica e estratégica dessa tecnologia é autoevidente. Quase nada hoje funciona sem um chip de computador.

Estimativas do mercado colocam que em torno de 56% de toda a produção mundial de semicondutores está concentrada nas fundições da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, mais conhecida pela sigla TSMC. Não é exagero dizer que a qualquer instabilidade na ilha de Taiwan prejudica em grande proporção a economia mundial, ainda mais se levarmos em conta que as placas gráficas de alto poder computacional tão necessárias para pesquisa e desenvolvimento no campo da Inteligência Artificial, dependem das fábricas da TSMC para serem produzidos.

O governo chinês continental tem uma visão imutável de que todos os lados do estreito de Taiwan fazem parte de uma só China, logo a ilha seria uma província rebelde, que Pequim estaria disposta a permitir um regime especial, similar ao de Hong Kong (que nos últimos anos tem visto a sua lista de liberdades democráticas serem erodidas).

Taiwan também comunga da visão de que há uma só China, a ilha nunca declarou sua independência e essa questão é ponto de debate interno, embora o campo pró-independência seja minoritário. Em Taiwan se diz que há uma só China com várias interpretações.  Esse status ambíguo de Taiwan resulta em certo isolamento da ilha em termos internacionais, não sendo aceita como membro da Organização das Nações Unidas e seu sistema de agências, por pressão direta da China, que entende como inadmissível manter relações diplomáticas com Pequim e Taipei simultaneamente.

Os Estados Unidos mantêm o que chamam de política de ambiguidade com Taiwan, ou seja, a um só tempo não possuem laços diplomáticos oficiais, mas vendem armas e fazem exercícios militares regulares, além de administrarem uma embaixada de facto em Taipei e diversos outros laços culturais e econômicos. Asseguram a defesa da ilha em caso de invasão ao mesmo tempo sem um arranjo institucional adensado para tanto.

Nos últimos anos o governo de Pequim tem aumentado a presença militar no estreito de Taiwan. Muitos especialistas em segurança internacional apontam que o esforço de modernização do Exército Chinês é motivado pela necessidade operacional advinda dos planos para a tomada do que eles enxergam ser uma província rebelde. A ameaça que paira sobre Taiwan por conta da política de reintegração da ilha ao território chinês por qualquer método possível, não é como diz a expressão popular “da boca pra fora”. É uma possibilidade relevante, que muitos analisam ser uma questão de quando e não de se irá ocorrer.

As Forças Armadas chinesas demonstram seu poderio conduzido vôos de reconhecimento, bombardeios simulados, além de movimentarem porta-aviões e outros meios navais com constância pela região. Os gastos militares de Taiwan embora em tendência de aumento de seu volume comparado ao PIB taiwanês, ainda estão muito abaixo das capacidades do gigante comunista.

Pequim também se vale de outros recursos, como campanhas de desinformação para tentar a um só tempo influenciar os resultados de eleições em Taiwan e enfraquecer a democracia local contribuindo para a erosão da confiança nas instituições e atores políticos.

Taiwan é uma democracia jovem a ilha pela maior parte de sua história de 1949 a 1987 viveu sobre o regime Lei Marcial que se seguiu a vitória comunista nos estertores da Segunda Guerra Mundial, tendo realizado em 1992 sua primeira eleição presidencial. Ainda assim, as instituições e a própria democracia da ilha têm se mostrado resilientes diante dos ataques chineses, mas quanto tempo poderão resistir, ainda mais se levarmos em conta que Pequim está observando e aprendendo com erros e acertos russos na Ucrânia?

Muito do nosso mundo moderno e do crescimento e desenvolvimento econômico mundial dependem das fundições da TSMC e não é factível no curto e médio prazo mitigar os riscos criando novos fabricantes de semicondutores, a literatura econômica nos mostra que muito do poder fabril se constrói a partir de pesquisa e desenvolvimento, pessoal altamente capacitado e inovador e conhecimentos tácitos internos as firmas. , o que aumenta ainda mais os riscos envolvidos nessa região. Como os governos do mundo vão reagir aos riscos intrínsecos desse dilema chinês?

Verdades relativas sobre o conflito Israel x Hamas

Examinemos quatro verdades relativas, tidas e divulgadas falsamente como absolutas, sobre o conflito Israel x Hamas.

1 – A solução para a crise são dois Estados: um de Israel e outro Palestino. Não necessariamente. Só se forem dois Estados democráticos de direito. Mais uma tirania no Oriente Médio (onde já existem dezesseis ditaduras) não resolverá o problema.

2 – A solução para a crise humanitária é um cessar-fogo imediato. Não necessariamente. Se Israel paralisar sua resposta aos ataques terroristas (que continuam) o Hamas ganhará uma trégua para se reorganizar e continuar aterrorizando a população civil israelense (e gerando mais crise humanitária).

3 – Todos os bombardeios de prédios civis com mortes de civis em Gaza violam as leis da guerra. Não necessariamente. Os combatentes do Hamas são civis, não usam uniformes, não ocupam instalações militares e não podem ser distinguidos de civis não combatentes se estiverem no mesmo território.

4 – É necessário fazer uma reforma no Conselho de Segurança, acabando com o poder de veto de algumas potências, para que o ONU recupere seu papel pacificador e tenha capacidade de evitar guerras sangrentas, massacres terroristas e genocídios. Não necessariamente. Como as democracias liberais ou plenas são minoritárias no conjunto de 193 países, as autocracias arriscam ganhar todas as votações em desfavor das democracias.

Passemos agora aos comentários gerais que afetam, direta ou indiretamente, os três primeiros pontos.

Israel tem o direito de autodefesa e o dever de proteger sua população dos ataques terroristas do Hamas. Mas se um cessar-fogo é inaceitável, parece óbvio que, agora, Israel não poderá destruir completamente o Hamas. Não tem condições políticas, nem militares, para fazer isso no curto prazo. Logo, o objetivo da incursão em Gaza deve ser mais realista; por exemplo, o resgate dos reféns feitos pelo Hamas e a destruição de parte do seu arsenal operacional armazenado numa rede imensa de túneis, que ainda ameaça Israel, não a exterminação completa da organização.

O Hamas não pode ser completamente destruído de imediato, em primeiro lugar porque sua ideologia – a do jihadismo ofensivo islâmico que toma como objetivo religioso uma “solução final”: a aniquilação de Israel – não vai desaparecer (e parte significativa da população de Gaza está impregnada dessa ideologia necrófila). Além disso, porque há de fato uma organização (o Hamas) e seus chefes não estão em Gaza e sim protegidos no Catar, no Líbano, na Síria, na Turquia, talvez no Iraque e provavelmente no Irã.

E enquanto isso Israel vai perdendo a guerra da propaganda, uma vez que, ocupando o mesmo território, não há como distinguir os combatentes do Hamas, que são para todos os efeitos civis, dos civis palestinos não combatentes. Todo o ataque de Israel será divulgado como ataque contra civis: não há instalações militares identificáveis em Gaza, os jihadistas não usam uniformes, seus bunkers são prédios civis, em geral escondidos em hospitais, escolas, mesquitas e, inclusive, sedes de organizações humanitárias internacionais.

Mesmo com todo apoio das grandes nações democráticas, Israel não pode aguentar semanas ou meses desse tipo de exposição midiática, que apresenta Israel ao mundo como genocida. O show da vítima, repetido diariamente, com a contabilidade macabra das crianças mortas, das gestantes e dos doentes, dos idosos e das pessoas com necessidades especiais cruelmente assassinados, será devastador.

Os chefes militares israelenses e a extrema-direita nacionalista no governo Bibi podem não gostar disso, mas deverão ser obrigados a engolir a realidade. Claro que, passada a fase mais crítica do conflito, o atual governo de Israel deve ser deposto pelas forças democráticas da própria sociedade israelense, sua política de ocupação da Cisjordânia deve ser radicalmente modificada e deve ser anunciado um plano, ainda que de longo prazo, para a criação do embrião de um Estado democrático de direito na Palestina.

Será muito difícil derrotar o Hamas militarmente se essa organização terrorista não for derrotada politicamente.

Ocorre que o Hamas, além de ter sua direção estratégica mais alta fora de Gaza, como já foi dito, não apenas se esconde na população palestina (usando-a como escudo). Depois de quase duas décadas, o Hamas está relativamente enraizado na sociedade palestina. Sob esse aspecto a comparação do Hamas com o Estado Islâmico é imperfeita.

Seus militantes mais jovens já nasceram sob a ditadura do Hamas. Uma família palestina normal pode não ter nada a ver com o Hamas, mas algum ou alguns dos seus filhos, pode, sim.

São jovens normais, gostam de futebol, têm seus herois imaginários, seus artistas admirados, suas músicas preferidas. Só que neles foi inoculada pelos sacerdotes sunitas do jihadismo ofensivo islâmico uma semente de ódio difícil de ser removida. A explicação padrão que seus professores inocularam para que eles repetissem para si mesmos é que tudo que detestam nas suas vidas, todos os seus carecimentos, sua impossibilidade de viajar e conhecer outros lugares e se relacionar com outras pessoas, de serem quem sonham, enfim, tem uma causa e um conjunto de culpados. A causa é a ocupação de sua terra por Israel e os culpados são os judeus.

Além disso, na medida em que se comprometem com a hierarquia do Hamas, esses jovens passam a ter privilégios, algum dinheiro, passe livre em instituições (inclusive de ensino médio e superior), sobras da ajuda humanitária estrangeira que foi desviada pelos terroristas. Mal-comparando, é como ser recrutado pelo narcotráfico: você vai poder usar aquele tênis bacana, você vai poder desfilar de moto, você vai ganhar por mês o que seus pais não conseguem ganhar em um ano. E vai ser respeitado; ou, pelo menos, temido.

Para quebrar isso sem matar ou prender milhares de pessoas e sem destroçar as famílias só com uma experiência relativamente longa de viver sob outro regime de mais liberdade e igualdade de oportunidades. Para tanto, o Hamas tem que ser derrotado politicamente, sua ditadura tem que ser deposta pela própria população (ainda que sob arbitragem e proteção internacional, inclusive de outros países da região) e um novo governo deve assumir o seu lugar.

Sem isso não há solução, pelo menos uma solução humanamente aceitável – já que o extermínio da sua população, a sua evacuação (para onde?), a sua conversão forçada à democracia (em campos de reeducação) não são saídas admissíveis pelo mundo democrático. Erigir um novo Estado palestino que não seja um Estado democrático de direito – mais uma tirania entre as dezesseis que já povoam o Oriente Médio – não vai resolver o problema. Um proto-Estado autocrático assim já existe em Gaza, onde há governo e esse governo está nas mãos dos terroristas do Hamas.

Nada disso significa, porém, que Israel não deva reagir ao bárbaro ataque terrorista que sofreu no dia 08/10, deixando sua população vulnerável a novas investidas mortíferas do Hamas. Isso seria inexplicável e desumano. Israel tem que eliminar a hierarquia militar jihadista que se esconde em Gaza. Tem que destruir as armas do Hamas (sobretudo seus mísseis e fábricas de mísseis – estejam onde estiverem) e tem que destruir também a imensa infra-estrutura subterrânea que foi construída nos últimos anos (quase um Metrô de Londres): os túneis devem ser lacrados. Como vai fazer isso sem entrar no território de Gaza, gerando vítimas civis, é o problema (e os militantes do Hamas são civis). Mas mesmo que Israel encontrasse uma solução militar para esse problema que não fosse desumana, nada disso bastaria se não encontrasse também uma solução política.

Passemos agora aos comentários sobre o quarto ponto: a ONU.

Como as democracias liberais e plenas são minoria no mundo (no máximo 35 em 193 países), o eixo autocrático (ao qual o governo Lula se alinhou) vai querer propor uma reforma majoritarista na ONU, abolindo o poder de veto no Conselho de Segurança. Se alguma democracia liberal ou plena não tiver poder de veto, as quase 90 autocracias e seus aliados (uma parte do conjunto dos cerca de 60 regimes eleitorais, aquela parte parasitada por populismos, como o Brasil) arriscam ganhar todas as votações por maioria. Por exemplo, poderiam aprovar uma condenação de Israel por genocídio. Ou poderiam decidir que a Ucrânia deveria cessar-fogo em vez de resistir à invasão da Rússia. Obviamente, isso não poderá ser aceito pelo mundo democrático. Se acontecer, será o fim da ONU.

Usar a ONU para validar propaganda é um truque antigo. O sistema das Nações Unidos abriga dezenas de comissões, comitês, agências, programas, fundos, fóruns, institutos de estudo e pesquisa e até uma universidade que não falam pela ONU. Só falam pela ONU a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança (o único com poder decisório) e o Secretariado (que é órgão administrativo, dirigido pelo Secretário-Geral). Além desses, as instâncias orgânicas da ONU são a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social e o Conselho de Tutela.

Em abril do ano passado Lula chegou a dizer que foi absolvido pelo “tribunal da ONU”. Não há tribunal da ONU. Foi um parecer do Comitê de Direitos Humanos segundo o qual a investigação e o julgamento de Lula não foram imparciais.

Lula agora declara que Israel matou milhares (arriscou até prever milhões) de crianças em Gaza sem dizer a fonte. Os petistas dizem que foi a ONU. É falso. Provavelmente a informação veio do “Ministério da Saúde” de Gaza, que é um departamento da organização terrorista Hamas. O mesmo lugar de onde saiu a informação fraudulenta – já desmentida – de que Israel havia bombardeado o hospital Ahli Arab deixando cerca de 500 mortos.

Independentemente do viés parcial de muitos analistas há um problema de analfabetismo democrático. Aí a pessoa vai na TV e reclama que tem que reformar o Conselho de Segurança da ONU abolindo o poder de veto de alguns países. Fazer o quê? A pessoa não sabe que as democracias são minoritárias no mundo, que se as decisões forem por voto de maioria as autocracias ganharão todas as disputas.

A pessoa não sabe que na composição atual do Conselho de Segurança existem 6 ditaduras (autocracias eleitorais e fechadas) e apenas 5 democracias liberais (ou plenas).

A pessoa não sabe que se as três democracias liberais que são membros permanentes do Conselho não tivessem poder de veto, as democracias ficariam vulneráveis ao avanço das ditaduras. Por exemplo, a pessoa não sabe que dos 47 países que formam o Conselho de Direitos Humanos da ONU, 70% não são democracias – incluindo autocracias como China, Cuba, Eritreia, Paquistão, Somália, Sudão, Argélia e Emirados Árabes Unidos.

E a pessoa não sabe nada disso não é por maldade. É por ignorância mesmo. Não sabe diferenciar (seguindo a classificação do V-Dem) uma democracia liberal de uma democracia apenas eleitoral, de uma autocracia eleitoral e de uma autocracia fechada. Ou, em outros termos (da The Economist Intelligence Unit), não sabe a diferença entre uma full democracy, uma flawed democracy, um hybrid regime e um authoritarian regime. Ou, ainda (da Freedom House), um regime freepartly free ou not free. Um meio de comunicação profissional deveria fornecer programas de educação política para seus colaboradores.

Polarização doméstica e insegurança global

Concordo com  Ian Bremmer, fundador e CEO do Eurasia Group, famosa consultoria em análise de risco político, e Robert Gates, secretário da Defesa nas administrações dos ex-presidentes George W. Bush (Republicano) e Barack H. Obama (Democrata), quando criticam a atual disfuncionalidade do sistema político norte-americano e se preocupam com às consequências perigosas do presente grau inédito de polarização doméstica para a segurança dos Estados Unidos e seus aliados.

Recente pesquisa nacional do Centro de Política da Universidade da Virgínia, liderado pelo professor Larry Sabato, contribui para agravar esses temores. Realizado entre 25 de agosto e 11 de setembro últimos, entrevistando amostra nacional de eleitores registrados como Democratas, Republicanos ou Independentes desde 2008, o survey apontou tendências perturbadoras na opinião pública americana. Se a eleição de novembro de 2024 fosse antecipada para hoje, 52% dos respondentes escolheriam reeleger Joe Biden; e 48% iriam de Donald Trump.

Quanto às preferências partidárias, 44% dos entrevistados se definem como Democratas; 38% como Republicanos; e 18% como Independentes. Dos autodeclarados Democratas, 88% expressam intenção de reeleger Biden; 90% dos autodeclarados Republicanos querem a volta de Trump à Casa Branca; enquanto os autodeclarados Independentes dividem-se quase igualmente entre o segundo (51%) e o primeiro (49%).

Questões econômicas: dos 34% dos entrevistados que se autorrotulam como Progressistas (esquerda), 80% pretendem votar em Biden; entre  os 42% dos autodefinidos  Conservadores, 76% cravarão Trump;  e dos 25% que se dizem Moderados, 60% ficam com Biden e 40% com Trump.

Questões sociais:  78% dos respondentes que se declaram Conservadores preferem Trump nesse quesito; e 82% dos que se declaram Progressistas preferem Biden. Entre os que se definem como Moderados no campo social, 54% preferem Biden e 45% preferem Trump.

Agora vêm os resultados mais ‘preocupantes’ da pesquisa para o futuro da democracia na América. Para 41% dos eleitores de Trump e 30% dos eleitores de Biden consideram que a discórdia no país é tão aguda que apoiariam a separação (secessão) entre estados “vermelhos” (maioria Republicana) e “azuis” (maioria Democrata).

Dos eleitores de Trump, 31%  já não creem que a democracia seja um sistema viável e aceitam experimentar formas de governo alternativas. A opinião é compartilhada, ‘pelo avesso’, por 24% dos eleitores de Biden.

Amplos 70% dos que pretendem reeleger o presidente Democrata no ano que vem receiam que uma vitória Republicana resulte em dano duradouro para a república; 68% dos eleitores de Trump alimentam os mesmos na hipótese de uma vitória Democrata.

Fatia robusta do eleitorado de Biden (41%) julga que quem apoia o Partido Republicano e sua ideologia tenha se tornado tão extremista a ponto de que isso justificaria o uso da violência para impedir o G.O.P. de alcançar seus objetivos; 38% dos eleitores de Trump pensam o mesmo a respeito dos Democratas.

Os Estados Unidos estão vivendo sob o signo do identitarismo partidário: 40% dos eleitores de Biden admitem que os valores e crenças políticos formam parte significativa de sua identidade e considera que votar “no outro partido” é ser desleal. E 39% dos eleitores de Trump nutrem as mesmas atitudes em relação aos Democratas.

De acordo com 31% dos eleitores de Trump, os fins justificam os meios e qualquer ação do Partido Democrata será aceitável desde que sirva para atingir os objetivos partidários — atitude compartilhada por 21% do eleitorado trumpista.

Parruda parcela dos eleitores de Biden concorda com o emprego de meios não democráticos para a consecução das seguintes metas ‘progressistas’: restrição/proibição de armas de fogo (74%); programas obrigatórios pró-diversidade em todas as empresas (69%); redistribuição da riqueza para combater as desigualdades de renda (56%); regulação/restrição de manifestação de pontos de vista considerados discriminatórios ou ofensivos (47%); limitação de certos direitos, como liberdade de expressão para proteger os sentimentos e a segurança de grupos marginalizados (31%).

Muitos eleitores de Trump também topam contornar normas democráticas a fim de prestigiar objetivos conservadores: introdução de leis exigindo respeito aos símbolos e líderes nacionais (50%); repressão a protestos e demonstrações que o governo considere ameaçadores da ordem pública (45); autoridade do presidente para desconsiderar decisões do Congresso na área de segurança nacional (37%); restrições à expressão de opiniões consideradas antipatrióticas (37%).

Os temas ‘quentes’ da imigração e da educação evidenciam ainda mais esse abismo político-ideológico: 78% dos entrevistados pró-Biden consideram necessário reformar as leis de imigração a fim de atender às necessidades dos imigrantes ilegais e contribuir para enriquecer a diversidade social da América (contra 58% dos respondentes pró-Trump), enquanto 70% dos eleitores de Trump — e 32% dos de Biden — apoiam a adoção de leis que limitem o acesso dos imigrantes ilegais ao perca-os de trabalho e aos benefícios sociais da educação, da saúde e da seguridade. De outra parte, dos entrevistados pró-Biden sugerem que o currículo escolar enfatize injustiças sistêmicas e outros aspectos negativos da história dos Estados Unidos (contra 55% dos respondentes pró-Trump). Ao mesmo tempo, esse eleitorado trumpista acredita que as escolas públicas devem ser obrigadas a ministrar educação cívica e enfatizar o patriotismo, sem conferir destaque a aspectos negativos da história nacional  (contra 28% do eleitorado de Biden).

Por último, mas não em último, o relatório da pesquisa revela que os eleitores continuam profundamente divididos em suas opiniões quanto ao resultado da disputa presidencial de 2020: 56% dos eleitores de Trump, mas 23% dos de Biden, creem que foi o Republicano que venceu aquele pleito e que a presidência lhe foi roubada por meio de fraude e manipulação do sistema eleitoral. Já 88% dos eleitores de Biden creem que aquela eleição presidencialí foi segura, livre de fraudes e que o candidato Democrata colheu uma vitória inequívoca, em contraste com os parcos 4% dos eleitores de Trump que compartilham essa confiança.