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Imagem: Jim Watson / AFP - Getty Images.

Negócio da China

A eleição de Donald Trump levou o governo de Pequim a adotar um amplo pacote de estímulo econômico de US$ 1,4 trilhão com o objetivo de combater possíveis consequências na relação futura com os americanos. As ameaças de Trump de tarifas de até 60% sobre produtos chineses ocorrem em um momento delicado para o país oriental, que já está lidando com uma grave crise imobiliária, gastos fracos do consumidor e uma crescente dependência de exportações.

Nem tudo são flores em Pequim. Em resposta à ameaça iminente de tarifas elevadas, os formuladores de políticas chineses estabeleceram um pacote de resgate substancial. O Congresso Nacional do Povo aprovou o plano como uma contramedida para estabilizar a economia, com foco no refinanciamento da dívida e no reforço de projetos de infraestrutura para mitigar o impacto das políticas comerciais de Trump.

Apesar do estímulo, o plano alcança apenas uma fração da dívida oculta chinesa, estimada pelo Fundo Monetário Internacional em mais de US$ 8 trilhões. O retorno de Trump já impactou os mercados financeiros: as ações chinesas caíram, enquanto as ações dos EUA subiram, refletindo preocupações dos investidores sobre a escalada das tensões comerciais. A ação de Pequim com vistas a implementar o estímulo expõe sua preparação para uma rivalidade econômica prolongada.

Enquanto o presidente eleito Donald Trump se prepara para reimpor tarifas sobre a China, o líder chinês Xi Jinping busca fortalecer laços com países do porte do Brasil. A ideia de Pequim é fomentar um relacionamento construído em interesses econômicos compartilhados. Logo após a cúpula do G20 foram anunciados 37 acordos abrangendo agricultura, comércio, tecnologia e energia, que desenham um volumoso modelo de interdependência econômica.

O Brasil é o maior fornecedor de soja, minério de ferro e carne bovina da China, enquanto a China fornece ao Brasil semicondutores, fertilizantes e peças automotivas. Ficou claro que, mediante estes laços, a China busca mitigar os efeitos das tarifas dos EUA, usando o Brasil como instrumento de sua disputa comercial com os americanos.

De qualquer forma, apesar das relações profundas que desenha com Pequim, o Brasil ainda se mostra cauteloso sobre o alinhamento total com a China. Embora Xi tenha como objetivo que o Brasil se junte integralmente à Nova Rota da Seda, Lula esclareceu que seu governo não planeja integração total, mas “estabelecer sinergias entre a Iniciativa da Rota da Seda e as estratégias de desenvolvimento do Brasil”. Este movimento evidencia a estratégia global da China de aprofundar parcerias e redes comerciais para aliviar as suas próprias pressões econômicas internas.

É neste ponto que o Brasil precisa ser cauteloso, evitando a sinodependência comercial, a reedição de um novo pacto colonial e especialmente servir de contrapeso na economia chinesa em sua disputa com os americanos. Como mostram os números, a China carrega dívidas e uma situação que inspira cuidado. Atrelar nosso destino aos rumos traçados por Pequim pode se tornar um caminho perigoso, afinal, negócios da China muitas vezes escondem armadilhas difíceis de identificar.

Trump e o nó ucraniano

Os eleitores dos Estados Unidos deram uma vitória incontestável ao candidato republicano Donald Trump e ao movimento político que o cerca, conhecido pela sigla MAGA do slogan Make America Great Again usado pela primeira campanha de Trump. Em sua campanha Trump prometeu pacificar a Ucrânia no dia primeiro de sua gestão, descartando as hipérboles naturais de uma campanha eleitoral como se desenha, até o momento, a política do futuro governo para a Ucrânia.

É preciso ter em mente que a solução para a guerra na Ucrânia, ainda que negociada, não será uma reedição das conferências de Yalta e Potsdam nas quais os nascentes superpoderes decidiram os destinos de muitas nações ao findar da Segunda Guerra Mundial. E, qualquer construção negociada terá que balancear uma miríade de interesses alimentados por inúmeras correntes de opinião em cada um dos atores envolvidos. Em outras palavras, Trump e sua equipe terão que lidar com interesses internos de vários grupos nos EUA, com outros atores, incluindo aí, os aliados europeus e a China, além dos cálculos de Putin. E isso tudo sob forte escrutínio da imprensa, da opinião pública e das casas legislativas dos Estados Unidos.

Além de complexa, a situação ucraniana é dinâmica, ou seja, os interesses vão se adaptando aos movimentos dos atores e outras fontes de tensão extra-regional que influenciam e limitam a capacidade de ação dos envolvidos. A gestão Biden, por exemplo, teve dificuldade de implementar uma política de rápida ajuda militar para Ucrânia, uma vez que isso envolve o envio de equipamentos militares, em uso, ou da reserva das Forças Armadas Americanas, o que gera uma série de embaraços e reações no Congresso e na própria máquina burocrática.

A escassez de material bélico, por sua vez, propiciou a manutenção do lento e custoso, em termos de vidas humanas, avanço da Rússia e deu tempo para que o gigante eurasiático encontrasse maneiras de enfraquecer e subverter o isolamento internacional e as sanções. Construindo, por exemplo, seu acordo com a Coreia do Norte, para importação de armas e o envio de soldados.

Há relatos de múltiplas fontes sobre a concentração de forças russas na Ucrânia mostra que pode haver uma ofensiva russa de inverno, se as condições climáticas forem brandas, que deixa claro que para os russos a percepção é que um momento positivo nos esforços de guerra. No front interno a sociedade russa não dá sinais de inquietação e protestos massivos, mesmo com as elevadas perdas humanas e seu sistema econômico tem conseguido se manter funcionando. No contexto regional, a Europa não mostra sinais de compromisso em aumentar sua capacidade industrial bélica e todos esses fatores juntos apontam para uma Rússia, muito pouco disposta a negociar alguma resolução pacífica para a guerra.

O tema paz na Ucrânia tende a ocupar muito da agenda internacional do início de mandato de Trump e pode ser afetado por sua política comercial que tenciona aumentar tarifas dificultando as relações com aliados europeus e com a China, que muitos em seu movimento veem como o verdadeiro adversário estratégico dos EUA no mundo atual.

Diante desse cenário, não obstante uma eventual participação russa em fóruns, conferências e negociações bilaterais, esses esforços só obterão um acordo de paz, que preserve a independência ucraniana, se as circunstâncias pressionarem Putin a escolher a paz revertendo o cenário descrito acima, e esse é o nó que Trump precisa desatar.

Grand Chelem

No automobilismo, alcançar um hat trick é uma tarefa árdua, tanto quanto rara: significa conquistar a pole position, fazer a volta mais rápida e vencer a prova. Porém, ao transferir este roteiro para a política, a vitória de Donald Trump na corrida presidencial se encaixa perfeitamente em algo que transcende este feito, definido como Grand Chelem, ou seja, a corrida perfeita: quando um piloto faz a pole-position, marca a melhor volta e vence a prova liderando de ponta a ponta. Foi exatamente aquilo alcançado por Trump neste ciclo eleitoral. Explico.

O candidato republicano foi muito além daquilo que era projetado pelas pesquisas. Sedimentou seu controle sobre o partido, moldando-o a sua imagem e semelhança, indo muito além 2016, quando sua vitória ainda era dividida com o establishment político. Ao obter uma vitória maiúscula de forma incontestável, alcança o controle absoluto do partido, tornando-o uma agremiação de viés trumpista, direcionado por suas políticas e ideias, algo que move o posicionamento dos pilares da política norte-americana.

O triunfo na candidatura presidencial, por si mesma, seria um grande feito, entretanto, a forma como ocorreu, com a manutenção do controle da Câmara de Representantes e uma virada no Senado, agora com superioridade incontestável, mostra que o recado das urnas foi contundente. Trump irá governar com maioria nas duas casas legislativas, além de uma sólida base conservadora na Suprema Corte, onde já indicou três nomes: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett.

Como se não fosse o bastante, Trump ajudou a eleger oito governadores. Os Estados Unidos foram às urnas para eleger não só o novo presidente do país, mas também 11 novos governadores. Oito republicanos conseguiram o cargo, enquanto apenas três democratas foram eleitos. Atualmente, 27 Estados são governados pelo Partido Republicano e 23 pelo Partido Democrata.

Trump conseguiu desmontar o chamado Blue Wall, formado pelos estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, erguido pelos democratas desde o período de Bill Clinton. Apesar deste sólido bloco de estados democratas ter exibido rachaduras em 2016, foi reerguido por Biden em 2020. Em 2024 se desfez por completo. Trump venceu nos três estados, dois deles governados por democratas que sonharam estar no lugar de Kamala Harris nesta disputa: Gretchen Whitmer e Josh Shapiro.

Para além destes, Trump venceu na Carolina do Norte, Georgia, Arizona e Nevada, estados onde havia maior disputa, ou seja, o republicano venceu em todos os estados-pêndulo. O resultado não poderia ser diferente: 312 votos no colégio eleitoral contra 226 de Kamala Harris. Ganhou também no voto popular com 75 milhões de votos, 50,2%, uma diferença de 3 milhões para a democrata. É o melhor resultado para um republicano na disputa pela Casa Branca desde 1988.

Donald Trump assumirá o poder novamente com 78 anos e 7 meses, 2 meses mais velho que Biden em 2021. Sairá com 82 anos. Não poderá ser reeleito em 2028. A Constituição norte-americana proíbe mais de 2 mandatos, seguidos ou não. A luta pelo seu espólio político será um ponto central dos próximos anos, afinal todos sonham com um Grand Chelem como este alcançado por Trump para consolidar seu poder. O tamanho desta vitória é certamente a herança mais cobiçada deste mandato.

O retorno triunfal de Trump e a humilhação da militância woke

Há algo de fascinante, quase tragicômico, na forma como as elites progressistas dos últimos anos se posicionam como sinônimos de democracia, virtude e justiça social. “Nós somos a democracia”, proclamam. Mas qualquer força política que se autointitule dona desse conceito está, na verdade, cavando sua própria cova. Democracia não aceita monopólios, nem mesmo o da virtude.

Os chamados woke, que dominam o debate público nas elites progressistas, não são apenas autoritários, são insuportáveis. A tentativa de encapsular as minorias numa “senzala ideológica” onde todos devem marchar no mesmo ritmo e repetir o mesmo discurso não só é um fracasso estratégico como uma traição à própria ideia de diversidade.

Negros, latinos, mulheres, gays e trans precisam pensar igual. Quem define como pensar? A panelinha de sempre. O clube do “todEs”, liderado por militantes que se comportam como meninas más de colégio rico, armadas com seus gritos de “racista!”, “fascista!”, “homofóbico!”. Quem ousa desviar minimamente do script é cancelado sem piedade.

E foi precisamente essa postura que levou o woke ao chão – humilhado, debochado e ignorado – nas eleições mais recentes dos Estados Unidos. Donald Trump não só sobreviveu ao apocalipse moral que previram, como expandiu seu eleitorado em minorias que, ironicamente, os progressistas juravam representar. O aumento do voto latino para Trump é um tapa na cara de quem achava que podia determinar o que cada grupo deveria pensar.

E as elites não entenderam nada. “Como pode alguém votar no Trump?” Essa pergunta, repetida em tom de indignação por muitos, revela mais sobre a incapacidade cognitiva de quem a formula do que sobre as escolhas do eleitorado.

Eis o ponto: você pode não gostar de Trump, mas precisa ser intelectualmente honesto para entender por que alguém vota nele. Se você não consegue, é porque está tão preso à sua bolha de virtude que prefere acreditar que o mundo é burro ou manipulado. É mais fácil culpar fake news ou a “maldade inerente” das pessoas do que encarar o fato de que, talvez, o problema seja você.

A obsessão identitária que contaminou o progressismo fez com que minorias fossem vistas não como indivíduos com vozes próprias, mas como blocos homogêneos que devem seguir o dogma imposto pelos iluminados do woke. É um projeto autoritário disfarçado de empatia. E o mais irônico? Quem mais odeia os woke são as próprias minorias que eles dizem defender.

O partido democrata deu espaço demais para essa maluquice e agora paga o preço. A Kamala Harris até que tentou, manteve distância do todEs na campanha. Mas a torcida, ah, a torcida é um desastre. Os woke funcionam como aquele fã-clube tóxico que arruína a imagem de qualquer famoso. Eles acham que estão salvando o mundo, mas estão apenas arrancando a soco espontaneidade das pessoas em nome de uma suposta virtude coletiva.

E, quando os resultados vêm, a surpresa é inevitável. Eles não percebem que são odiados. Que suas posturas são vistas como arrogantes, condescendentes e absolutamente insuportáveis. A resposta para o desastre? Trocar o povo. Se o povo não concorda com eles, o problema é o povo. Eles nunca têm culpa. Afinal, possuem o monopólio da virtude. Se estão sendo rejeitados, só pode ser por fake news, manipulação ou pela maldade intrínseca do outro.

E então devemos cancelar o woke? Não defendo que sejam cancelados, eles têm o direito de falar e de viver segundo seu sistema de crenças como qualquer seita. Defendo que sejam reconhecidos pelo que são: uma seita radical de filhinhos de papai que confundem militância com bullying. Eles podem existir, podem gritar seus “todEs” à vontade. Só não podem ser levados a sério. Não mais.

O que vimos nos Estados Unidos não foi só uma vitória de Donald Trump. Foi o maior tombo do woke. Uma humilhação pública. Quem sabe, um marco para uma mudança de ventos. Ninguém aguenta mais ser julgado por meninas más de colégio rico fantasiadas de militantes.

Foto: Ryan Collerd/AFP

O caminho de Kamala Harris até a derrota

O presidente Joe Biden não estava triste ou preocupado quando falou pela primeira vez após a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Estava era estranhamento risonho. Chegou ao púlpito na Casa Branca com passos rápidos e usando seu indefectível óculos escuro. Falou de forma precisa, sem perder o raciocínio e até deu uma estocada elegante no adversário vitorioso. “Você não pode amar seu país somente quando vence”, disse corretamente. Em nada parecia com o homem frágil e vacilante que foi obrigado por seus colegas a renunciar em sua tentativa de reeleição depois de colapsar cognitivamente durante o primeiro debate com o republicano ainda no começo da campanha.

A estratégia Democrata de trocar de candidato para evitar a humilhação fracassou fragorosamente. E talvez esteja aí a razão do incontido sorriso de Biden. Kamala Harris ficou abaixo da performance do atual presidente, que venceu Trump na eleição de 2020. O resultado negativo, contabilizando derrotadas em todos os estados pêndulos e o melhor desempenho republicano desde 1988, é fruto também uma sucessão de erros elementares. A começar pela própria substituta, que não tinha trajetória política suficiente para almejar o posto.

Por isso, a candidata democrata foi blindada por sua equipe de campanha desde o início. Na média, só concedia entrevistas a veículos considerados alinhados. A exceção foi quando falou para a Fox News, mas não com saldo positivo. Sua pior apresentação, entretanto, veio em terreno considerado seguro por Democratas. Durante uma participação no programa The View, considerado de viés progressista, Kamala disse que não conseguia ter em mente nenhuma discordância em relação às decisões do governo Biden.

Ao invés de se distanciar de um presidente desgastado e imprimir uma expectativa de renovação e de mudança sob uma perspectiva democrata, o que ela fez foi referendar a inflação alta, o caos nas fronteiras e a frágil política externa. Qualquer esforço em apresenta-la como algo diferente esmoreceu.

Além da própria inaptidão, Kamala não conseguiu fazer uma composição política minimamente consistente. Ao invés de escolher para vice o comunicativo e popular Josh Shapiro, governador da disputada Pensilvânia, preferiu Tim Waltz, do tradicionalmente democrata Estado de Minnesota. Shapiro, tido como de centro, foi colocado de lado porque parte da militância não ia gostar de um judeu pró Israel na chapa. E isso diz muito sobre a situação do partido Democrata, sequestrado por grupos políticos identificados com o radicalismo de esquerda.

Kamala não foi a escolha das bases democratas, e sim da elite do partido. Em artigo de julho de 2024 para a Gazeta do Povo, escrevi que “ao contrário de Trump, que tem o apoio de seus correligionários e foi escolhido nas primárias, ela não apenas conserva indicadores periclitantes de popularidade como acabou sendo indicada pela conveniência dos caciques partidários”. Apontei que era “uma candidata da burocracia”, e que “excluindo toda espuma da publicidade voluntária e a torcida travestida de análise política”, sobrava “uma figura comum que está servindo de muleta para um partido que não esconde o medo de perder”. E a derrota veio, tão óbvia quanto poderia ser.

Lula é Kamala. Bolsonaro é Trump. E daí?

Se há algo que parece passar despercebido no calor das discussões políticas no Brasil, é a irrelevância absoluta das opiniões de Lula e Bolsonaro sobre as eleições dos Estados Unidos. Sim, isso mesmo: o que eles acham de Kamala Harris ou Donald Trump não tem impacto algum em Washington. Nenhum.

Vejamos o cenário atual. Lula, o presidente da República, declara seu apoio a Kamala como se isso fosse mover algum ponteiro na eleição norte-americana. Bolsonaro, fiel ao seu estilo, expressa abertamente seu apreço por Trump, como se os eleitores americanos estivessem ansiosos para saber o que ele pensa. Mas, honestamente, e daí? Não importa se o presidente do Brasil é fã de Kamala, Trump, ou até do Pato Donald. Lá nos Estados Unidos, isso é só ruído.

A questão é que o público brasileiro, ou pelo menos parte dele, parece incapaz de entender essa desconexão. Importamos o embate Lula versus Bolsonaro para dentro de temas internacionais como se isso fosse relevante para o eleitor norte-americano. A ilusão é de que, se um dos nossos líderes manifesta apoio a um candidato estrangeiro, ele realmente acredita estar influenciando alguma coisa. Não está. Essa dinâmica seria diferente se estivéssemos falando de um país vizinho, na América Latina. Um comentário do Brasil sobre a eleição argentina, ou mesmo paraguaia, poderia ter ressonância. Mas sobre uma potência como os Estados Unidos? É um jogo de aparências. E quem se ilude com ele é só o brasileiro.

Para ilustrar a inutilidade desse jogo, imagine se estivéssemos falando das eleições no Brasil, mas o apoio viesse de Angola. Digamos que o presidente angolano, João Lourenço, publicasse um vídeo apoiando Lula em nossa eleição presidencial. Isso mudaria o seu voto? É óbvio que não. E é óbvio que a opinião de Lula ou Bolsonaro sobre Trump ou Kamala não muda um único voto americano.

Ainda assim, seguimos nessa. Como se o mundo fosse acabar dependendo de quem ocupa a Casa Branca. “Kamala vai confiscar direitos, Trump vai erguer o muro”. Mas, vamos ser francos, o que realmente mudou quando Trump foi presidente? Ele tentou muita coisa, mas os guardrails da democracia americana, construídos e mantidos ao longo de duzentos anos, seguram qualquer um – até mesmo quem queira ou finja querer explodir o sistema. Nos EUA, o sistema é maior que o presidente. O Congresso, a Suprema Corte e as leis se mantêm intactos, segurando as rédeas da democracia. Algo que, convenhamos, não temos por aqui.

Aqui, no Brasil, a nossa democracia é frágil. Mudamos de Constituição como quem troca de roupa, o que coloca em perspectiva o quanto somos inconstantes em nossas “aventuras democráticas”. Nos EUA, há segurança estrutural. Lá, quem passa da linha, seja presidente ou peão, paga. O caso do Capitólio mostrou isso. Quem ousou desrespeitar o sistema foi punido e não foi um teatro para mostrar ao mundo “ficha limpa”. A punição foi para valer, sem essa história de salvar peixe grande e fazer show com os pequenos.

Mas, ainda assim, muitos aqui insistem em romantizar a eleição americana, como se tivéssemos que escolher lados e como se qualquer um dos lados fosse, de fato, nos representar. Sinto muito desapontá-los, mas o próximo presidente americano será irrelevante para nós. E não porque a política externa dos Estados Unidos é uma fantasia, mas porque, para eles, o que importa é o próprio sistema. Seja Trump, Kamala ou quem for, a democracia americana segue firme. Ela não precisa de salvadores; ela precisa de respeito ao que foi construído.

Então, meu conselho? Acompanhemos o show de camarote, mas sem apego emocional. No Brasil, há quem se emocione com tudo isso, com cada palavra de Lula ou Bolsonaro sobre política americana .Mas emoção, em política, nunca deu certo. E, para ser sincera, essa importação de brigas estrangeiras só serve para distrair do que realmente importa aqui.

Desafio de Kamala

Os últimos dias em Washington estão sendo de intensa movimentação, algo atípico para esta época do ano, tanto pelo calor que invade a capital, como pelas férias de verão que esvaziam a cidade nestes meses. Porém, tudo muda diante de um ano eleitoral como este que estamos presenciando. Nestas semanas estou imerso presencialmente na política americana discutindo cenários e colhendo informações sobre as campanhas.

Um atentado, uma desistência, uma nova candidata e um jovem senador de Ohio como companheiro de chapa. Nestes últimos dias aconteceu de tudo na campanha eleitoral. Os republicanos, ou melhor dizendo, o partido de Trump, que tomou o controle da estrutura partidária republicana, fizeram uma convenção na esteira do atentando contra seu candidato, que decidiu partir para o confronto e deixar de lado o discurso de união que poderia emergir depois dos tiros na Pensilvânia.

Trump escolheu como vice JD Vance, um jovem senador por Ohio, indicado por seus filhos, em especial Donald Jr, que enxergou em Vance um nome que pode entregar um estado essencial na disputa contra os democratas. Nenhum presidente até hoje venceu sem Ohio e ao assegurar um nome com enorme penetração política local, praticamente selou o apoio do estado na disputa eleitoral.

A mudança na chapa dos democratas diante da desistência de Biden em buscar a reeleição trouxe um elemento novo para o tabuleiro. Sua decisão já estava tomada e a comunicação foi realizada somente depois do partido costurar o apoio em torno de sua vice, algo que sugere a continuidade da sua presidência e sua chapa para reeleição. Em pouco tempo, todos os diretórios estaduais democratas selaram o apoio a Harris, assim como os principais cardeais do partido. A convenção em Chicago servirá apenas para sua consagração e formalização eleitoral.

A eleição americana será decidida mais uma vez em um pequeno punhado de estados que, ao votar com republicanos e democratas de forma pendular em cada eleição, podem fazer com que o resultado sofra variações, os chamados swing states. Flórida, Ohio, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Destes, Flórida e Ohio são considerados republicanos nesta eleição, especialmente por termos Trump e JD Vance na disputa. Kamala mira em Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Sem eles, não há chance de vitória.

Isso explica porque a nova pré-candidata presidencial começou sua caminhada justo por Wisconsin, que sediou a convenção republicana. Nos outros dois estados, possui aliados de peso: no Michigan, a governadora Gretchen Whitmer e na Pensilvânia, o governador Josh Shapiro, ambos nomes com ambições presidenciais. Um deles certamente deve ser o companheiro(a) de chapa de Kamala Harris e a tendência, diante da busca de equilíbrio, é o governador Shapiro, um homem branco e centrista, que pode tirar votos de Trump, além de ser popular em um dos estados mais importantes desta eleição.

O desafio de Kamala está lançado. Sua candidatura foi bem articulada até aqui nos bastidores do partido. Biden e os cardeais democratas fecharam apoio irrestrito do partido em torno dela. A chance de vitória existe, porém, se acontecer será por uma margem muito estreita. O favoritismo ainda reside nos ombros de Trump e seu grupo político, porém, se Kamala Harris souber se movimentar há um pequeno espaço para virar o jogo. Washington segue fervendo nestas férias de verão.

Sem Biden, democratas conseguirão derrotar Trump?

O Partido Democrata dos Estados Unidos enfrenta um de seus maiores desafios históricos com a saída de Joe Biden da corrida presidencial. Era inevitável, considerando as crescentes preocupações sobre a saúde mental do presidente, algo amplamente discutido até mesmo entre democratas e antigos membros de sua campanha.

Nos EUA, a saúde de quem ocupa cargos públicos é uma questão séria, diferentemente do Brasil, onde figuras doentes já foram eleitas sem grande polêmica. Biden demonstrou publicamente sinais de desgaste, gerando questionamentos contínuos sobre sua capacidade de governar por mais quatro anos. Sua decisão de não concorrer novamente preserva seu legado e contrasta com a postura comum de políticos populistas, que se veem como os únicos representantes legítimos do povo.

A carta de Biden, anunciando sua retirada, é um exemplo de política madura e responsável, colocando o partido acima de suas ambições pessoais. A provável candidata democrata agora é Kamala Harris, embora a decisão final dependa da convenção nacional do partido, que reúne cerca de quatro mil delegados. Nomes influentes, como Nancy Pelosi, já endossaram Harris, indicando uma forte tendência a seu favor, apesar de seu desempenho modesto nas primárias anteriores.

A situação coloca os democratas em um dilema. Trocar Biden por outro candidato pode ser visto como fraqueza, enquanto mantê-lo seria arriscado devido às suas questões de saúde. A principal questão é: os democratas conseguirão encontrar alguém capaz de derrotar Donald Trump?

Vale lembrar que, no sistema eleitoral dos EUA, a vitória depende dos votos por estado, e não do total nacional. Trump venceu Hillary Clinton em 2016, apesar de ter menos votos totais, devido à sua vantagem em estados conservadores. A tendência é que essa dinâmica se repita, com Trump levando a melhor nos estados menores e mais conservadores.

Kamala Harris representa um progressismo elitista que podeser problemático com os eleitores norte-americanos, diferentemente de Biden, que não está nessa ala ideológica. Esta eleição será um teste significativo para os democratas.

O mais importante, no entanto, é que transcorra com serenidade. É preciso que a democracia dos EUA se mostre forte apesar da polarização. O resultado terá implicações globais, especialmente considerando a ascensão de potências como China, Irã e Rússia. A democracia mundial observará atentamente, ciente de que qualquer retrocesso nos Estados Unidos pode ter consequências internacionais profundas.

Com Quem Será? Em busca do(a) Vice de Donald Trump

Até os anos 70 do século passado, os candidatos à vice-presidência dos Estados Unidos eram anunciados ao final das convenções partidárias que oficializavam o número 1 das respectivas chapas.

Mais tarde, como ensina Joel K. Goldstein na importante obra The White House Vice-Presidency: the Path to Significance, Mondale to Biden, de 2016, com a consolidação do sistema de eleições primárias, o desfecho das convenções passou a ser conhecido antes da realização das mesmas, e isso também ‘adiantou’ o processo da escolha do número dois.

Sempre de acordo com  Goldstein, em artigo recente para o boletim “Sabato’s Crystal Ball, do Centro de Política da Universidade da Virgínia, no ano de 1984, o candidato Democrata à Casa Branca, Walter Mondale, que tinha sido vice de Jimmy Carter e acabou ‘tratorado’ por Ronald Reagan quando este conquistou seu segundo mandato, foi o primeiro a revelar quem seria sua companheira de chapa, pouco antes da convenção: a deputada federal por Nova York Geraldine Ferraro.

O que não muda é a busca de um(a) companheiro(a) que possa ‘compensar’ as deficiências do cabeça de chapa em termos demográficos e regionais. Para o pleito de novembro deste ano, a pergunta é: o Republicano Donald Trump, virtual candidato de sua legenda e que se caracteriza por ser um ‘ponto fora da curva’ em quase tudo, seguirá este script? Em 2016, vale lembrar, Trump se manteve fiel a ele, buscando em Mike Pence, ex-governador de Indiana e antigo apoiador do presidenciável texano Ted Cruz, um ‘abra-te, sésamo’ para eleitorado conservador evangélico. Desta vez, porém, não existe a menor possibilidade de a dobradinha se repetir em vista da recusa de Pence, no papel constitucional de presidente do Senado, a seguir seu chefe na feroz contestação dos resultados eleitorais do pleito de 2020, que levou à vitória da chapa Democrata Joe Biden/Kamala Harris.

Poucas dúvidas há de que a personalidade nada convencional de Trump vai se  refletir na escolha do(a) seu(sua) novo(a) companheiro(a) de chapa. O estilo abrasivo do ex-presidente, que, durante as primárias, referiu-se sarcástica e até grosseiramente a competidores como o governador da Flórida Ron DeSantis e a ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora às Nações Unidas (governo Trump) Nikki Haley, alienou de tal maneira esses dois correligionários que ambos já declararam não estar interessados em compor a chapa trumpista. DeSantis chegou a criticar a preferência de Trump por um(a) vice identificado(a) com uma política identitária e ‘lacradora’. O governador do Texas, Gregg Abbot, também já manifestou seu desinteresse.

Se o critério orientador da seleção do vice de Trump for a ideologia, a governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem; o senador pela Carolina do Sul Tim Scott (o único Republicano negro do Senado); e o senador por Ohio J. D. Vance (autor da autobiografia que deu origem ao filme “Hillbilly Elegy”/“Era uma Vez um Sonho”) são nomes fortes. Chances menores, porém nada desprezíveis, teriam a deputada federal por Nova York Elise Stefanik e o senador pela Flórida Marco Rubio, que, em 2016, se declarou desinteressado em ser o vice de Trump. É improvável, agora que seu domicílio eleitoral é na Flórida, que ele escolha para vice alguém do mesmo estado. A emenda constitucional número 12, promulgada em 1804, exige que o presidente e seu vice sejam domiciliados em estados diferentes.

Como já observado acima, porém, naquele ano, Trump, ao escolher seu companheiro de chapa, orientou-se menos pela identidade e mais pela ‘complementaridade’. E, naquela época, antes de se fixar em Mike Pence, o magnata chegara a sondar o então governador de Ohio, John Kasich.

O autor Goldstein lembra que, quando o presidenciável é uma cara nova em Washington, é natural que sua escolha do vice recaia sobre alguém que sinalize experiência política (os Democratas Carter & Mondale; os Republicanos George W. Bush & Dick Cheney). A recíproca é verdadeira se o titular da chapa for uma ‘figura carimbada’ e quiser sinalizar algum ímpeto renovador, a exemplo de Jack Kemp, antigo astro do futebol americano e deputado Republicano reformista por Nova York (vice da chapa do veterano senador pelo Kansas, Bob Dole, em 1996); Sarah Palin, então governadora do Alaska e estrela em ascensão da ala ultraconservadora do GOP (companheira do senador Republicano moderado pelo Arizona, John McCain); e Paul Ryan, então jovem deputado  pelo Wisconsin (na chapa Republicana encabeçada por Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, hoje senador pelo Utah). Rara mesmo sempre foi a seleção de um número dois sem prévia experiência eleitoral. Exceções: Henry Wallace (ex-secretário de Agricultura do Democrata Franklin D. Roosevelt, quando da segunda reeleição deste, em 1940); e o Democrata Sargent Shriver, ex-diretor do Peace Corps, ex-embaixador à França e cunhado de John F. Kennedy (companheiro da chapa encabeçada pelo senador de Dakota do Sul George McGovern), em 1972. A candidatura McGovern/Shriver amargaria um retumbante fracasso: naquele ano, o Republicano Richard Nixon conquistou a reeleição vencendo em todos os estados, à exceção de Massachusetts.

Observe-se que Trump, no pleito de 2016, foi o primeiro presidente eleito sem experiência anterior em cargo público algum (civil ou militar), embora já fosse amplamente conhecido em todo o país, sobretudo graças ao reality show televisivo “O Aprendiz”.

De um modo geral, assinala Goldstein, presidenciáveis Democratas e Republicanos ‘pescam’ seus vices em diferentes águas: os primeiros dão preferência a senadores (foram 16 entre 19 desde 1940); os segundos tendem a selecionar governadores, como Spiro Agnew (Maryland, vice de Nixon na eleição de 1968); Sarah Palin (Alaska, 2008); e Pence (Indiana, 2016). Mas isso não quer dizer que senadores Republicanos nunca tenham concorrido ao segundo cargo mais poderoso do mundo: Nixon (vice de Dwight D. Eisenhower, 1952 e 1956); Bob Dole (vice de Gerald Ford, 1976). Poucas vezes, em contraste com os Democratas, o GOP apresentou candidatos à vice-presidência provenientes de altos escalões do serviço público (Henry Cabot Lodge Jr., ex-embaixador às Nações Unidas e companheiro de chapa de Richard Nixon em 1960, no pleito vencido por John Kennedy e Lyndon Johnson; e George H. W. Bush, ex-diretor da CIA, eleito e reeleito na chapa de Ronald Reagan, em 1980 e 1984).

Os dois grandes partidos quase nunca recorrem à Câmara de Representantes em busca do número 2 (exceções: o deputado William Miller, em 1964, na malograda campanha Republicana de Barry Goldwater, senador conservador do Arizona; e o já citado Paul Ryan, em 2012. Ele e Mitt Romney foram derrotados no pleito que reelegeu os Democratas Barack Obama e Joe Biden.) O último deputado federal eleito vice-presidente foi o Democrata John Nance Garner, companheiro de Franklin Roosevelt quando da primeira eleição deste, em 1932. Assim, se o passado tem alguma serventia como preditor do futuro, escassas são as probabilidades de Trump vir a escolher a deputada Stefanik (NY) ou sua colega do estado da Geórgia e também Republicana Marjorie Taylor Greene.

Seja como for, o(a) futuro(a) vice-presidente de Trump, caso este se eleja novamente, vai encarar desafios (e oportunidades) incomuns. Como a Constituição veda a eleição de um presidente pela terceira vez, consecutiva ou não, seu(sua) companheiro(a) poderá concorrer à Casa Branca daqui a apenas quatro — e não oito — anos. E se Trump, mesmo eleito, vier a ser impedido de continuar na presidência por causa de seus muitos, digamos problemas com a Justiça, o(a) vice virá a sucedê-lo a qualquer momento do próximo quadriênio.

Dúvidas e ambiguidades: como será a política externa de um possível governo Trump-2?

Obedientes à sinalização de Donald Trump, virtual candidato Republicano à eleição presidencial de novembro próximo, os senadores do partido retiraram seu apoio a um bilionário projeto de legislação financiando o fortalecimento da segurança na fronteira dos Estados Unidos com o México, dificultando a concessão de asilo humanitário aos milhares de imigrantes que todo dia atravessam clandestinamente essa fronteira rumo ao território americano e acelerando os trâmites para a deportação daqueles ilegais  não qualificados para o benefício.

Ironicamente, esse amplo pacote de reforma imigratória fora uma exigência imposta pela própria bancada senatorial do GOP como condição para aprovar a concessão de assistência militar a três estratégicos aliados de Washington: Ucrânia, Israel e Taiwan. (O Senado se encontra ‘rachado’ entre 50 Democratas e 49 Republicanos, e, para seguir à Câmara de Representantes, o projeto necessitaria de um mínimo de 60 votos.)

Não é segredo para ninguém que o recuo Republicano foi motivado pelo cálculo eleitoral. Desde 2015, quando, no começo da sua primeira campanha  à Casa Branca, Trump acusou de “criminosos e estupradores” os mexicanos que entram ilegalmente nos Estados Unidos, a questão da imigração tornou-se bandeira número um do Partido Republicano, cuja militância culpa a administração do presidente Democrata Joe Biden pelo caos na fronteira meridional. Trump se recusa a conceder ao governo qualquer progresso nessa área explosiva em pleno ano eleitoral.

Incerteza externa – O acordo vinculando medidas contra a imigração ilegal à ajuda militar havia  sido laboriosamente negociado durante os últimos quatro meses por um trio de senadores: Chris Murphy, Democrata de Connecticut; Kyrsten Sinema, Independente do Arizona; e James Lankford, Republicano de Oklahoma. Agora, depois do fracasso engendrado pelas ambições eleitorais dos trumpistas, os líderes da Maioria — Chuck Schumer, Democrata de Nova York —  e da Minoria — Mitch McConnell, Republicano do Kentucky —  no Senado correm contra o relógio para recosturar um pacote com foco exclusivo em assistência de segurança, orçado em 95,3 bilhões de dólares, dos quais 60 bilhões para a Ucrânia; 14,1 bilhões para Israel e 4,8 bilhões para ajudar Taiwan e outros aliados na região do Indo-Pacífico a enfrentarem a agressiva ameaça da China.

Analistas de política externa e relações internacionais enxergam nesse imbróglio a reiteração das tendências isolacionistas de Trump, que durante sua administração (2017/2021) cancelou a participação dos Estados Unidos na Parceria Transpacífico, determinou o fim da colaboração militar com os grupos de resistência armada ao regime sírio de Bashar al-Assad (cliente da Rússia de Putin e do Irã dos aiatolás) e ameaçou retirar a América da Otan. Na presente campanha, ele se limita a posicionamentos vagos e dúbios quando indagado sobre a política externa de sua possível segunda administração. (Vale o registro histórico: até hoje, o único presidente americano a cumprir dois mandatos não consecutivos foi o Democrata Grover Cleveland, que frustrou a tentativa de reeleição do incumbente Republicano Benjamin Harrison, em 1892.) Exemplos: sobre a guerra Rússia X Ucrânia, sem oferecer detalhes, Trump promete acabar com o conflito em 24 horas; apesar de suas pesadas críticas à condução da estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio, o Republicano não especifica o que vai fazer se derrotar Biden; tampouco ele se compromete com a defesa de Taiwan na hipótese de anexação forçada da ilha à República Popular da China, cenário abertamente admitido pelo regime comunista de Xi Jinping.

Para lançar um pouco mais de luz sobre as prováveis opções de uma política externa Republicana a partir de 2025, este articulista consultou o capítulo de Política Externa (“Department of State”) do alentado relatório — total de mais de 900 páginas!  — Mandate for Leadership: the Conservative Promise. A publicação, que  consolida detalhadamente as providências que uma administração Republicana deveria tomar em todos os departamentos e agências do Executivo federal a partir do meio-dia de 20 de janeiro de 2025,  foi coordenada pelo prestigioso think tank conservador Heritage Foundation, contando com a colaboração de grande e variado grupo de acadêmicos, empresários, líderes de opinião e gestores de políticas públicas pertencentes a  organizações da Direita americana, entre as quais o Alabama Policy Institute, Center for Family and Human Rights, Ethics and Public Policy Center, Foundation for Government Accountability, Hillsdale College, Intercollegiate Studies Institute, Texas Public Policy Foundation e Young America’s Foundation. A responsável pelo capítulo é a professora Kiron K. Skinner,  mestre e PhD em Ciência Politica por Harvard, docente da Escola de Política Pública da Pepperdine University (Califórnia), pesquisadora da Hoover Institution (Stanford University), conselheira-sênior da Heritage, ex-diretora de Planejamento de Política Externa do Departamento de Estado e ex-membro da Junta de Negócios de Defesa do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.

O texto de Skinner começa com um conjunto de sugestões comuns a outros capítulos do documento, referentes à rápida ocupação das principais posições no Departamento de Estado por profissionais alinhados aos princípios, valores e ideias do novo presidente Republicano, sempre que possível dando preferência a correligionários fiéis sobre servidores de carreira, já que o establishment diplomático  é olhado com desconfiança pelos conservadores em geral como uma corporação predominantemente composta de elementos de orientação progressista, ciosa de sua autonomia em relação a qualquer governo e acostumada a conduzir por conta própria aquilo que os  diplomatas consideram a melhor política externa para o país.

Mais adiante, a autora ilumina as prioridades de uma política externa conservadora, mesmo reconhecendo que alguns pontos importantes — como a questão do apoio militar aos ucranianos na sua luta contra a invasão russa — não gozam de consenso no Partido Republicano.

China (nova guerra fria) – Skinner estabelece como primeiríssima prioridade uma vigorosa resposta dos Estados Unidos à ameaça chinesa, lembrando que o Departamento de Estado recentemente instituiu um gabinete de coordenação de assuntos chineses a fim de articular insumos gerados, dentro e fora da ‘casa’,   com vistas a “comunicação, consenso e ação” de diferentes agências do governo em face dessa ameaça.  A autora assinala  que o “Partido Comunista Chinês está ‘em guerra’ contra os Estados Unidos há décadas” e acrescenta: “Agora, que esta realidade foi aceita pelo governo, o Departamento de Estado deve estar preparado para liderar o esforço diplomático americano de forma condizente” com esse desafio. Isso requer uma mescla de iniciativas de ataque e defesa, de modo a “proteger os cidadãos americanos e seus interesses, bem como os aliados dos Estados Unidos, dos ataques e abusos que comprometem a competitividade, a segurança e a prosperidade” do país. Aparentemente, as democracias avançadas começam a despertar da ilusão de que as reformas pró-mercado, desencadeadas por Deng Xiaoping, e a consequente integração competitiva da China  à economia mundial ensejariam significativa liberalização do regime de partido único; nesse sentido, a primeira providência que cabe aos Estados Unidos tomar consiste no reenquadramento  da natureza e dos desígnios da RPC “mais como ameaça do que como competição”. Para tanto, o Departamento de Estado e o Conselho de Segurança deveriam produzir  documento com fôlego e persuasividade equivalentes ao memorável artigo que, sob o pseudônimo “X”, o diplomata George F. Kennan publicou na revista Foreign Affairs (1947) sobre as bases da conduta soviética, aplicando à China, nas presentes condições Internacionais, uma estratégia de contenção (containment), com resiliência e eficácia análogas   às daquela que acabou por levar a União Soviética ao colapso, colocando  um ponto final em quase meio século de Guerra Fria. Skinner reconhece que essa reconceituação não será fácil, em vista da constelação de interesses e crenças ainda dominantes em parcelas significativas dos setores público e  privado. Muitas desses  atores conservam “uma fé [tão] inabalável no sistema internacional e nas normas globais” que não aceitam quaisquer “críticas ou reformas”, muito menos a possibilidade de que essas regras “sejam abusadas pela RPC. Outros se  recusam a reconhecer as atividades nocivas de Pequim, frequentemente descartando-as como teorias conspiratórias” (a autora dá como exemplo o liminar rechaço à mínima insinuação de que a Covid19 pode ter ‘vazado’ de algum laboratório  chinês). O problema, ela insiste, é que “ações chinesas frequentemente soam como teorias de conspiração porque são conspirações” de fato. Se, por um lado,  gigantes empresariais como o fundo “BlackRock e a Disney se beneficiam diretamente dos seus negócios com Pequim”, por outro, algumas autoridades, a despeito de reconhecerem “os perigos colocados pela RPC [. . .], acreditam em um enfoque moderador”, capaz de “acomodar sua ascensão, uma política de ‘competir onde for preciso, mas cooperar onde for possível’, em questões como mudança climática. Essa estratégia claramente fracassou”. Descrendo da possibilidade de a sociedade civil chinesa, entregue aos seus próprios recursos, conseguir alterar o rumo de uma “cultura estratégica” fundamentada em cinco milênios de história “e não apenas no marxismo-leninismo do PCC”, Skinner conclui que a agressividade da República Popular da China “somente pode ser limitada mediante pressão externa”.

Daqui até fim deste ensaio, focalizarei, seletiva e resumidamente, outras das mais importantes sugestões da professora Skinner relativas a regiões e temas sensíveis para a política externa dos Estados Unidos sob um ponto de vista conservador.

Irã – A analista crítica a administração Democrata por não aproveitar o desgaste doméstico da teocracia iraniana, alvo de protestos brutalmente reprimidos, mas, mesmo assim, ressurgentes, desde o “Movimento Verde”, de 2009, para apoiar o povo daquele país em sua luta pela liberdade. Pelo contrário, as administrações Barack Obama e Joe Biden teriam oferecido à república islâmica condições de sobrevida permitindo o prosseguimento do seu programa nuclear e um alívio de sanções econômicas equivalente a centenas de bilhões de dólares. Uma próxima administração Republicana deve reconhecer que a promoção ativa dos direitos humanos dos cidadãos do Irã coincide com os interesses da segurança dos Estados Unidos no Oriente Médio e demais regiões do planeta onde a ditadura dos aiatolás faz frente comum com outros adversários da América (Rússia, China, Venezuela).

Rússia – Reconhecendo  que o conflito Rússia X Ucrânia é atualmente o maior pomo de discórdia internacional no seio do conservadorismo americano, Skinner se dispõe a esclarecer os pontos de vista em confronto dentro do establishment Republicano. Uma corrente sustenta que a agressão russa, que já entra no seu terceiro ano, desafia os interesses dos Estados Unidos em uma ordem europeia de paz e estabilidade, o que impõe uma ativa estratégia de assistência aos ucranianos e o fortalecimento dos compromissos militares da América com seus parceiros na Aliança Atlântica, com a finalidade de derrotar o regime de Putin e obrigá-lo a retroceder às fronteiras pré-invasão. Outra corrente discorda de que o apoio à Ucrânia, país com um pesado histórico de corrupção e que não integra a Otan,  seja do interesse nacional americano. Para os adeptos dessa corrente, os verdadeiros interessados na defesa da Ucrânia são os seus vizinhos europeus, cabendo-lhes, portanto, incorrer nesse ônus, sem sacrificar o bolso do pagador de impostos americano, muito menos as vidas dos militares dos Estados Unidos. Esse raciocínio conduz a que o melhor cenário possível para o fim do conflito seria a negociação da paz entre Moscou e Kyiv, ainda que isso implique, para os ucranianos, a aceitação dos ganhos territoriais russos decorrentes da invasão.

Finalmente, uma terceira posição busca superar o impasse entre intervencionismo e isolacionismo, em prol de uma estratégia que favoreça a consecução da primeiríssima prioridade de proteger a liberdade e a soberania dos Estados Unidos no contexto de sua rivalidade existencial com a China. Segundo Skinner, isso requer uma cuidadosa calibragem do apoio à Ucrânia, com a assistência americana restrita ao aparelhamento/reaparelhamento militar, enquanto cumpre aos aliados europeus o dever de prestar a ajuda econômica necessária para a reconstrução ucraniana. A autora faz votos de que um(a) próximo(a) presidente conservador(a) possa cortar o nó do atual impasse, abrindo um caminho adiante, inspirado no reconhecimento de que a “China Comunista” é “a ameaça definidora dos interesses dos EUA no século  21”.

Coreia do Norte – Despoticamente governada pela família Kim desde o fim da Segunda Guerra Mundial/início da Guerra Fria, a República Democrática e Popular da Coreia representa uma grave ameaça de agressão nuclear em uma região-chave para a economia internacional. A manutenção da paz e da segurança no Indo-Pacífico requer o compartilhamento das obrigações para a sua defesa entre os Estados Unidos e aliados como o Japão e a Coreia do Sul. A América e seus parceiros estratégicos não devem permitir que o regime norte-coreano continue a “lucrar com suas gritantes violações de compromissos internacionais ou ameaçar seus vizinhos [e o próprio território continental dos Estados Unidos] por meio da chantagem nuclear”, adverte a professora.

Venezuela – Em 24 anos, os governos bolivarianos  de Hugo Chávez e Nicolás Maduro reduziram a população de um país outrora democrático e amigo dos Estados Unidos à miséria mais extrema e continuam reprimindo ferozmente o que restou da oposição, ao mesmo tempo que favorecem carteis do narcotráfico e alimentam um exôdo incessante de refugiados para todo o hemisfério. Graças à ditadura comunista venezuelana, alguns dos maiores adversários dos Estados Unidos ampliam sua presença na América do Sul/Caribe (China, Irã). Skinner conclama  um novo governo Republicano a liderar e “unir o hemisfério contra essa ameaça significativa, porém subestimada”.

América Latina e Caribe – As instituições e o governo México estão desmoronando sob a pressão agressiva dos carteis criminosos. Essa desagregação social em ritmo acelerado é uma poderosa causa do atual caos imigratório na fronteira com os Estados Unidos. Os carteis mexicanos estão associados às indústrias chinesas que lhes vendem os insumos para a produção do fentanyl que é, então, exportado para os Estados Unidos, gerando uma devastadora catástrofe de saúde pública. Kiron Skinner recomenda que uma próxima administração Republicana aproveite a oportunidade aberta com o azedamente das relações China/Estados Unidos e a desorganização produtiva global acarretada pela pandemia para incentivar empresas transnacionais americanas a realocarem suas cadeias de suprimentos para nações amigas latino-americanas e caribenhas. Boas  oportunidades também poderão surgir na área da segurança energética mediante a integração dos Estados Unidos com seus parceiros hemisféricos, reduzindo a dependência em relação a fontes extracontinentais de combustíveis, sujeitas à manipulação geopolítica.

Oriente Médio e Norte da África – Trata-se de duas regiões tão importantes, do ponto de vista econômico, político ou militar, para os Estados Unidos e seus aliados que a hipótese de desengajamento americano é simplesmente impensável. As prioridades  de uma estratégia conservadora para o Oriente Médio e o Norte da África, elencadas por Skinner, são as seguintes: 1) impedir o Irã de se armar com artefatos nucleares e adquirir a capacidade de projetá-los contra seus vizinhos (Israel e países árabes adeptos do islamismo sunita), reinstalando e ampliando as sanções aplicadas pela administração Trump, apoiando, mediante iniciativas de diplomacia pública e outras operações, os movimentos populares iranianos pró-democracia e fornecendo cobertura política e assistência de segurança e defesa aos parceiros regionais de Washington, especialmente Israel, contra o regime xiita de Teerã e seus clientes terroristas, como Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica Palestina; 2) revitalizar os “Acordos de Abraão”, também patrocinados pelo governo Trump, estendendo-os à Arábia Saudita, cujas longas e tradicionais relações com os Estados Unidos sofreram um desgaste durante o governo Biden, o que ensejou avanços diplomáticos de Pequim em direção a Riad; 3) cancelar o financiamento da Autoridade Palestina; 4) manter a Turquia sob a égide da Aliança Atlântica, o que pode exigir uma reconsideração do apoio americano ao Partido dos Trabalhadores Curdos e outros grupos antagônicos ao governo turco; 5) construir um pacto de segurança para o Oriente Médio incorporando Israel, Egito, Estados do Golfo e, talvez, Índia, de modo a assegurar a liberdade de navegação no Mar Vermelho, no Canal de Suez e no Estreito de Hormuz, vias aquáticas vitais para a economia mundial e a prosperidade da América; e 6) cooperar militarmente com a França e outros aliados europeus a fim de conter a expansão do terrorismo islâmico no Norte da África e o crescimento da influência russa por intermédio de organizações mercenárias.

Diplomacia cibernética – À medida que aumenta a importância do ciberespaço como arena de rivalidade entre os Estados Unidos e os regimes exportadores do “autoritarismo digital” (a começar pela China, seguida da Rússia), sua proteção se afigura cada vez mais vital para os Estados Unidos, com base nos valores da democracia e da liberdade de informação. É indispensável defender a internet como “‘domínio aberto, interoperável, seguro, confiável e orientado para o mercado’”, frustrando os desígnios de países que utilizam a rede mundial de computadores “para limitar a oposição e controlar a informação”, além de explorar a abertura dos países democráticos para disseminar propaganda e desinformação. A professora propõe que, paralelamente a encorajar os parceiros democráticos dos Estados Unidos a “estabelecer um firme arcabouço de normas compulsórias para o ciberespaço”, o Departamento de Estado trabalhe em colaboração com o Pentágono numa estratégia ofensiva de dissuasão dos “adversários”, sobretudo em áreas inequivocamente sensíveis como “infraestrutura financeira global, controle nuclear e saúde pública”.

Em contraste com a clareza expositiva e o vigor argumentativo da professora Skinner, as manifestações inarticuladas e ambíguas do trumpismo-raiz em matéria de política externa  —  com a única exceção sendo o amplo e firme apoio a Israel — deixam o mundo ‘no escuro’ sobre futuro papel internacional do colosso americano, sempre a potência indispensável, goste-se ou não de sua primazia.

Em tempo – Enquanto escrevo, o Senado dos Estados Unidos acaba de aprovar por 62 votos contra 32 a admissibilidade da apreciação de uma versão reduzida do pacote que anteriormente vinculava controle de imigração e assistência militar externa. O foco exclusivo da nova versão é a ajuda de segurança para Ucrânia, Israel e outros aliados. Se aprovado quanto ao mérito, seu valor total será de 95 bilhões de dólares. Dezessete membros da bancada Republicana votaram contra a admissibilidade da matéria, que, depois de emendada pelos senadores, será apreciada pela Câmara de Representantes. Lá, a influência de Donald Trump sobre o GOP em geral é muito forte, pois, diferentemente do Senado,  que renova apenas um terço de sua representação a cada biênio, e cujos membros têm mandatos de seis anos, os mandatos de todos os 435 deputados  têm que ser confirmados, ou não, de dois em dois anos.