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Guerra tarifária

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tomaram iniciativas para consolidar sua situação hegemônica. Essa estratégia tinha duas vertentes básicas: de um lado, a construção de um sistema de segurança global; de outro, a montagem de um esquema financeiro e comercial abrangente. 

No campo da segurança, cabe destacar a formação de novos arranjos militares. Nesse sentido, as alianças do período de guerra foram revertidas, com a transformação dos antigos inimigos – a Alemanha, a Itália e o Japão – em aliados. Acrescente-se a formação da Aliança Atlântica como marco decisivo na nova estrutura estratégica internacional. 

No âmbito da reorganização comercial e financeira internacional, cuja gênese pode ser encontrada nos acordos firmados em Bretton Woods (1944), deve-se dar atenção à criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), também conhecido como Banco Mundial. Em que pese não ter havido consenso para a implementação da Organização Internacional do Comércio naquele momento, criou-se o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), sistema de regras tarifárias e comerciais adotadas multilateralmente por meio de rodadas de negociações e cujo adensamento resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), nos anos 1990.

A implementação dessa macroestrutura institucional, tanto de segurança quanto econômica e comercial, enfrentava forte oposição da URSS, que competia com os EUA nos campos ideológico, militar e tecnológico. Apesar da resistência soviética, a estrutura montada pelos Estados Unidos foi duradoura e permaneceu forte durante todo o período da Guerra Fria. A derrocada da União Soviética, em 1991, fortaleceu ainda mais os Estados Unidos e as instituições internacionais em funcionamento desde a década de quarenta.

Os norte-americanos continuaram sua liderança tanto no campo da segurança internacional quanto na seara econômico-financeira até 2025, quando assumiu o poder o novo governo americano do presidente Donald Trump. O líder republicano, que já vinha tentando minar a credibilidade da OTAN com declarações contra o financiamento americano à defesa da Europa, passou a impor tarifas generalizadas e de forma unilateral. Se as referências à OTAN deixaram inseguros os europeus, que temem o expansionismo russo, a imposição de tarifas pelos norte-americanos representa uma ameaça à situação econômica dos cidadãos europeus, uma vez que pode resultar, no curto prazo, em escassez e aumento de preços de insumos básicos.

Ademais, a imposição de barreiras tarifárias pelo governo dos Estados Unidos representa a destruição do sistema construído no pós-guerra e que colocava relativa ordem no comércio e nos fluxos financeiros internacionais.

Embora a Organização Mundial do Comércio tenha sofrido, nos últimos anos, paulatina perda de credibilidade, devido ao desrespeito ou não adesão a suas regras por parte de alguns países, a instituição ainda mantinha certa relevância em sua atuação – suas normas e decisões ainda eram obedecidas na maior parte das vezes, pela maioria de seus membros. Com a imposição unilateral de tarifas elevadas a praticamente todos os países do mundo, contudo, os EUA acabam tornando obsoleto o sistema multilateral do comércio e esvaziando a legitimidade da OMC. 

As tarifas norte-americanas têm causado perplexidade nos mercados e entre os principais líderes mundiais, que ainda não sabem exatamente que medidas adotar para enfrentar uma ruptura de tamanha magnitude. Assim, assistimos a uma desmontagem dupla dos Estados Unidos: ruem, a um só tempo, o sistema atlântico de defesa estratégica, representado pela OTAN, e os arranjos de Bretton Woods, especialmente no que tange ao conjunto de regras que regulam o comércio mundial.

Algumas nações, como a China, já impuseram tarifas retaliatórias aos Estados Unidos. Trata-se de situação que, a perdurar, pode provocar uma recessão mundial de dimensões imprevisíveis, com consequências duradouras.

Apesar desse cenário global desafiador, o Brasil, atingido marginalmente pelas tarifas (alíquota-base de 10%) deve buscar negociar quotas com o governo estadunidense, por exemplo, mas não retaliar de forma imediata e recíproca, uma vez que os EUA têm dado sinais de flexibilização em alguns casos. 

Outrossim, a elevação de barreiras comerciais iniciada pelos Estados Unidos pode representar uma oportunidade para as exportações brasileiras, com o surgimento de novos parceiros comerciais em potencial que irão buscar suprir suas necessidades de consumo internas recorrendo a países com mercadorias a preços mais competitivos, como o Brasil. Como país produtor e exportador de commodities agrícolas e minerais, como café e soja, o Brasil poderá redirecionar produtos para a China, a Índia e o Japão, por exemplo. Isso aliviaria o peso das tarifas americanas. 

Acrescente-se que podem surgir oportunidades importantes no mercado europeu, uma vez que o aumento da tensão entre EUA e Europa, devido à tarifa-base mínima de 20%, imposta a todo o bloco europeu, pode acabar impulsionando as negociações do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. 

Por fim, é interessante notar que algumas mercadorias brasileiras podem ganhar mercado, inclusive, nos próprios EUA, já que, apesar da nova tarifa, produtos nacionais como o café podem ficar relativamente mais baratos ao consumidor norte-americano quando comparados aos de outras nações, cuja taxação foi bem maior. 

Cabe ao governo brasileiro atuar de forma estratégica em defesa dos interesses nacionais, protegendo-se diante de um cenário global adverso e instável, mas, também, aproveitando as oportunidades que surgem para a abertura de novos mercados à indústria nacional.

Foto: Anton Vaganov/Reuters.

Aliança Washington-Moscou

A atual iniciativa de aproximação dos Estados Unidos com a Rússia,  adversário tradicional, não é um padrão   novo na diplomacia norte-americana. Ações diplomáticas surpreendentes e bruscas já ocorreram anteriormente. Devemos recordar que no pós-segunda guerra mundial houve a reversão das alianças, quando os inimigos, a Alemanha, a Itália e o Japão, países derrotados no conflito mundial, passaram a ser considerados pela diplomacia americana como aliados, receberam apoio para reconstrução e se transformaram em baluartes da nova ordem mundial, liderada pelos EUA.

Essa  nova organização estratégica internacional foi, no entanto, confrontada pela União Soviética e tivemos o período da Guerra Fria, no qual o mundo se dividiu em dois blocos antagônicos. A Guerra Fria caracterizou-se pela confrontação entre os blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que disputavam a primazia nos campos ideológico, econômico, tecnológico e geopolítico. Tratava-se de um ”zero sum game ” em que ao ganho de um jogador correspondia direta e simetricamente a perda do outro, mas não havia confrontação militar direta entre os líderes dos dois blocos, os Estados Unidos e a então União Soviética, mas sim por meio de interpostos países.

No entanto, mesmo nesse cenário internacional rígido, o governo americano assumiu em 1972 o risco diplomático de uma aproximação com a China, então parte do bloco sovietico, na forma de uma viagem do Presidente dos Estados Unidos a Pequim, articulada secretamente por Henry Kissinger.

Essa viagem, que procurava causar uma fissura no quase monolítico bloco sovietico da época da Guerra Fria, mostra que há importantes precedentes nas atitudes aparentemente superficiais do atual governo dos EUA. A existência de terras raras e outros minerais estratégicos no território ucraniano ajuda a  explicar a atual ambição americana em ter acesso à Ucrânia. 

A aproximação entre Washington e Moscou causa enorme preocupação na Europa e na Aliança Atlântica, que se sente vulnerável à continuação da agressão russa As populações da Europa Central e do Leste europeu, que estiveram sob o domínio da União Soviética, têm grande temor da Rússia.

O Reino Unido e França têm liderado uma tentativa de reação à iniciativa americana. O Primeiro-Ministro do Reino Unido patrocinou reunião de emergência em Londres com líderes europeus e da OTAN, incluindo Canadá. Nessa reunião ficou clara a decepção com a atitude americana e se iniciou a montagem de preparação de uma estrutura militar independente dos Estados Unidos que possibilite a Europa defender-se da Rússia autonomamente. 

Uma força militar autônoma da OTAN tem como precedente a relação da França com a Aliança Atlântica. Em 1966, em plena Guerra Fria, a França retirou suas forças do comando integrado da organização em busca de independência em relação aos Estados Unidos. Recorde-se que a França desejava principalmente manter suas armas atômicas, a “force de frappe”, força de dissuasão nuclear, sob seu controle. Foi só em março de 2009 que as forças francesas voltaram ao comando da Aliança Atlântica. Durante a guerra na Ucrânia, os europeus reforçaram a OTAN com a adesão da Suécia e Finlândia, países lindeiros com a Rússia, que ficou cercada pela Aliança. 

Os americanos têm considerado a China seu principal adversário  estratégico e tendem a reforçar seu esquema de alianças e seu  “containment” contra Pequim. No entanto, os Estados Unidos mantêm ativas  áreas de interesses comuns com a China principalmente no campo da tecnologia avançada como a produção de semicondutores. Trata-se de um relacionamento com áreas de convergência e divergência entre as maiores potências industriais comerciais e tecnológicas do mundo  A aproximação americano-russa prejudica a China, que tem apoiado, e reforçado, sua aliança com a Rússia durante a guerra na Ucrânia, ajudando-a em relação às sanções europeias e americanas impostas por causa da invasão da Ucrânia.

A OTAN, além de  ter reforçado sua composição com a adesão da Finlândia e da Suécia, tem aumentado também seus investimentos em defesa. No entanto, depois de tantos anos de dependência dos Estados Unidos, sua indústria militar encontra-se fragilizada e necessita investimentos maciços para recuperar sua capacidade, inclusive em relação a munições, setor extremamente dependente do fornecimento americano.

De sua parte, a Europa considera a Rússia seu inimigo estratégico, contra o qual deve se preparar, unir-se e armar-se, sem contar mais com os americanos.

Importante registrar que a ordem mundial inaugurada em 1945 com o fim da Segunda Guerra, que foi patrocinada pelos Estados Unidos e a chamada ” Pax Americana ” deixam de existir e uma nova ordem mundial deve começar. A ordem internacional do pós-guerra tinha como pilares o multilateralismo, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC,  OEA, a firmeza americana no compromisso com seus aliados.

Se a suspensão da assistência militar dos EUA à Ucrânia mostra o desmantelamento da atual estrutura de poder mundial, outro golpe na ordem vigente no pós-guerra é a imposição de tarifas unilateralmente pelo governo americano às importações do Canadá e México, países aliados e fronteiriços, além da China. Esses países reagiram imediatamente com tarifas retaliatórias. A imposição unilateral de tarifas destrói o que resta das tentativas de organizar e liberalizar o comércio mundial depois da Segunda Guerra, como por meio do GATT e depois da OMC, que perdeu importância e pode se dizer que está hoje agonizante. 

É interessante registrar que esse novo desenho da realidade internacional apresenta desafios  para a Europa, que se deve defender com seus próprios meios contra a ameaça russa. Ademais, devemos registrar que a OTAN é hoje  extremamente dependente da estrutura de informacao (ou inteligência ) americana. Ainda não se sabe se a organização conseguirá conter a Rússia sem  ajuda americana, mas os sinais são de que a Europa deve tentá-lo, mesmo porque não há alternativas.

A aproximação russo-americana, o recuo militar dos EUA na Europa, e a imposição unilateral de tarifas, representam fissuras, ou abalos, em uma ordem internacional em declinio.