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A(s) política(s) externa(s) do Governo Trump2

Em 1971, Graham T. Allison, então jovem cientista político de Harvard, lançou uma obra hoje clássica para os estudos de processos decisórios de políticas públicas. Essence of Decision analisa a tomada de decisões do governo do presidente John F. Kennedy num dos mais dramáticos episódios da Guerra Fria: a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (outubro de 1962). Fotos aéreas da Inteligência dos Estados Unidos revelaram que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares apontados para o território norte-americano, a alguns quilômetros de distância, com o beneplácito do governo comunista de Fidel Castro. Naquele momento, o mundo jamais esteve tão próximo de um holocausto termonuclear.

As cúpulas burocráticas civis e militares do governo Kennedy — Departamento de Estado, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional, Estado- Maior das Forças Armadas — competiam entre si para ‘fazer a cabeça’ do presidente quanto à melhor opção para enfrentar aquele desafio da URSS: conversações diplomáticas? Bombardeio aéreo? Invasão terrestre? Bloqueio naval das águas cubanas? Kennedy optou pela última alternativa. Na sequência, o presidente do Conselho de Ministros e primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita S. Khrushchev acabou cedendo e ordenando o desmonte das plataformas de lançamento dos foguetes. E, num toma-lá-dá-cá à época não divulgado, os Estados Unidos concordaram com a retirada de mísseis da Otan apontados para a URSS..

Allison questionou a ‘falácia da composição’ subjacente ao paradigma do estudo das Relações Internacionais: o modelo do “ator racional unificado” (a União Soviética agiu assim, os Estados Unidos reagiram assado etc), como se todas as decisões emanassem de um estadista onisciente, frio, cem por cento racional, confrontando-o com dois outros. Um deles refletia a queda de braço entre os interesses das diversas organizações governamentais envolvidas; e o outro, a “política burocrática”, ora de competição, ora de cooperação, das autoridades de diferentes repartições. (Em 1999, com a colaboração de Philip Zelikow e graças à divulgação do conteúdo de arquivos diplomáticos e militares soviéticos mantidos sob sigilo absoluto até a implosão da URSS, Allison publicou uma segunda edição de Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, substancialmente revista e ampliada.

No início deste mês de fevereiro, em sua coluna para a Bloomberg, Hal Brands, docente da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais)/Universidade Johns Hopkins, Washington, D. C., e pesquisador do American Enterprise Institute, reforçou a perene validade dos insights allissonianos.

Na visão de Brands, o segundo governo Trump tem não uma, mas cinco diferentes políticas externas, cada uma delas defendida por um segmento da coalizão Republicana hoje no poder e todas dispostas a garantir que os seus pontos de vista prevaleçam no processo decisório.

Em primeiro lugar, vêm os “Falcões Globais”, liderados pelo secretário de Estado Marco Rubio e pelo assessor-chefe de Segurança Nacional Mike Waltz. Esse grupo procura se manter fiel ao desejo de Trump no sentido de renegociar as alianças estratégicas dos Estados Unidos (países membros da Otan, Japão, Taiwan, Arábia Saudita etc), mas permanece convicto de que os desafios colocados pelo ‘eixo autoritário’ Pequim/Moscou/Pyongyang/Teerã só podem ser vitoriosamente confrontados mediante a estreita colaboração com esses e outros parceiros estrangeiros.

Em segundo lugar, Brands aponta a clique dos “Guardiões da Ásia”, capitaneada por nomes como Elbridge Colby, subsecretário de Defesa, e o senador Republicano Josh Hawley, do Missouri. Eles acreditam que o risco cada vez mais eminente de uma guerra com os chineses justifica e exige o redirecionamento dos recursos militares da América, hoje concentrados na Europa (guerra Rússia X Ucrânia) e no Oriente Médio, para o Indo-Pacífico, objetivando fortalecer a proteção de Taiwan diante das cada vez mais frequentes ameaças de invasão transmitidas por Pequim; incrementar os pactos armados já existentes com Austrália e Reino Unido (Aukus) e com Japão, Austrália e Índia (Quad, ou Diálogo Quadrilateral de Segurança); bem como celebrar novas alianças com outras nações da região, igualmente temerosas do expansionismo chinês no Mar do Sul da China, a exemplo das Filipinas e do antigo inimigo, o Vietnam).

Em terceiro lugar está a turma da “América, Volte para Casa!”. O vice-presidente J. D. Vance e a diretora da Inteligência Nacional Tulsi Gabbard (ex-deputada Democrata pelo Havaí) advogam um drástico enxugamento dos gastos e compromissos militares dos Estados Unidos mundo afora em troca de mais dinheiro do orçamento federal para turbinar programas domésticos de bem-estar social (Medicare e Medicaid são dois exemplos).

Em quarto lugar, Brands identifica os “Nacionalistas Econômicos”, destacando os secretários do Tesouro (Scott Bessent) e do Comércio (Howard Lutnick). Esta clique enxerga a política externa sob o prisma dos interesses comerciais dos Estados Unidos: uso, ou ameaça do uso, de barreiras tarifárias e não tarifárias como ferramentas para a abertura de mercados aos investimentos e exportações americanos. Esse grupo se alinha com o interesse de Trump em assegurar a hegemonia dos Estados Unidos em setores sensíveis como Inteligência Artificial e recursos energéticos. Diferentemente dos “Guardiões da Ásia”, os “Nacionalistas Econômicos” privilegiam a dimensão comercial e financeira da rivalidade com a China, em detrimento da dimensão militar.

Por último, mas não em último, a “Linha-Dura do MAGA, encabeçada pelo subchefe da Casa Civil Stephen Miller, se opõe a qualquer tipo de ajuda externa e subordinam a política externa às prioridades de sua agenda doméstica: imigração ilegal, em primeiríssimo lugar.

Sempre segundo Hal Brands, as disputas entre essas cinco facções elevam o grau de imprevisibilidade da política externa e de segurança nacional. Os “Falcões Globais” batem de frente com a “Linda-Dura do MAGA”, no exemplo mais óbvio; ou então, “Nacionalistas Econômicos” e “Guardiões da Ásia” procuram solapar as iniciativas recíprocas.

Ao mesmo tempo, ele aponta zonas de convergência importantes, o que pode abrir oportunidades de alianças táticas entre facções como as dos “Falcões Globais” e dos “Guardiões da Ásia”, ou até mesmo destes com a clique da “América, Volte para Casa”, ao menos no que respeita à redução de compromissos militares na Europa e no Oriente Médio….

Ao fim e ao cabo, o professor adverte as autoridades da nova administração contra o que considera falsas e perigosas soluções, entre as quais a vulgarização dos tarifaços comerciais a ponto de uma orgia protecionista enfraquecer as relações da América com aliados preciosos. Ou então, uma pressão tão descabida sobre a Aliança Atlântica, para que esta assuma parcela maior de responsabilidade financeira na estabilização da ordem internacional, a ponto de mergulhar os Estados Unidos, superpotência indispensável, num imprevisível isolacionismo.

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança.