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Vitória de Pirro

A direita nacionalista saiu derrotada mais uma vez nas eleições francesas. No entanto, desta vez, a reação contra Le Pen foi capitaneada por um somatório de forças: o centrismo de Macron aliado ao esquerdismo de Mélenchon. A soma forneceu ao grupo o direito de indicar o Primeiro-Ministro e governar a França em parceria com o Presidente, o que certamente exigirá uma enorme habilidade de ambos os lados.

O grupo liderado por Mélenchon, a Nova Frente Popular, é uma agremiação formada pelo Europa Ecologia, Partido Socialista, Partido Comunista da França e França Insubmissa, todos partidos de esquerda. Macron lidera o Ensemble, uma coalizão inicialmente fundada com nome de Ensemble Citoyens, que reúne partidos de tendências liberais, centristas e aqueles a favor da integração francesa na União Europeia. É formado pelo Renascimento, partido de Macron, maior dentro da coalizão, além do Horizonte, Movimento Democrático e União dos Democratas e Independentes.

A França será governada agora por esta coalizão de partidos de ambas as frentes. A Nova Frente Popular obteve 182 cadeiras no parlamento, enquanto o Ensemble atingiu 168, que somados a outros partidos de esquerda e centro deve chegar a 369 deputados de um total de 577. Será um desafio enorme acomodar todos interesses heterogêneos destes grupos na construção de políticas nacionais e no comando doméstico do país. Tudo indica que estaremos diante de um momento delicado que pode levar a impasses capazes de paralisar o avanço e modernização das políticas francesas.

Do outro lado, a Reunião Nacional cresceu de 89 para 143 cadeiras no parlamento, um grupo muito mais homogêneo e que terá facilidade de fazer oposição aos vencedores das eleições legislativas. Isto, em termos políticos, coloca o grupo em vantagem para as próximas eleições presidenciais em 2027, uma vez que não passará pelo desgaste de ser governo e permanecerá na confortável posição de ser a única opção competitiva contra a nova coabitação política entre centro e esquerda no poder.

Em suma, o triunfo deste domingo pode se transformar em uma vitória de Pirro – expressão utilizada para se referir a uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos irreparáveis, uma vez que a chegada de grupos, partidos e parlamentares tão heterogêneos ao poder realmente não serão capazes de produzir mudanças profundas. O resultado asfaltaria o caminho do nacionalismo de direita ao poder nas eleições de 2027, capazes de levar a Reunião Nacional ao Elysée e ao comando absoluto da Assembleia Nacional.

Além disso, os ventos de 2027 continuam a soprar em favor das direitas de corte nacionalista ao redor do mundo e sua consolidação em muitos países pode ajudar os nomes indicados pela Reunião Nacional a vencer as próximas eleições legislativas, bem como levar Marine Le Pen ao posto de Presidente.

Neste domingo, a direita nacionalista francesa saiu derrotada, enquanto a esquerda nacionalista saiu vitoriosa. Entretanto, nada altera o fato de que o populismo nacionalista saiu vencedor em ambos os lados do espectro político, e olhando sob este prisma, sem dúvida, quem saiu derrotada foi a população francesa, tanto no curto, como no perigoso longo prazo, que começa a ser irremediavelmente desenhado.

A França tomba nas mãos da extrema esquerda e do Islã

As redações ao redor do mundo respiram aliviadas, a aterrorizante “extrema direita” não venceu na França. A esdrúxula e incongruente união de última hora entre o campo macronista (Ensemble) e a Nova Frente Popular (França insubmissa, ecologistas, socialistas e comunistas) conseguiu – em uma reviravolta política que o Le Figaro descreveu como “surpresa monumental e um verdadeiro salto no desconhecido” – bloquear a temida ascensão do partido de Marine Le Pen. A barreira contra o Rassemblement Nationale deu certo, mas lançou a França no colo da extrema-esquerda.

Como assim extrema esquerda? Existe isso? Existe e acabou de obter uma grande vitória na França. Mas ela só existe no mundo real, não consta no vocabulário de boa parte dos jornalistas, que fizeram reserva de mercado das expressões “extrema”, “ultra” e “radical” para o outro lado do espectro político.

O cronista Eduardo Affonso se referiu a esse estranho fenômeno como um processo de “mexicanização da política e da linguagem”. Onde deveríamos encontrar reportagens ou análises políticas, encontramos comentário de novela mexicana:

“Mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho)”, escreveu Affonso.

Niilismo

Eu não tenho esse talento para escrever crônica, não possuo essa irreverência inteligente capaz de apontar o nó cego de uma questão séria, de modo leve, e fazer rir. Há certo peso na minha escrita. Ela é um pouco sombria. O mundo que vejo é sombrio. É um mundo que não percebeu que por trás da perda de sentido da linguagem está uma perda real de sentido, um niilismo que está gradualmente sendo substituído por novas ideologias, por novas religiões políticas.

E aqui não pretendo afirmar que aquilo que estão chamando hoje de “extrema-direita” seja a resposta adequada a essa crise. A própria direita política, inclusive a brasileira, parece não ter consciência de si nem do peso da sua história. Entendem-se como cidadãos de bem, belos e morais, esquecendo-se da quantidade de mal que a tentativa de introjetar na estrutura política e administrativa do Estado uma concepção moral absoluta já causou.

O que me parece é que, à esquerda e à direita, há muitos que já não identificam suas próprias raízes nem trazem consigo a consciência histórica dos males que a radicalização desses posicionamentos trouxe à humanidade.

Filosofia, política e linguagem

Um dos problemas básicos da filosofia tem sido o estudo da relação entre o ser e a linguagem ou a coisa e seu significado. Se atentarmos para isso, veremos que muitos problemas filosóficos poderão ser resolvidos com uma análise da linguagem, o que não reduz o escopo da filosofia, uma vez que o que resta como problematizável após a depuração dos falsos problemas é justamente aquilo que cumpre analisar com o rigor filosófico de quem se debruça sobre o real e não sobre o discurso.

O discurso político é o mais problemático do ponto de vista de uma abordagem filosófica porque faz parte do político o manuseio conceitual inadequado para fins de poder. Conjugado a isso, tem-se ainda a ambiguidade própria dos conceitos aí formulados, que não possuem a rigidez epistemológica de uma definição própria das ciências “não humanas”, nem a objetividade pretendida por aqueles que querem impor sua ideologia.

Faz parte do jogo político essa pretensão e essa ambiguidade, mas também faz parte do esforço de compreensão tentar limpar o terreno discursivo antes de tratar os problemas, deixando claro que os conceitos da ciência política não são estáticos nem unívocos.

Palavras como democracia, esquerda, direita, fascismo, liberalismo, conservadorismo, etc. não têm como referente algo fixo, com propriedades imutáveis, mas a própria experiência humana. Há uma experiência originária fundante do próprio conceito, que precisa servir de referência, mas há também as oscilações posteriores de significado, que se relacionam com as novas experiências históricas e com a história do uso que se faz do próprio conceito em questão.

“O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia”, escreveu Hannah Arendt no prefácio à sua obra Origens do totalitarismo.

Não se trata de direita e esquerda. Ambas descambaram nos regimes totalitários. Trata-se do ser humano e de sua dignidade. Pouco importa se um ou outro lado do espectro político arvora-se retoricamente defensor dessa dignidade. Nesse momento decisivo, pouco importa o discurso, mas a ação concreta, a oposição firme e não ambígua a tudo aquilo que é indefensável porque fere a humanidade na sua dignidade.

A extrema esquerda intolerante e antissemita

O mais proeminente e o mais radical dos líderes da aliança da esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, foi o grande vitorioso dessa eleição.

Mélenchon, que em certa ocasião chegou a bradar “La République, c’est moi!”, discursou logo após os primeiros resultados, exigindo que o presidente Emmanuel Macron chame a Nova Frente Popular para formar o governo. Segundo ele, após a vitória do NFP, Macron deve “sair, ou nomear um primeiro-ministro das nossas fileiras”. A aliança, disse ele, “está pronta para governar”.

Jordan Bardella (RN), por sua vez, lamentou que o resultado da votação tenha jogado “a França nos braços da extrema esquerda”.

O Rassemblement National não chegou ao poder dessa vez, mas ainda reúne um terço dos eleitores e suas pautas principais continuarão a se impor. A direita populista continuará forte na França e no mundo porque as pessoas se saturaram da hipocrisia de uma esquerda que segue à risca intelectuais amorais como Herbert Marcuse que, no texto “Repressive Tolerance”, negou o valor universal da tolerância para pregar literalmente “intolerância contra os movimentos da direita e tolerância aos movimentos da esquerda.”

Desde 7 de outubro de 2023 essa hipocrisia deixou de ser apenas estúpida para se tornar repulsiva. A esquerda, que retoricamente afirma estar do lado dos mais fracos, tolerou, justificou ou comemorou o pogrom bestial perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense.

A França, outrora palco da revolução em meio a qual os conceitos de direita e esquerda adquiriram seu significado político, sucumbiu, mais uma vez, ao radicalismo quando achou que seria uma boa ideia unir esquerda e extrema-esquerda antissemita numa “Nova Frente Popular”.

Essa aliança de extrema-esquerda, que saiu vitoriosa nessas eleições devido à renúncia de muitos candidatos macronistas em favor de candidatos da NFP que pudessem vencer o RN, foi firmemente rechaçada pelo que restou de inteligência, bom senso e idoneidade moral na França.

Em um manifesto no qual tentaram contrapor o universalismo humanista ao sectarismo de uma esquerda identitária e tribalista, os signatários do “arco republicano contra o antissemitismo” apelaram aos franceses para não votarem na “nova praga vermelho-marrom, não votar nesta mentira, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´, uma verdadeira impostura em circunstâncias tão trágicas.”

Percebam que o ponto de atenção do referido manifesto não é Marine Le Pen, o seu jovem pupilo Bardella, ou o seu partido Rassemblement National. A ameaça não é a tal “extrema-direita” que deixou as redações em polvorosa. Os signatários do manifesto sabiam que a hora era grave e a situação perigosa porque uma nebulosa político-ideológica antissemita estava avançando, distorcendo concepções, tornando-se cúmplice do terrorismo islâmico e aliando-se àqueles que querem “impor a sharia obscurantista”.

Enxergar isso e lutar contra isso seria o dever de uma consciência realmente humanista e autenticamente democrática ou republicana. Diante da urgência dessa luta, como afirma o manifesto, esquerda e direita perdem sua relevância conceitual, são posições secundárias. Só existe esquerda e direita dentro da política democrática, que é uma invenção ocidental; em uma República Islâmica só existirá a vontade do aiatolá, que é a vontade de Alá.

Islamo-esquerdismo é um fascismo

O próprio filósofo francês Michel Onfray, um dos signatários desse manifesto, autor de mais de cem livros, já explode em si mesmo a falsa ideia de que esquerda e direita são conceitos estáticos e suficientes para dar conta de fenômenos políticos e de pessoas em constante transformação.

Ele, que já se autointitulou um “socialista libertário não liberal” e já foi descrito como “puritano hedonista”, “revolucionário dândi” e outros paradoxos, parece fazer parte hoje daquele time de ateus que reconhece o valor incontornável da civilização judaico-cristã e que, por isso, insiste em defender o Ocidente contra seus inimigos internos e externos. “Hoje você tem o direito de ser antissemita, racista, homofóbico, misógino, desde que seja em nome do Islã”, denuncia o filósofo, que hoje se entende como um “conservador de esquerda” ou um “anarquista conservador”.

Seja como for, o prolífico autor tem sido uma das poucas vozes lúcidas na luta atual contra as loucuras do identitarismo woke e do islamo-gauchismo (islamo-esquerdismo) que assola a França. As recentes declarações e publicações de Michel Onfray têm o condão de desmontar a ideia preconcebida de que o ódio aos judeus é exclusividade da extrema-direita.

Em artigo que publicou no jornal Le Figaro logo após o ataque bestial de 07 de outubro, ele explica como o antissemitismo, que sempre esteve presente na esquerda, retornou com grande força por trás do antissionismo de fachada:

“Mélenchon, e os da LFI e do NUPES que o seguem, herdam este antissemitismo de esquerda. Depois da Shoah, não podemos mais ser antissemitas à moda antiga, somos agora antissionistas; a mudança semântica permite-nos vestir a velha podridão com um novo casaco. A incapacidade em que esta esquerda se encontra de chamar de terrorista um massacre em massa de populações civis inocentes, mulheres, idosos, crianças incluídas, por serem judeus, o que constitui um crime contra a humanidade, acrescenta um capítulo à história do antissemitismo de esquerda. Normal que, não querendo ver essa infâmia entre eles, afirmem encontrá-la entre Marine Le Pen, culpada de ser filha de seu pai!”, escreveu Onfray no referido artigo intitulado “O islamo-esquerdismo é um fascismo.”

E concluiu:

“Marx fez da vanguarda esclarecida do proletariado a elite destinada a impor a sua ditadura; Lenin queria que esta vanguarda fosse constituída militarmente como um partido. […] Mélenchon substitui o proletariado messiânico pela população composta pela delinquência periférica, pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pelo niilismo dos black blocs, pelo jihadismo dos subúrbios que anda de mãos dadas com a misoginia, a falocracia e, claro, o antissemitismo. Ele acredita que está explorando isso; mas ele é de fato quem está sendo instrumentalizado.

Os apoiadores jihadistas não querem saber de mulheres cisgênero, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, casais de lésbicas, transições transexuais, barrigas de aluguel, saladas de quinoa, turbinas eólicas e bicicletas elétricas da pequena burguesia

Nupesiana. Este braço que Mélenchon arma para seus fins pessoais se voltará contra ele quando chegar a hora. Nestas horas terríveis, os judeus seriam os primeiros a serem sacrificados. E, portanto, a França com eles”.

Como se vê, alguns filósofos, por insistirem em lidar com o real por trás dos discursos, acabam sendo capazes de conceber discursos proféticos.

Aliança Franco-Brasileira

A visita de Emmanuel Macron ao Brasil é importante em termos econômicos e simbólica em termos políticos, uma vez que a França possui laços estratégicos e profundas ligações econômicas com nosso país. Isto explica por que as agendas estão além das diferenças, focando em parcerias essenciais para fortalecer os laços entre nações democráticas e economias complementares como na área ambiental, política industrial, energia verde, transição energética, além das relações econômicas e financeiras tradicionais.

Pelo critério de controlador final, a França ocupa a posição de 3º maior investidor no Brasil, com cerca de US$ 38 bilhões investidos. Em 2023, a corrente de comércio bilateral alcançou US$ 8,4 bilhões. Estamos falando de um parceiro essencial para os fluxos de comércio exterior brasileiro, além de uma nação com peso econômico fundamental nas cadeias globais de valor.

Dentro do contexto da União Europeia esta importância se multiplica, uma vez que o bloco é o investidor estrangeiro mais importante do país, aportando mais de dez vezes aquilo que os chineses vêm trazendo de capital externo ao Brasil. Enquanto a China é hábil em divulgar seus aportes, os europeus, até pelo caráter difuso multinacional, têm menos reconhecimento quando o assunto é o seu investimento direto estrangeiro.

O acordo entre Mercosul e União Europeia, emperrado nos últimos tempos, exatamente diante da dificuldade de avançar em temas protecionistas em ambos os lados, por certo está longe de atingir um denominador comum. Porém, os europeus, seja como bloco e até mesmo por iniciativa de seus próprios países, tem buscado forma de se proteger dos investimentos estrangeiros predatórios. Um tema que poderia servir de inspiração aos países do Mercosul, algo que deixaria os países do bloco menos expostos em sua soberania diante do brutal avanço de aquisição estrangeira de ativos estratégicos por países que estão fora da união aduaneira.

Alianças comerciais e políticas com países como a França são essenciais para fortalecer nossa economia e democracia, uma vez que estamos lidando com um país democrático, com instituições e moeda estáveis, judiciário independente, regras definidas e contas públicas equilibradas. Um conjunto de fatores virtuosos para fluxos comerciais perenes e saudáveis que estimulam investimentos, dinamizam a economia e geram empregos.

Isto fica muito claro no fluxo atual que precisa ser ampliado. No Brasil já estão presentes mais de 850 empresas francesas, o que torna o país europeu o maior empregador estrangeiro em território nacional, com a geração de 500 mil empregos. A trilha é simples. Com um potencial gigantesco, uma parceria desenhada com habilidade pode impulsionar as economias de ambos os países. Há muito espaço para crescer.

O Brasil deveria privilegiar relações saudáveis com países com confiável histórico de relacionamento como possuímos com a França ao invés de se submeter aos interesses e recursos predatórios de autocracias como vem acontecendo em tempos recentes. Esta visita serve como lançamento destas iniciativas e uma reaproximação profícua de parceiros tradicionais capazes de trabalhar sistemas de parceria, investimento e integração econômica. Afinal, como sempre digo, democracias gostam democracias.