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Uma vida inventada: como garantir a liberdade na economia do metaverso e dos games?

Outro dia um amigo me indicou um site de roupas absurdamente maravilhosas e extravagantes, elaborada por designers criativos de todo o mundo. Fiquei deslumbrada, mas imaginei que custassem uma pequena fortuna. Imaginem minha surpresa ao ver que custavam entre US$ 30 e US$ 40.

Enlouqueci. Já fui separando as preferidas e tentando ver se entregam no Brasil. É coisa que aparenta milhares de dólares e custa muito menos, uma barganha. Foi revirando as modalidades de entrega que entendi: é roupa para o metaverso.

Na hora já deu aquele frio na barriga. Afinal, já precisa até comprar roupa para ir ao metaverso e a gente ainda nem entendeu direito o que é. Na verdade, você já tem a experiência, só não associa o nome à pessoa.

O Facebook é talvez a melhor empresa de marketing que já houve. Ao mudar o nome para Meta e falar em Metaverso, evocando o elemento pop do filme do Homem Aranha, nos dá a impressão da chegada de algo totalmente novo e disruptivo. Não é assim, é uma evolução de muito do que já temos.

A definição técnica de Metaverso é um espaço livre e compartilhado de interação que une internet, realidade aumentada e inteligência artificial. Você já conhece algo muito semelhante: o mundo dos games, uma indústria que hoje é maior que a soma de Hollywood com Superbowl.

Há uma tendência de subestimar a indústria dos games, tratar como coisa de molecada. Mas estamos diante de uma ferramenta psicológica poderosíssima.

Os games surgiram entre as duas Grandes Guerras Mundiais para treinamento de soldados. Eram uma forma de dessensibilização. Combatentes da I Guerra relataram dificuldades em matar inimigos, viam ali a humanidade do outro. Os games treinam a mente para anular esse sentimento.

Há um filme na Netflix, Hejter,  https://www.netflix.com/br/title/81270667 que mostra o uso dessa realidade dos games, a realidade Metaverso, na radicalização política de pessoas. Pessoas com vulnerabilidades emocionais e de convivência podem recorrer ao universo fantástico dos games por conforto psicológico. No filme, elas acabam sendo treinadas para matar e realmente matam.

Depois de ler isso, pode parecer que precisamos eliminar imediatamente o Metaverso e os games. Muita calma. Se você tem filhos, deve ter observado como eles mantiveram a relação com os amigos por meio dos games durante a pandemia.

Já há pesquisas mostrando que a saúde mental das crianças que conseguiram, via games, ter vivências virtuais com outras crianças da mesma idade foi muito mais preservada nesse período.

Cito outro exemplo, vindo da Holanda. Alguns professores tiveram a ideia de usar o código aberto do jogo Roblox para montar aulas de História e Geografia. Em vez de aprender só nos livros, filmes e aulas presenciais, os alunos tinham experiências de imersão.

Na prática, eram montados “mundos” que fossem a experiência histórica ou a região geográfica sobre a qual eles iriam estudar. Em vez de ouvir falar, tinham uma experiência de imersão, como se tivessem vivendo aquilo. O resultado de aprendizado foi muito positivo.

Não há dúvidas de que estamos diante de uma nova forma de poder, uma nova arena em que as pessoas podem desenvolver seus sonhos e personalidades.

No master Novo Poder, da Go New, projeto do qual participei com os amigos Anderson Godz, Francisco Milagres e Salim Ismail, há um norte econômico para pensar o novo mundo. Passamos da economia da escassez para a economia da abundância.

O mercado de luxo, por exemplo, com o qual eu iniciei este artigo, é todo pautado na lógica da escassez. Por que um sapato custa US$ 5 mil? Porque é único, escasso, símbolo de status.

Hoje, diversas marcas de luxo têm opções para uso virtual. Parece loucura, mas existe. O mesmo sapato que uma celebridade de Hollywood pagou US$ 5 mil pode ser usado por você no Instagram por US$ 30.

Não é o Metaverso, mas é a mesma lógica. A celebridade milionária vai comprar o sapato e tirar as fotos. Você vai baixar um aplicativo e pagar US$ 30 para aplicar nas suas fotos com inteligência artificial.

Não é uma simples montagem, é um sistema patenteado em que seus seguidores realmente pensarão que você usa aquele símbolo de status. Confira na loja do metaverso, . Sabendo de antemão que são montagens, a gente identifica. Sem saber, ou demoramos demais ou passamos batido.

O fato é que podemos montar uma vida completamente inventada e estamos mergulhando cada vez mais fundo nessas tecnologias. Isso significa que a garantia das liberdades individuais passa pela mediação dessas plataformas.

Há diversas formas de lidar com o poder que as “Empresas-Estado” têm sobre as pessoas. Na União Europeia, Estados Unidos, América Latina e outras regiões democráticas do mundo francamente ainda patinamos.

Países totalitários já decidiram que empresa nenhuma vai dominar os dados e manipulação psicológica dos cidadãos. Os governos totalitários é que vão.

A China, por exemplo, recentemente limitou o tempo que crianças e jovens podem passar jogando videogame. Houve duas rodadas de imposição de restrições, a segunda maior que a primeira.

E como vão controlar isso? Se pais e mães reclamam o tempo todo de não conseguir controlar o tempo dos filhos nos games, como o governo conseguiria? Consegue porque já tem a liderança mundial em inteligência artificial.

As democracias estão ainda penando para regulamentar diversas empresas que ficaram poderosíssimas por controlar as plataformas em que as pessoas se relacionam. São diversas empresas gigantescas das quais os cidadãos dependem para se relacionar, ter informações, fazer pagamentos e realizar atos da vida civil.

Imagine que um único grupo de pessoas fosse dono de todos esses sistemas e pudesse cruzar os dados. Ele sabe tudo o que você faz da vida e pode decidir, de forma automatizada, impedir que você faça algo ou recompensar você por alguma boa ação.

É o sistema de “score social” que já está em vigência na China. A inserção digital é completa e o controle dos dados também. Pessoas que contestarem publicamente o Partido Comunista Chinês podem gerar consequências para toda a família.

Não são consequências como as que estamos acostumados, mas impedimentos práticos na vida. Alguém com baixo “score social” pode ser impedido de comprar passagens de trem e avião. Se um parente seu criticar o Partido Comunista Chinês, é um risco que você corre.

O “score social” também determina quem estuda nas melhores escolas, tem oportunidade de disputar os melhores empregos e as melhores moradias.

Por outro lado, pessoas que fazem boas ações são recompensadas automaticamente. O sistema domina todas suas interações para a vida cotidiana. Quem cuida dos pais idosos, doa sangue e recicla lixo, por exemplo, tem favorecimento e descontos em serviços.

É uma cultura completamente diferente da nossa, a brasileira. Parece assustador que alguém controle todos os nossos passos e resolva nos boicotar ou recompensar conforme seguimos regras ditadas.

Precisamos saber que hoje isso é possível. Nas democracias ainda patinamos sobre como regulamentar esse poder. Não há uma centralização, há diversas empresas que se comportam de maneiras diferentes. Algumas delas são mais poderosas que governos.

Enquanto quebramos a cabeça para regulamentar, a tecnologia só avança. Estamos cada vez mais inseridos e dependentes desse universo mediado por algoritmos.

Como resolver a questão ainda é incerto. Se demoramos demais para impor regras, podemos ser engolidos por poderes que desconhecemos. Se nos precipitamos na regulamentação, ela pode ser feita à revelia de princípios democráticos.

A questão que resta a cada um de nós é como defender nossas liberdades individuais neste contexto. Culturas autoritárias já resolveram suas regras. Nós ainda não. Uma precipitação na regulamentação pode nos jogar para o campo autoritário. São decisões desafiadoras.

Cada vez mais temos de ter clareza sobre nossos princípios e o que preserva nossa individualidade e saúde mental. A liberdade econômica também é central nessa equação. Sem ela, não é factível manter a saúde mental para garantir liberdades individuais.

Mais uma vez não tenho respostas, só muitas perguntas. É tentador resolver tudo de uma vez, mas a única solução comprovada já existente seria importar o modelo chinês de controle. Quem controlaria?

A tecnologia é sedutora. A possibilidade de uma vida inventada, com menos ônus para grandes emoções e status é uma tentação quase irresistível. Nosso desafio é viver nesse mundo sem abrir mão da liberdade.