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Alex Catharino

Sobre Alex Catharino

Vice-Presidente Executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP). Historiador, editor e professor de Filosofia Política. Maior especialista brasileiro na vida e obra de Russell Kirk, além de grande estudioso do conservadorismo e do liberalismo. É membro da Edmund Burke Society, da T. S. Eliot Society e da Philadelphia Society, além de pesquisador residente do Russell Kirk Center, nos EUA.

Democracia e Liberdades

Em um momento no qual muitos formadores de opinião, além de políticos e magistrados, tomam a democracia como um fim em si mesmo, e não como um simples meio para a troca pacífica dos governantes, torna-se necessário reafirmar que a verdadeira finalidade da política é o bem comum da sociedade, que deve se manifestar por intermédio da adesão aos princípios de Ordem, Liberdade e Justiça; pela promoção dos direitos inalienáveis da pessoa à vida desde a concepção, à autonomia individual dentro dos limites da lei, e à manutenção da propriedade privada; pela instauração do Estado de Direito; e, finalmente, pela vigência da economia de livre mercado. Na defesa de tais princípios, direitos e instituições, o estabelecimento do sistema representativo democrático pode ser um instrumento de extrema importância, desde que a democracia não sucumba ao fenômeno da “tirania da maioria”, tal como descrito, em 1830, pelo pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), em sua clássica obra A Democracia na América.

O cerne do problema das concepções e práticas totalitárias da democracia, propostas pelos ideólogos e pelos militantes esquerdistas, que busca eliminar a pluralidade social em nome da “tirania da maioria”, é o conflito entre noções distintas de liberdade. Ao fazer uma crítica, de modo indireto, às errôneas noções do democratismo propostas pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e adotadas pelos jacobinos, durante a Revolução Francesa de 1789, o pensador e ativista político suíço Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), no seu famoso discurso “A Liberdade dos Antigos Comparada à Liberdade dos Modernos”, proferido, em 1819, no l’Athénée royal de Paris, defendeu que, enquanto os antigos gregos e romanos entendiam que um cidadão era livre na medida em que tinha o direito à participação direta do corpo político em assembleias populares, nas quais eram deliberadas o estabelecimento das normas legais e os rumos da ação comunitária, os modernos compreendem a liberdade como sendo a autonomia dos indivíduos em relação ao poder de intervenção do Estado na esfera privada dos membros da sociedade.

Tal distinção entre essas duas visões diversas acerca da liberdade influenciou, profundamente, as reflexões de Alexis de Tocqueville, bem como inúmeros outros teóricos liberais ou conservadores. Mesmo tendo sido a versão mais influente da diferenciação entre os dois tipos de liberdade, a tese de Benjamin Constant não era inovadora, pois foi discutida, anteriormente, nos escritos de outros pensadores. A mesma temática foi discutida pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), em 1651, no Leviatã; pelo jurista, historiador e filósofo francês Montesquieu (1689-1755), em 1748, em O Espírito das Leis; e pelo jurista e filósofo prussiano Wilhelm von Humboldt (1767-1835), em 1792, em Os limites da ação do Estado. Em sua análise pioneira, Hobbes afirmou que “a liberdade à qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos, assim como nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política, não é a liberdade dos indivíduos, mas a liberdade do Estado”.

A mesma questão foi apresentada, mais recentemente, no livro A Constituição da Liberdade, de 1960, pelo economista, jurista e filósofo austríaco F. A. Hayek (1899-1992), quando o ilustre pensador liberal distinguiu a “liberdade política”, entendida como participação democrática, da “liberdade individual”, definida como autonomia do indivíduo, de modo que a primeira equivale à concepção antiga, enquanto a segunda à moderna. Todavia, diferentemente do que propõem os liberais em sua adesão à liberdade individual e os socialistas em sua crença na liberdade política, os conservadores entendem que há uma necessidade de equilíbrio entre as duas concepções, além de defenderem a importância da chamada “liberdade interior”, tal como apresentada pela filosofia estoica, pela tradição cristã e pelas reflexões éticas do filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804), bem como uma limitação desses três tipos de liberdade pelos princípios da ordem, tanto em seu sentido interior da moral quanto no exterior da política e da justiça, nos aspectos comutativo e distributivo.

De acordo com o filósofo, historiador e literato americano Russell Kirk (1918-1994), em 1993, no livro A Política da Prudência, “o conservador procura limitar e equilibrar o poder político, de modo que a anarquia ou a tirania não tenham chances de surgir”, tendo mais adiante ressaltado que “restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos, um cumprimento adequado das leis, a velha e intricada rede de restrições sobre a vontade e o apetite – são aprovados pelo conservador como instrumentos da liberdade e da ordem”, para, finalmente, apresentar a máxima segundo a qual “um governo justo mantém uma tensão saudável entre as pretensões da autoridade e as pretensões da liberdade”.

A Democracia dos Antigos e as Democracias dos Modernos

No atual contexto político brasileiro, muitas pessoas, incluindo parlamentares e autoridades do Executivo ou do Judiciário, parecem acreditar que a democracia é um fim em si mesmo. Em face dessa alarmante postura, torna-se necessário reafirmar, constantemente, que o regime democrático é apenas um meio para garantir a necessária mudança pacífica dos governantes. Ademais, é fundamental ressaltar que uma legítima democracia só pode subsistir dentro dos limites impostos pelo aparato legal do Estado de Direito, que, além de ser algo muito distinto do arbítrio dos magistrados, pressupõe a garantia dos invioláveis direitos individuais, dentre os quais prefigura a livre expressão de ideias, mesmo aquelas que possam ser tachadas de antidemocráticas.

Além dessa perigosa confusão entre os meios e as finalidades do regime democrático, outro grande problema daqueles que se colocaram na posição de guardiões da democracia parece ser um profundo desconhecimento do que foi a democracia em sua antiga experiência grega, bem como dos usos do termo pelos modernos para se referir a modelos para tomada de decisões políticas distintos, e até mesmo conflitantes. Existem diferenças abissais entre a democracia antiga grega, por um lado, e, por outro, as modernas democracias liberais, que, por sua vez, não devem ser confundidas, em hipótese alguma, com as chamadas democracias populares vigentes em países sob o jugo de regimes socialistas.

De acordo com a denominada “Teoria Clássica das Três Formas de Governo”, apresentada pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), a “Democracia” seria o governo de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, distinguindo-se tanto da “Monarquia”, que é sustentada pela autoridade de um único homem, quanto da “Aristocracia”, na qual os rumos da comunidade política são guiados por uma parcela significativa dos melhores cidadãos. Na teoria aristotélica, cada uma dessas três formas ideais tem uma forma degenerada equivalente, sendo essas, respectivamente, a “Demagogia”, a “Oligarquia” e a “Tirania”.

Enquanto forma de governo concreta, a democracia teve uma duração relativamente curta quando comparada aos regimes monárquicos e aristocráticos. Historicamente, tal regime político surgiu no século VI a.C., em Atenas, tendo sido seu apogeu no século V a.C., quando esteve vigente em diversas cidades gregas. Contudo, devido à corrupção dos demagogos e do povo, ela entrou em declínio no século IV a.C. e foi substituída por diferentes governos monárquicos, tirânicos, aristocráticos ou oligárquicos. Contemporâneo da decadência das experiências democráticas gregas, o filósofo Platão (427-348 a.C.) alertou que esse regime estava fadado à ruína, pois nele os sábios nunca teriam sucesso na empreitada de instigar as pessoas comuns a serem virtuosas, visto que as massas sempre agem segundo as paixões.

Na modernidade, os ideais democráticos ressurgiram inspirados em dois eventos históricos específicos, que deram origem a modelos políticos distintos. O primeiro deles foi a democracia liberal, decorrente da bem-sucedida experiência instaurada nos Estados Unidos da América, a partir da independência dessa nação, em 4 de julho de 1776, e do estabelecimento, em 17 de setembro de 1787, do governo constitucional, que teve no estadista americano James Madison (1751-1836) seu principal arauto e no pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) seu melhor analista.

O segundo tipo encontra suas origens do desastroso e violento processo revolucionário, inspirado nas concepções ideológicas tanto racionalistas dos filósofos iluministas quanto sentimentalistas, coletivistas e igualitaristas do pensador suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que eclodiu, a partir de 14 de julho de 1789, na França tendo sido duramente criticado pelo estadista e pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797), precursor do conservadorismo, sendo este modelo a chamada democracia popular, vigente, em nossos dias, nos países com tendências socialistas, que se caracterizam por desrespeitar os ditames éticos das liberdades individuais, os princípios jurídicos do Estado de Direitos e as práticas econômicas do livre mercado.

Infelizmente, o que muitos dos defensores do regime democrático em nosso país desejam não é a manutenção dos princípios da ordem, da liberdade e da justiça, mas a submissão ao arbítrio dos donos do poder e dos manipuladores das paixões da massa. Tal espetáculo dantesco não é uma verdadeira democracia, e sim apenas a nefasta ideologia do democratismo. Conforme alertou Russell Kirk (1918-1994), “todas as ideologias, até mesmo o democratismo, levam os tolos à imoderação – e logo à servidão. O que o ideólogo-mestre busca é o poder, não a liberdade”.

Aborto, Conservadorismo e Democracia

Em seu famoso livro A Mentalidade Conservadora, Russell Kirk (1918-1994) elencou, como primeiro cânone do conservadorismo, a “crença em uma ordem transcendente, ou corpo de leis naturais, que rege a sociedade, bem como a consciência”. A partir dessa premissa, defendeu que “problemas políticos, no fundo, são problemas morais e religiosos”. Finalmente, concluiu que “a verdadeira política é a arte de perceber e aplicar a Justiça, que deve preponderar em uma comunidade de almas”.

Amparada nas instituições do Estado de Direito e da economia de livre mercado, uma sociedade democrática, de acordo com os conservadores, deve promover os princípios da Ordem, da Liberdade e da Justiça como meios adequados para proteger os direitos humanos fundamentais à vida, à autonomia e à propriedade privada. Nesse sentido, a defesa do aborto como um direito é contrária ao respeito inalienável à vida e à dignidade da pessoa humana.

Na encíclica Centesimus Annus (1991), o Papa São João Paulo II (1920-2005) alertou que, “se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções políticas podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder”, tendo acrescentado que “uma democracia sem valores se converte facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”. O mesmo tipo de crítica ao “risco da aliança entre democracia e relativismo ético” foi denunciada pelo mesmo romano pontífice, na encíclica Veritatis Splendor (1993), ao ressaltar que tal conjunção “tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade”. Por fim, na encíclica Veritatis Splendor (1995), ao tratar, especificamente, do problema da noção de autonomia absoluta, que legitima a inaceitável prática do aborto, em sociedades democráticas, São João Paulo II afirmou que:

O primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte – mesmo que seja maioritária – da população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: O próprio “direito” deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Desse modo, e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a “casa comum”, onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.

Em outra passagem do mesmo documento pontifício, temos a advertência de que “reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros”, ao que João Paulo II concluiu que “isto é a morte da verdadeira liberdade”. Nessa mesma linha, em um dos capítulos do livro A Política da Prudência, encontramos a ressalva de Russell Kirk, segundo a qual “a defesa doutrinária da contracepção e do aborto pelos progressistas é uma prova do desejo de morte dominante”.

Infelizmente, ao ignorar tais princípios, a atual gestão federal anunciou, no dia 17 de janeiro de 2023, em nota conjunta à imprensa do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Saúde, do Ministério das Mulheres e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania o desligamento do Brasil do Consenso de Genebra, cujo documento firmado por diferentes países, além de reafirmar que “todos são iguais perante a lei” e que “os direitos das mulheres são inalienáveis, integrais e parte indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” defende que, “em caso algum deve o aborto ser promovido como método de planejamento familiar”, além de acentuar a necessidade de proteção do nascituro e ressaltar que “não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional da parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

Tal decisão equivocada do governo federal é um retrocesso na defesa da vida e da família, que, dentro da legalidade do Estado de Direito e do processo democrático, precisa ser combatida, não apenas por conservadores e/ou cristãos. Não é possível termos uma sociedade livre, próspera e justa sem defendermos o direito inalienável à vida, especialmente das crianças ainda não nascidas. Opor-se ao aborto é um dever de todos que defendem os princípios do verdadeiro conservadorismo.

Democracia e Cristianismo

Alguns defensores do regime democrático costumam recorrer ao ditado em latim “vox populi, vox Dei” [A voz do povo, a voz de Deus]. No entanto, o mais antigo registro dessa máxima se encontra em uma carta, do ano de 798, enviada para Carlos Magno (742-814) por Alcuíno de York (735-804), na qual o monge inglês afirmou que: “não se deve ouvir aqueles que costumam dizer: ‘A voz do povo, a voz de Deus’, pois o tumulto das pessoas comuns está sempre perto da loucura”. Em grande parte, a visão negativa de muitos cristãos acerca dos riscos da democracia repousa no fato de a massa ter escolhido libertar o criminoso Barrabás no lugar de Jesus, o que acarretou a crucificação de um inocente.

No entanto, as diversas igrejas cristãs, em suas advertências sobre os riscos inerentes ao regime democrático, também rejeitam as diferentes formas de governos autoritários, ao reconhecerem que tiranias, ditaduras ou modelos totalitários são incompatíveis com a correta visão sobre a natureza humana e os ditames da boa ordem social. Uma das melhores explanações sobre a apropriada relação entre democracia e cristianismo foi apresentada pelo saudoso Papa São João Paulo II, em vários documentos de seu magistério pontifício.

O grande Romano Pontífice, na encíclica “Centesimus Annus”, promulgada em 1º de maio de 1991, assim expressou a aprovação católica ao regime democrático:

“A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou de objetivos ideológicos” (CA §46).

Algumas décadas antes da promulgação da “Centesimus Annus”, na “Radiomensagem Natalina” proferida em 25 de dezembro de 1944, encontramos uma importante advertência do Papa Pio XII (1876-1958), que reconheceu a existência na modernidade de dois tipos de governos democráticos. O primeiro modelo, segundo o Romano Pontífice, transforma os integrantes da sociedade numa multidão amorfa, numa massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada por um governante ou por um partido político. O segundo tipo entende o povo como um conjunto de pessoas, cada uma das quais, no próprio lugar e a seu modo, apta a formar a própria opinião a respeito da coisa pública e da liberdade para exprimir a própria sensibilidade política e fazê-la valer em maneira consoante com o bem-comum. O primeiro tipo é a chamada democracia popular, vigente em diferentes países socialistas, como China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e Venezuela, dentre outros. O segundo tipo é o modelo anglo-saxão de democracia liberal.

De acordo com essas perspectivas defendidas pela Igreja Católica, não devemos aceitar qualquer forma de democracia. Em uma democracia liberal, mais importante do que a escolha democrática dos governantes pelos membros de uma comunidade política, a legitimidade desse modelo se fundamenta nas possibilidades tanto de mudar pacificamente os grupos dirigentes quanto de fiscalizar os atos administrativos e fiscais da gestão pública. O endosso do Papa João Paulo II ao modelo democrático anglo-saxão ficou explícito nas encíclicas “Veritatis Splendor”, de 6 de agosto de 1993, e em “Evangelium Vitae”, (1995), obras nas quais são defendidas as noções de lei civil como continuidade da lei moral e do Estado como protetor e promotor dos direitos individuais (VS §101 / EV §71), bem como na exigência da transparência administrativa por parte dos governantes (VS §101). Em uma passagem da já citada “Centesimus Annus”, o Romano Pontífice afirmou que:

“Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da ‘subjetividade’ da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade” (CA §46).

Em última instância, a verdade moral, o Estado de Direito e a liberdade econômica devem ser os fundamentos da democracia representativa. Existem limites éticos ao processo democrático que devem ser respeitados. Algo que seja, intrinsecamente, falso, errado, mau ou desprezível não poderá ser mudado pela vontade da maioria. Na encíclica “Evangelium Vitae”, o papa João Paulo II afirmou que:

“Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congênitos que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover. Importa retomar, neste sentido, os ‘elementos fundamentais da visão entre lei civil e lei moral’, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições jurídicas da humanidade” (EV §71).

Tal como defendido pela tradição conservadora desde seus primórdios, com Edmund Burke (1729-1797), até nossos dias, com Russell Kirk (1918-1994) e Sir Roger Scruton (1944-2020), a chamada Doutrina Social da Igreja compreende que uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito, que, por sua vez, não pode ser mantido sem realmente assegurar a efetividade da lei, cujos fundamentos se encontram na moral. Infelizmente, em nosso país, muitos que alegam defender o regime democrático parecem negligenciar esses princípios jurídicos e morais essenciais para a vigência da democracia.

O Regime Democrático não é um Fim, mas um Meio

Uma das citações repetidas com maior frequência pelos defensores do regime democrático é a sentença do estadista conservador inglês Winston Churchill (1874-1965), segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas”. No entanto, os tendenciosos defensores acríticos da democracia tendem a negligenciar o caráter mais amplo dessa reflexão do grande líder britânico, que, em discurso proferido em 11 de novembro de 1947, afirmou o seguinte:

“Muitas formas de governo foram tentadas e serão tentadas neste mundo de pecado e aflição. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou onisciente. De fato, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos”.

O ponto nessa fala de Winston Churchill que deve ser enfatizado por um conservador, além daquele que engloba a natureza pecaminosa de nosso mundo, é o da imperfectibilidade de todos os regimes políticos. Encontramos, na visão churchilliana, um aspecto distinto do conservadorismo, reflexo das concepções teológicas de Santo Agostinho (354-430), que se manifestou nas reflexões teóricas ou na prática política de eminentes conservadores, dentre os quais merecem destaque os nomes do irlandês Edmund Burke (1729-1797), do americano John Adams (1735-1826), do brasileiro Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), do inglês Benjamin de Disraeli (1804-1881) e, mais recentemente, tanto dos americanos Ronald Reagan (1911-2004) e Russell Kirk (1918-1994) quanto dos ingleses Margaret Thatcher (1925-2013) e Roger Scruton (1944-2020), dentre outros.

Todos esses pensadores ou estadistas, assim como Winston Churchill, aceitaram os aspectos positivos do sistema representativo democrático liberal enquanto um “meio” pacífico de mudança política, entretanto, todos rejeitaram a ideologia do democratismo, que adota a falsa noção da democracia como sendo um “fim” em si mesmo. Fundado nas propostas igualitaristas apresentadas nos escritos do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o democratismo é uma noção radical que serviu de inspiração para as errôneas concepções democráticas adotadas pelos jacobinos durante a Revolução Francesa, por liberais revolucionários e por diferentes tipos de socialistas.

De certo modo, o conflito entre duas concepções distintas acerca do regime democrático foi apresentado, em 1924, no livro Democracia e Liderança, pelo filósofo político e crítico literário americano Irving Babbitt (1865-1933), ao ter contraposto a “imaginação idílica” rousseauniana, fundamento do democratismo, à “imaginação moral” burkeana, que está de acordo com as práticas da representação política adotadas pelas democracias liberais modernas. A noção igualitarista do democratismo apresenta a democracia como um fim em si mesmo, que servirá como fármaco para as mazelas da sociedade, enquanto a concepção liberal defendida também pelos conservadores entende o regime democrático como um mero processo de escolha dos governantes, que precisa estar submetido à defesa dos direitos individuais, do Estado de Direito e da economia de mercado.

Ao tratar do problema do democratismo nos Estados Unidos da América, no capítulo 18, “Governo Popular e Mentes Imoderadas”, do famoso livro A Política da Prudência, de 1993, o conservador Russell Kirk advertiu que:

“Todas as ideologias, até mesmo o democratismo, levam os tolos à imoderação – e logo à servidão. O que o ideólogo-mestre busca é o poder, não a liberdade. Nas palavras de Edmund Burke, ‘Homens imoderados nunca podem ser livres. As paixões lhes forjam os grilhões’. A ideologia é fanatismo político e irrealidade. Longe de preservar nossa liberdade, a ideologia do democratismo já enfraqueceu a estrutura constitucional norte-americana, e fará ainda mais danos à causa da liberdade ordenada, a não ser que nós, norte-americanos, reconheçamos o perigo e renovemos os antigos limites ao impulso igualitarista”.

O democratismo representa uma ameaça à Ordem, à Justiça e à Liberdade em proporções semelhantes às das ideologias totalitárias. Um verdadeiro conservador deve rechaçar qualquer postura ideológica, até mesmo uma defesa imoderada da democracia.