Nesta terceira década do século 21 o mundo está imerso numa terceira grande guerra. E não é possível escapar dela.
A guerra mundial atual é uma guerra fria. Guerra fria é guerra. Estamos numa segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais – e não apenas uma guerra EUA x China, como se fosse um repeteco da primeira guerra fria EUA (e Ocidente) x URSS.
A guerra atual é uma netwar: não apenas uma ciberguerra, mas uma guerra social, que atravessa todas as fronteiras e divide as sociedades nacionais.
A netwar já é a terceira guerra mundial – que também não é um repeteco da primeira e da segunda guerras quentes mundiais.
Teremos ainda muitos episódios de guerras quentes regionais, mas o evento mais importante é a guerra global que já se instalou. É por isso, por exemplo, que a guerra de Gaza não é em Gaza, mas no mundo todo. Em Gaza, Israel vai vencendo. No mundo, o Hamas já venceu.
As guerras quentes regionais cumprem um papel alimentador e detonador da netwar global. Assim ocorre com a guerra do Irã (integrante do eixo autocrático) contra Israel (que era uma democracia liberal), seja via uma dúzia de grupos terroristas (Hamas, Jihad Islâmica, Hezbollah, Houthis etc.), seja, agora, diretamente. Em todas as sociedades ditaduras e democracias parasitadas por governos populistas se levantam contra Israel (e, mais do que isso, espalham o antissemitismo).
Assim ocorre com a guerra da Rússia (integrante do eixo autocrático e na vanguarda da netwar) contra a Ucrânia, na verdade, contra as democracias europeias, ameaçando imediatamente a Moldávia, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Finlândia, a Geórgia e até a Suécia e a Polônia. Novamente, se colocam a favor da Rússia as ditaduras e setores das democracias parasitadas por governos populistas.
Assim também ocorrerá, em breve, na guerra da China (integrante do eixo autocrático) contra Taiwan (uma democracia liberal).
A polarização e a consequente divisão que a netwar instala nas sociedades de todos os países é parte da netwar global que, para todos os efeitos práticos, é uma campanha de exterminação das cerca de três dezenas de democracias liberais que ainda restam no mundo. Além disso, uma vez entrando em guerra quente regional, atacadas por algum integrante do eixo autocrático, as democracias liberais decaem. Segundo o V-Dem, depois do ataque terrorista e do início da guerra contra o Hamas, Israel deixou de ser uma democracia liberal e passou a ser uma democracia apenas eleitoral (um regime não-liberal). A Ucrânia deixou de ser uma democracia eleitoral e passou a ser uma autocracia eleitoral. O mesmo ocorrerá com Taiwan, quando a China começar a invadí-la.
Países com regimes democráticos não entram em guerra entre si. Mas uma vez atacados por países com regimes autocráticos, os países com regimes democráticos decaem: ou deixam de ser liberais ou, pior, passam a ser autocracias. Tudo isso acontece porque não é que países autocráticos façam guerra (entre si e contra países democráticos) e sim porque a guerra é a autocracia.
A guerra é o modo de ser da autocracia. Em outras palavras: o que chamamos de autocracia é um modo guerreiro de regulação de conflitos. Em geral há dificuldade de entender isso porque as pessoas acham que guerra é apenas guerra quente (com derramamento de sangue) e não veem que guerra fria também é guerra e que a política praticada como continuação da guerra por outros meios (na base do “nós contra eles”, como fazem todos os populismos, ditos de direita ou de esquerda) também é guerra. Não veem que guerra não é destruição violenta de inimigos e sim construção de inimigos, o que pode acontecer, inclusive, de forma não violenta.
As pessoas não veem que toda guerra é interna. Que o objetivo da guerra é instalar um estado de guerra que justifique a reorganização dos cosmos sociais para erigir padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação.
Como disse Larry Diamond (2020), ventos malignos (Ill Winds) estão soprando. E podem soprar ainda por muito tempo nesta terceira onda de autocratização que nos assola. Não há como se esconder deles.