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O “isentão” é, antes de tudo, um forte

Cursei jornalismo por uns dois anos. Foi minha primeira faculdade, mas abandonei-a, dentre outros motivos, por não conseguir me adaptar à urgência da notícia. 

Sou paradoxalmente ansiosa e contemplativa, apressada e reflexiva. Minha natureza, por assim dizer, “ruminante”, para usar uma expressão de Nietzsche, empurrou-me para a Filosofia. Por ironia do destino, porém, mesmo não sendo jornalista, cá estou, atuando nesse meio.

Em 2015, comecei a sair um pouco da bolha universitária. Há dez anos dou a cara a bater no debate público, expondo minhas opiniões e análises políticas em diversos think tanks, portais e jornais. O que prejudicou, inclusive, minha carreira acadêmica, que estou tentando retomar.

Fui a primeira mulher nordestina a assinar, toda segunda feira, a página A2 da Folha de S.Paulo. Consegui romper a barreira regional e de gênero sem apadrinhamento, sem ceder um milímetro nas minhas convicções e princípios, sem precisar de qualquer tipo de cota.

Acabei abrindo mão desse espaço por ingenuidade. Em um desvio de rota, achei que fazia algum sentido para mim a política partidária. Não fazia. Minha relação com a política é uma relação externa, de análise. 

Não sou militante política, não sou jornalista militante. Sou simplesmente alguém inclinada a tentar compreender o mundo em que vivo, tanto em seu aspecto metafísico/ontológico quanto em seu aspecto social/político.

A incursão frustrada na política partidária deu-me, porém, algo de inestimável valor: a experiência da desilusão. 

Perder as ilusões em relação à política é um rito de passagem fundamental para começar a refletir bem sobre esse campo do saber. Quando me tornei colunista aqui, no portal O Antagonista, eu já havia passado por esse rito.

Isso não significa que eu não tenha ideais. Tenho-os sim, mas não deposito em nenhum político ou agrupamento político a esperança de realizá-los. 

O ideal existe para mim como ponto de referência, de parâmetro para a apreciação das formas sociais efetivas, não como crença passível de manipulação por demagogos astuciosos e cínicos como o são quase todos os profissionais da política.

Não é razoável, portanto, que eu ou qualquer outro colunista minimamente isento em suas análises seja objeto não apenas de crítica, mas de ódio, xingamentos e difamação justamente pelo quesito da isenção.

“Qual é o problema de ser isentão?”, perguntou o colega Eduardo Affonso, em sua crônica no jornal O Globo. 

O aumentativo pode conotar admiração ou desprezo, mas ´isento´ quer dizer liberto, desembaraçado, imune. Limpo, justo, desapaixonado. Imparcial. Sensato. Neutro”, escreve Affonso, desnudando também, em seu texto, a irracionalidade e a intolerância dos leitores que exigem que colunistas façam eco às suas paixões políticas sob pena de serem defenestrados.

Alguém poderá retorquir fazendo notar que, por trás da pretendida isenção, há inevitavelmente uma tomada de posição.

De certa forma sim. Não diria, porém, uma posição política propriamente dita, mas certa tendência ou inclinação, que, de resto, está explícita naquilo mesmo que se defende e se escreve. Isso é diferente de tomar partido, de se colocar a serviço de um partido ou de servir aos próprios interesses servindo a interesses escusos.

No meu caso específico, difícil não perceber, por tudo que já escrevi, que me insiro ideologicamente em um espectro que oscila do campo liberal-conservador à esquerda social-democrata, ou seja, tenho por campo político mais familiar a centro-direita, mas aceno favorável e complacentemente à centro- esquerda.

Uma legítima “isentona”, sentenciarão alguns. Que seja. No Brasil de hoje, o “isentão” é antes de tudo um forte.

O “isentão” digno desse nome é tarimbado na lida com a pressão dos extremos alucinados da política hodierna, já declinou vantagens pessoais que poderiam advir do adesismo descarado a um dos polos ideológicos em contenda e é dotado de uma sobriedade forjada no ato de resistir à gritaria histérica dos que exigem o sacrifício da razão no altar do fanatismo.

O “isentão” é a resistência do indivíduo autônomo, do sujeito pensante e do espírito livre, em meio à rebelião das massas.

Entendo que nosso país vive momento delicadíssimo, de muita tensão e turbulência. Estou consciente de que o discurso de defesa da democracia tem servido de fachada para o avanço das práticas mais autoritárias. 

Como, porém, tomar um lado nessa briga se aqueles que acusam as práticas autoritárias de uns são os mesmos que apoiam as práticas autoritárias de outros? Se não há lado certo, por que se juntar a um dos lados errados em vez de apontar o erro de ambos?

Tenho recebido ataques e xingamentos de alguns seguidores nas redes sociais por supostamente estar ao lado do STF, visto que não estou berrando por aí com os bolsonaristas pelo impeachment de Alexandre de Moraes. Não consigo, porém, defender ardorosamente uma bandeira política quando percebo claramente a sua instrumentalização por pessoas torpes mal-intencionadas.

Denunciar os abusos do ministro Moraes é importante e eu mesma não me furtei a isso; mas o problema do Brasil não é apenas Alexandre de Moraes. 

Por que bolsonaristas esbravejam apenas contra ele e fazem vista grossa para os atos abusivos e pouco republicanos de outros ministros como Gilmar Mendes ou Dias Toffoli?

Ora, retrucarão alguns, os bolsonaristas querem o fim do STF como um todo. Para isso invadiram a Praça dos Três Poderes e um bolsonarista até se explodiu em frente ao prédio do Supremo Tribunal. 

Aí é que está o problema. Não querem reformar a instituição por meios legítimos, querem destruí-la. Não se incomodam com o poder centralizado, incomodam-se com o poder centralizado nas mãos daqueles que julgam ser seus inimigos.

O problema do Brasil não é apenas o autoritarismo de Moraes, mas a falta de legitimidade de todo o sistema político; é a crise de legitimidade que existe em cada um dos três poderes porque aqueles que lá estão não honram suas funções, não atuam com lisura, não têm probidade, não são íntegros.

Ocorre que, nessa democracia disfuncional em que vivemos, ainda não estamos sob uma ditadura escancarada. O povo vota, escolhe seus representantes e o brasileiro tem insistido em escolher mal, muito mal.

A massa esquerdista que gritava Lula livre na porta da cadeia e os parlamentares lulistas que protestaram durante sessões do Congresso por ocasião da sua prisão atrasam tanto o Brasil quanto a massa direitista que invadiu a praça dos três poderes e os parlamentares que ocuparam recentemente as casas legislativas com o objetivo de livrar Bolsonaro da prisão.

O brasileiro comum politizou a sua vida privada permitindo que suas relações pessoais fossem envenenadas pelo fanatismo político enquanto aqueles por quem deterioram os seus sagrados laços de família sequer partilham dos seus ideais; são meros profissionais da política cujo ofício é alardear retoricamente como sendo de interesse nacional ou comum aquilo que é interesse pessoal ou grupal.

O Brasil precisa romper o ciclo nefasto da corrupção, do patrimonialismo e do populismo. Para tanto, precisamos exigir dos nossos representantes lisura, seriedade, coerência. Se continuarmos servindo apenas de massa de manobra conduzida ao bel prazer dos demagogos de ocasião ou dos sofistas inveterados, retroalimentaremos a mesma política que já sabemos perniciosa.

Ao cidadão cabe sempre o ceticismo quanto àqueles que exercem o poder ou detêm carisma capaz de atrair multidões. Em relação aos políticos, nossa atitude deveria ser sempre a fiscalização constante, a cobrança séria e não a bajulação que tapa os olhos para os erros em nome de uma suposta ideologia comum.

O fanatismo político nos trouxe até aqui. A prudência e a escolha criteriosa do eleitor “isentão” em 2026 pode ser o primeiro passo para nos retirar dessa lama.