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Desenvolvimento, capital social e democracia

O autor não conseguiu encontrar o local onde este texto foi originalmente publicado. Nem a data. Presume-se que deve ter sido escrito entre 2005 e 2008. 

1 – Em geral não se leva muito em conta que o desenvolvimento econômico deve ser interpretado como prosperidade econômica, medida como aumento da riqueza, não em termos absolutos ou médios, mas em termos do aumento do acesso das pessoas à propriedade produtiva e a melhoria das suas condições (e, portanto, o aumento de suas chances) de sucesso na realização dessa propriedade. Prosperidade econômica ainda é a melhor expressão do desenvolvimento econômico de uma sociedade e deve significar que mais e mais pessoas estão podendo não simplesmente obter renda, senão também gerá-la diversificadamente. Implica, portanto, para além da distribuição da renda, desconcentração da riqueza.

2 – Se a concentração da renda no Brasil é absurda (estamos entre os países mais injustos do mundo em termos de desigualdade de renda), também é injusta a distribuição da riqueza. Com efeito, se a maior parte (cerca de 70%, talvez) do faturamento bruto de todas as empresas fica nas mãos de uma pequena parcela (menos de 2%) das empresas, então estamos diante de uma monumental concentração de riqueza. Isso não é captado diretamente por indicadores de desigualdade de renda e nem por indicadores de aumento geral de riqueza (como o PIB).

3 – Há quem ache que tudo vai se resolver com a criação geral de mais riqueza e com a distribuição da renda. Há quem ache que se distribuirmos a renda então isso vai levar à distribuição da riqueza. Mas talvez tenha que haver alguma desconcentração de riqueza para que haja uma distribuição da renda. Em outras palavras, distribuir renda não é uma tarefa fácil enquanto a outra variável econômica que comparece na equação do desenvolvimento – a riqueza – permanecer tão concentrada. Ora, enquanto isso, enquanto a riqueza permanecer tão concentrada, pode até haver crescimento econômico, mas não haverá desenvolvimento econômico porque não haverá prosperidade econômica, a qual pressupõe diversidade econômica co-implicada no aumento da circulação de mercadorias (inclusive de moeda).

4 – Isso para não falar de outros fatores – extra-econômicos – que também comparecem na equação do desenvolvimento, como, por exemplo, o conhecimento e o poder. Ou seja, isso para não falar do desenvolvimento em um sentido mais sistêmico e global, para além do desenvolvimento econômico.

5 – Nos últimos anos tem se reforçado a hipótese de que o fenômeno de mudança que interpretamos como desenvolvimento econômico não é, na verdade, tão estritamente econômico quanto se pensa. Aparece como desenvolvimento econômico em virtude de interpretação fragmentária de um fenômeno que é global, envolvendo, para além da renda e da própria riqueza (ou seja, das internalidades), outras variáveis como conhecimento, poder, meio ambiente (que são consideradas externalidades).

6 – Mas mesmo para que haja o tal desenvolvimento econômico, interpretado como prosperidade econômica, é necessário, para além do crescimento econômico, que mais pessoas, individual e coletivamente, consigam empreender mais e ter mais sucesso em seus empreendimentos. Ora, para isso é necessário que mais pessoas tenham mais conhecimento (um dos componentes, talvez o principal, do que se chama, metaforicamente, de “capital humano”) e que os ambientes sociais em que essas pessoas convivem sejam ambientes capazes de encorajá-las a empreender mais e a adquirir mais conhecimento para empreender melhor.

7 – Esse encorajamento é uma espécie de poder (um “poder” social, não caracteristicamente político) que passa das coletividades para os indivíduos. É como um campo de força que aciona (energiza) elementos nele imersos por indução (na acepção física – como na indução eletromagnética – e não lógica do conceito). Esse é o processo que foi chamado de empoderamento, o qual tem a ver não com o poder de mandar, ou seja, com a possibilidade e a capacidade de um indivíduo ou grupo de impor sua vontade a outros indivíduos em virtude de algum atributo diferencial (força, saber ou riqueza), institucionalizado ou não e sim com os padrões de convivência social, vale dizer, com a configuração da rede social existente. Quem empodera é a rede social (que pode, então, também em termos metafóricos, ser interpretada como um outro tipo de capital, o chamado “capital social”).

8 – O fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico não pode ocorrer isoladamente. É um aspecto de uma mudança que envolve mudanças em vários outros fatores além daqueles que são considerados como internalidades econômicas. A incompreensão desse processo complexo levou os pensadores econômicos a imaginar que seriam as mudanças na renda e na riqueza (ou, em geral, apenas na renda ou no produto) que levariam a mudanças nos outros fatores extra-econômicos. Estabeleceu-se, assim, um modelo linear e unívoco, que parte do econômico (= a causa) em direção a outros fatores considerados sociais – sócio-culturais, sócio-políticos, sócio-ambientais etc – (= os efeitos).

9 – Essa é a razão pela qual o que se chama de política social sempre foi visto como uma política de segunda classe, já que ela não trabalharia com a causa e sim com os efeitos e, dessarte, não poderia ser tão estratégica quanto a política econômica. Caberia à política social compensar as defasagens de inserção no processo de desenvolvimento, quando os processos intra-econômicos não foram, por alguma razão extra-econômica que atrapalha o funcionamento dos mecanismos de distribuição econômica, capazes de incorporar “automaticamente” os excluídos. Para esse pensamento, contudo, o remédio principal para a inclusão, a receita que vale de fato, é a econômica, pelo incremento da renda, em geral via salário, quer dizer como remuneração do trabalho (de alguém que foi empregado para realizar a propriedade produtiva de outrem, subordinado ao sonho alheio) e não como recompensa ao empreendedorismo (como apropriação de um sobrevalor gerado pelo trabalho de realizar a própria propriedade produtiva) como deveria inspirar a utopia da livre iniciativa capitalista.

10 – Segundo esse modelo, se queremos promover a desenvolvimento social, então temos que promover o desenvolvimento econômico. E como o desenvolvimento econômico é visto como o resultado mais ou menos automático do crescimento econômico, então tudo se resume a promover o crescimento econômico.

11 – Ocorre que as relações entre as diversas variáveis do desenvolvimento são plurívocas. Nesse sistema complexo, não-linear, os supostos efeitos retroagem sobre a imaginada causa e todos os fatores interagem entre si. Então, quando acontece o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico, é porque vários outros fenômenos inter-relacionados aconteceram também.

12 – Pode-se dizer que a renda permite acesso ao conhecimento necessário para a geração de mais renda (sem o que, por um lado, não pode existir prosperidade econô-mica). Como isso é muito plausível, as pessoas costumam imaginar que tudo depende, nas sociedades de consumo, de ter mais renda para ter mais acesso à educação (ou à capacitação). No entanto, temos aqui apenas uma parte da história. Pois é difícil imaginar que a renda auferida individualmente consiga construir ambientes sociais favoráveis ao sucesso dessa geração de renda (sem o que, por outro lado, também não pode existir prosperidade econômica). Em outras palavras, para realizar a propriedade produtiva é necessário, além do capital humano, um certo estoque ou fluxo de capital social. Porque quanto menor o capital social menos chances de sucesso os empreendimentos terão e, portanto, menor será o grau de realização distribuída da propriedade produtiva.

13 – Como capital social não pode ser comprado, é um bem público que não pode ser adquirido no mercado, ele tem que ser gerado. Gerar capital social – como se sabe, desde que Jane Jacobs inventou o conceito – é a mesma coisa que tramar redes sociais. Mas o incremento da renda per capita não é capaz, por si só, de aumentar a trama do tecido social. Em contrapartida, se aumentamos – por que meio for – a trama do tecido social, aumentam as chances de sucesso dos empreendimentos produtivos.

14 – Desse ponto de vista poder-se-ia inverter a sentença: se queremos promover o desenvolvimento econômico então temos que promover o desenvolvimento social. A inteligência mediana retrucará que, apenas invertendo a implicação simples (‘desenvolvimento econômico => desenvolvimento social’) que vige na cabeça da maioria dos economistas, policymakers e jornalistas na atualidade, não se resolve o problema. Estaríamos trocando uma relação linear, baseada em uma crença de causalidade unívoca, por outra também linear, igualmente incapaz de captar a complexidade do fenômeno. A objeção é verossimilhante: por algum motivo as pessoas têm a impressão de que a verdade está no meio (daí a popularidade dos dísticos “nem 8, nem 80”, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”) e gostam de evitar os extremos. Ademais, soa razoável dar o mesmo peso a todos os fatores do desenvolvimento, haja vista, como se argumentou acima, que o que interpretamos, fragmentariamente, como desenvolvimento econômico, é um aspecto de um fenômeno de mudança global mais complexa. De sorte que o mesmo deveria valer para o desenvolvimento social, ou seja, o que interpretamos como desenvolvimento social poderia ser um aspecto, captado pela percepção fragmentária, do fenômeno de mudança mais global (o desenvolvimento em termos sistêmicos).

15 – Entretanto, a mudança que queremos interpretar como desenvolvimento, mesmo em termos sistêmicos, é uma mudança que ocorre sempre na sociedade humana. Ou seja, é uma mudança social, nas relações concretas entre as pessoas que vivem em sociedade e não nas relações entre os elementos de um esquema abstrato que foi construído para explicar uma classe qualquer de fenômenos observados na sociedade, como, por exemplo, a “máquina econômica” inventada pelos economistas.

16 – Em outras palavras, desenvolvimento, seja o que for, é alguma coisa que acontece na sociedade humana. Isso significa que todo desenvolvimento é, sempre e antes de qualquer coisa, desenvolvimento social. Não pode haver nenhum tipo de desenvolvimento que não seja desenvolvimento social. Pois desenvolvimento é um conceito que se aplica a sociedades humanas e não a outros sistemas (de seres animados ou inanimados). Só metaforicamente pode-se falar de desenvolvimento de uma colônia de insetos, de um processo industrial ou de uma teoria.

17 – Pois bem. Existem evidências suficientes para corroborar a hipótese de que o desenvolvimento é um fenômeno próprio das redes sociais, é como se fosse um aprendizado dessas redes. Uma sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo a manter uma congruência dinâmica com o meio. Em outras palavras, uma sociedade se desenvolvendo significa uma rede social mudando com a mudança das circunstâncias, ou seja, realizando o processo de se tornar sustentável. Desse ponto de vista não há nenhuma diferença entre os termos ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’.

18 – Uma nova visão do desenvolvimento social que emerge da compreensão das redes sociais é uma (talvez a única) visão compatível com a noção de capital social. No principio está a rede. O que chamamos de ‘social’ refere-se à rede social. A configuração e a dinâmica de sua rede social é o que podem explicar, em um nível mais profundo, os fenômenos que acontecem em uma sociedade. Uma sociedade só é distinguível de outra porque sua rede social é diferente da rede social da outra sociedade. A identidade de uma sociedade pode ser compreendida, nesse nível de profundidade, por padrões de tecitura social e de fluxos recorrentes ou circuitos ativados. Embora a rede seja móvel, embora os fluxos que a percorrem sejam diferentes em cada instante, existem padrões, invariantes que são próprios daquela particular coletividade. O retrato desses padrões é a impressão digital de uma particular sociedade. Aquilo que permanece constante na configuração e na dinâmica de uma rede social é a “carteira de identidade” da particular sociedade onde essa rede foi observada.

19 – Todavia, assim como a teia da vida que liga os elementos de um ecossistema é invisível para os olhos, assim também ocorre com a teia social que estabelece as conexões entre as pessoas e os grupos em uma sociedade. São essas conexões que caracterizam os padrões de convivência social. Anisotropias criadas nesse tecido social, singularidades geradas nesse “espaço”, condicionam fluxos, constroem caminhos preferenciais para esses fluxos. Perturbações introduzidas nesse espaço vão percorrer o sistema seguindo caminhos construídos por repetição, pré-cursos que foram sulcados pelo transito diferencial de mensagens. O software modifica o hardware. A dinâmica da rede constrói sua configuração. Um caminho muito trilhado é um canal com mais capacidade. Redes de conversações acionadas com grande freqüência são como ruas que ligam bairros construídos em uma cidade. Tornam-se padrões invariantes na geografia urbana. O sistema que resulta dessas múltiplas anisotropias conforma a identidade de um espaço social, quer dizer, uma rede social particular, identificável.

20 – A analogia da rede social com a cidade tem muito poder heurístico. Mas é mais do que isso: as cidades – ou, em termos ainda mais genéricos, as localidades – são redes sócio-territoriais. As cidades são resultados de comportamento coletivo. Elas se auto-organizam, mesmo as que foram planejadas se reorganizam, tornando-se, todas, auto-planejadas, bottom up. Mas só podem fazer isso porque têm artérias, canais, circuitos ligando suas várias localidades (regiões administrativas, bairros, ruas e praças e outros equipamentos e casas). Por esses canais fluem as mensagens. Assim, dentre os múltiplos caminhos percorridos, afirmam-se como principais aqueles mais trafegados.

21 – Tal ocorre com a rede social que está por trás da rede urbana. Mais do que isso: tal só ocorre no espaço urbano (territorial) porque ocorre no espaço das conexões entre pessoas e grupos (social). Isso é a localidade do ponto de vista do desenvolvimento sustentável.

22 – Sustentabilidade é o que chamamos de desenvolvimento com base em um modelo regulacional da mudança, ou seja, um modelo que não é nem (apenas) transformacional, nem (apenas) variacional. Transformações e variações acontecem o tempo todo. Mas transformações não são unicamente o desdobramento de um projeto prefigurado, contido em germe, em um programa arquivado em um genoma. E variações não são o resultado da replicação imperfeita desse projeto diante da mudança totalmente aleatória das circunstâncias. A nova ordem implicada na mudança só pode emergir porque a transformação e a variação passam a ser reguladas. Essa nova ordem emerge quando há regulação da mudança. Quem regula a mudança, desse ponto de vista, é a rede social. Ela se adapta e conserva seus padrões de adaptação. Ela só consegue conservar a adaptação porque reconstrói (ou seja, muda) seus programas de adaptação a partir desse padrão (a identidade de uma rede social). Sustentabilidade, isto é, desse ponto de vista, desenvolvimento, só pode existir quando existe ordem emergente, quer dizer, auto-regulada.

23 – Novamente aqui é evocado um poderoso paralelo heurístico. Se em termos biológicos sustentabilidade é a mesma coisa que vida, em termos sociais sustentabilidade é a mesma coisa que desenvolvimento. A vida cessa quando se rompe a congruência entre o indivíduo e o meio, o que significa incapacidade de manter uma correspondência dinâmica com os outros elementos da rede que possibilite a autopoiese. O desenvolvimento (sustentável) ocorre a não ser enquanto exista auto-regulação social.

24 – Mas há ainda um outro paralelo heurístico. Assim como o processo de vida é análogo ao processo de conhecimento, o processo social – ou seja, o processo de desenvolvimento social de um ponto de vista regulacional (ou para uma teoria sistêmica do desenvolvimento, poder-se-ia dizer) – é também comparável ao processo de conhecimento. É assim que se pode então dizer que a sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Aprendendo o quê? Aprendendo a se auto-regular. Aprender, aqui, significa ser capaz de reconstruir seu programa de adaptação; ou seja, ser capaz de construir um outro (novo) programa a partir da (mesma) matriz de identidade, quer dizer, do mesmo padrão que caracteriza uma sociedade particular porque contém os invariantes da configuração e da dinâmica de sua rede social.

25 – Ocorre que uma sociedade particular capaz de fazer isso é sempre uma sociedade local. É por isso que se diz que todo desenvolvimento (sustentável) é local, porque todo bottom up é local, porque todos os conhecimentos tomados (a partir de baixo) são locais, quer dizer, são tomados com base em avaliações locais das circunstâncias mais amplas ou das condições mais gerais. A emergência (quer dizer, o surgimento de uma nova ordem por auto-regulação) se dá a partir do local; inclusive uma ordem emergente de caráter mais global é construída a partir de interações locais.

26 – Sistemas complexos são capazes de fazer isso, ou seja, de configurar ordem mais global (macrocomportamentos) a partir de regras locais, tornando-se capazes de comportamento emergente, de inteligência coletiva, de swarm intelligence, quando seus elementos se concentram na solução dos mesmos problemas (que são, então, forçosamente, problemas locais).

27 – Sociedades (de massa) não são capazes de fazer isso, mas comunidades (de projeto) sim. Ou melhor, sociedades só são capazes de fazer isso se as comunidades de projeto que se formaram no seu seio fizerem isso, como percebeu Jane Jacobs, em outros termos, há 40 anos. Só comunidades de projeto – que se dedicam, por milhares de micromotivos diferentes das pessoas e grupos que as compõem – à resolução dos mesmos problemas locais, podem ser capazes de adquirir a dinâmica de sistemas complexos adaptativos e, assim, podem ser sustentáveis. É por isso que uma nova visão do desenvolvimento como a que está sendo cogitada aqui aponta para o desenvolvimento local. Desenvolvimento local, nesse sentido, não é uma redução, não é uma particularização. Desenvolvimento local nada mais é do que desenvolvimento comunitário, ou seja, desenvolvimento de comunidades de projeto a partir dessas próprias comunidades. Desenvolvimento, nesse sentido, é uma emergência. E o terreno da emergência é o local.

28 – Só redes podem aprender, mas não é qualquer rede que aprende. Só redes podem ser sustentáveis, mas não é qualquer rede que pode ser sustentável. No que tange a sociedades humanas, só em comunidades de projeto o tecido social pode atingir o grau de tramatura suficiente para ensejar a fenômeno da autorregulação. Comunidades são sociedades que atingiram certo grau de tramatura do seu tecido social. Uma ordem na sociedade global – se não for autocrática – só poderá emergir, quer dizer, vir de baixo, do local.

29 – Tudo isso pode ser analisado por teorias do capital social se considerarmos que o fator do desenvolvimento designado pela noção de capital social nada mais é do que a rede social. É o grau de conectividade, o número de caminhos (medido, se quisermos, pela ‘extensão característica de caminho’ ou pelo ‘comprimento de corrente’) existentes entre os nodos de uma rede social que dá o poder social de uma sociedade, ou seja, a sua capacidade de empoderar os seus elementos para que eles criem, inovem, empreendam, assumam protagonismo – enfim, se desenvolvam na medida em que desenvolvem o coletivo do qual fazem parte. Desenvolvimento (sustentável) é, assim, a coincidência de auto-desenvolvimento e comum-desenvolvimento. Em outras palavras, desenvolvimento é sempre a operação de uma rede de co-desenvolvimentos interdependentes

30 – Qualquer ordem não-autocrática só pode existir se for emergente. Temos aqui uma pista para estabelecer um nexo conotativo entre desenvolvimento e democracia. Assim como o desenvolvimento é o ‘aprender’ de uma comunidade, a democracia é um ‘deixar aprender’. Como pacto de convivência, a democracia é um modo de regulação de conflitos que preserva a existência dos conflitantes, que permite a continuidade de sua experiência de convivência social, que possibilita a expansão continuada dos graus de liberdade para que possa haver cada vez mais experimentação e mais aprendizagem e, por conseguinte, mais desenvolvimento.

31 – É por isso que não pode haver desenvolvimento (tomado em termos regulacionais, na visão proposta aqui, ou seja, desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade) sem democracia. Ou melhor, é por isso que mais desenvolvimento (ou sustentabilidade) implica mais democracia, avanço do processo de democratização, de democratização da democracia. Pode haver crescimento (da renda, da riqueza ou de qualquer outra variável extra-econômica da equação do desenvolvimento, como o conhecimento, por exemplo) sem democracia, mas não pode haver, nesse sentido, desenvolvimento.

32 – E é por isso que desenvolvimento depende da produção de capital social, ou seja, da capacidade de uma sociedade de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Em outras palavras, é por isso que desenvolvimento depende da capacidade de uma sociedade de constituir comunidade, de tramar o seu tecido social a ponto de permitir a eclosão dos fenômenos associados à emergência (multiplicidade, diversidade, reverberação, circuitos de retroalimentação de reforço ou de feedback positivo etc.).

33 – Ora, na sociedade (em termos genéricos; ou seja, nas sociedades humanas) quem pode fazer isso na escala e com a intensidade necessárias é o tipo de agenciamento chamado sociedade civil (ou comunidade, no sentido em que Offe e os teóricos alemães empregam o termo), esfera da realidade social caracterizável por uma racionalidade cooperativa e baseada em uma “lógica” participativa. Não é o Estado, caracterizado por uma racionalidade normativa e baseado em uma “lógica” representativa e delegativa, produtor, por excelência (e por definição) de ordem top down, ainda que o Estado possa também induzir processos bottom up, quando consegue estimular a sociedade civil a produzir capital social (ou quando se abstém de desestimulá-la, renunciando a programas baseados em uma padrão de relação centralizador, assistencialista, clientelista e adversarial). Nem o mercado, caracterizado por uma racionalidade competitiva, muito embora o mercado também produza algum tipo de ordem emergente.

34 – Impõe-se como necessária não a oposição entre essas esferas da realidade social – o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou comunidade) – mas a sua combinação virtuosa que pode surgir quando se busca extrair sinergias da sua atuação combinada. O Estado, sozinho, tenderá a induzir o desenvolvimento a partir de um modelo transformacional (a partir de um plano e de regulações exógenas) e o mercado, deixado ao léu da sua própria “lógica”, o fará – sem querer – a partir de um modelo variacional (apostando na sobrevivência dos que melhor se adaptaram). É por isso que cumpre um papel tão estratégico a participação da sociedade civil, de vez que somente a sociedade civil consegue suportar uma dinâmica endógena regulacional gerando novos macrocomportamentos a partir da composição de muitos quereres, de miríades de micromotivos. Para que tal aconteça, entretanto, é necessário instaurar uma atmosfera de liberdade coletiva, um clima de confiança que encoraje as pessoas, coletivamente, a sonhar e a correr atrás dos próprios sonhos, ensejando seu aprendizado – como soe ocorrer em uma comunidade de projeto sob a democracia.