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Reunião dos Brics virou cena de filme de James Bond

De certa forma, é irônico que a cúpula dos Brics, no momento em que tem o maior número de integrantes, represente o fracasso definitivo de seu propósito original. O surgimento do grupo remete ao acrônimo constante no notório estudo do economista Jim O’Neill, que propunha a reforma da governança global e a necessidade de incluir Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, países emergentes e com características econômicas semelhantes. Mas, de plataforma de desenvolvimento a coisa foi enveredando por outro caminho, numa tentativa de antagonizar o G7, formado pelas democracias ocidentais.

Em sua última coluna no Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra descreveu o Brics como um “covescote autocrático”. Tendo o ditador russo Vladimir Putin como anfitrião e novos sócios como o Irã, a imagem do encontro parecia saída daqueles filmes do James Bond em que os vilões caricatos se reúnem para discutir seus planos de dominação do mundo. Até mesmo Nicolás Maduro apareceu, trajando o clássico modelito mafioso com sobretudo e chapéu preto.

Não surpreende a descrença de analistas econômicos e políticos com o futuro do grupo. Um dos principais críticos é o próprio O’Neill. “Terei Sr. Brics estampado em minha testa para sempre”, disse para a agência Reuters sem disfarçar a decepção e a melancolia. “A ideia de que o Brics possa ser um clube econômico global genuíno é, obviamente, um pouco equivalente às fadas”, desdenhou.

“Parece-me ser basicamente um encontro anual simbólico em que países emergentes importantes, especialmente os barulhentos, como a Rússia, mas também a China, possam se reunir e destacar como é bom fazer parte de algo que não envolva os Estados Unidos e que a governança global não é adequada o suficiente”, disse O’Neill sobre a reunião dos Brics. Uma reunião, diga-se, em que o barulho é desproporcional ao resultado efetivo. Excetuando-se, obviamente, a reciclagem que fazem da velhas taras anti-americanas e anti-ocidentais

As reclamações do Brics não são infundadas. As instituições geopolíticas criadas após a Segunda Guerra Mundial estão de fato em seu momento de maior desgaste. A inoperância do Conselho de Segurança da ONU é evidência de tal condição. Mas o que os membros do grupo propõe como alternativa?

A ideia de “multipolaridade” é bonita no discurso, mas o que se tem na prática é pressão chinesa para ampliação de seu próprio espaço de influencia. A tal diversidade decisória proposta é um falsete diversionista que não passa de uma agenda internacional deliberada em Pequim.

Uma intrusa no Conselho de Segurança da ONU?

As violações da Rússia ao direito internacional na guerra contra a Ucrânia e a (i)legitimidade do assento permanente russo no Conselho de Segurança da ONU.

Após a desintegração da União Soviética, em 1991, Ucrânia, Reino Unido, Estados Unidos e Rússia assinaram o Memorando de Budapeste (1994), documento no qual os signatários asseguravam o respeito à independência e à soberania da Ucrânia, dentro de limites territoriais que incluíam a região da Crimeia. Em contrapartida, os ucranianos aderiram ao Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).[1] Exatamente 20 anos depois, a Rússia, liderada por Vladimir Putin, rompeu o acordo e invadiu a Crimeia. Sob forte suspeita de manipulação, foram promovidos referendos na península para aprovar sua separação e anexação à Rússia – sem a chancela da ONU e com pressão contrária por parte dos EUA e da União Europeia.[2]

A anexação da Crimeia caracterizou grave violação do direito internacional e pode ser considerada a primeira fase de um conflito que na atualidade alcançou uma dimensão continental: a guerra promovida pela Rússia contra a Ucrânia, desencadeada pela invasão russa de 24 de fevereiro de 2022, representa o primeiro conflito bélico interestatal em solo europeu desde o fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945).

Os episódios citados constituem violações da Rússia às normas de direito internacional conhecidas como jus ad bellum e jus in bello. O país, ademais, é supostamente liderado por um criminoso de guerra: em março de 2023, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandado de prisão contra Putin por comandar a deportação de pessoas – incluindo crianças – o que constitui crime de guerra[3]. O governo ucraniano, por sua vez, argumenta que o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) poderia invocar o art. 42 do Capítulo VII da Carta da ONU, autorizando o uso da força para repelir a invasão – mesmo com voto contrário da Rússia, que tem poder de veto por integrar o P-5[4]. Como veremos mais adiante, a Ucrânia defende que a condição de membro permanente da Rússia é ilegítima.

Jus ad bellum significa “direito à guerra”. Trata-se de um conjunto de normas que estabelecem as condições nas quais os Estados podem recorrer ao uso da força, representando exceções à norma imperativa que proscreve a guerra.[5] Atualmente são duas as possibilidades de legítimo uso da força: (a.) autodefesa, para repelir agressão armada; e (b.) ação militar autorizada pelo CSNU (cap. VII da Carta da ONU). O artigo 2.º, 4, da Carta proíbe a ameaça ou o uso da força e apela a todos os membros para que respeitem a soberania, a integridade territorial e a independência política de outros Estados. Outrossim, a ONU determina que seus membros recorram a instrumentos pacíficos de solução de controvérsias (art. 33).[6] A Rússia, ao invadir a Ucrânia em 2014 e novamente em 2022, violou tanto o artigo 2(4) quanto o 33 da Carta.

            O jus in bello, ou “direito na guerra”, por sua vez, rege a forma como a guerra é conduzida. Também conhecido como “direito internacional humanitário”, seu objetivo é limitar o sofrimento causado pelas hostilidades.[7] Suas normas mais importantes são as Convenções de Genebra de 1949[8]. Segundo Blum e Modirzadeh, professores de Harvard, nos EUA, o jus in bello exige que beligerantes dirijam ataques apenas contra combatentes aptos e alvos militares e evitem danos a civis, bens civis e ao meio ambiente.[9] No conflito russo-ucraniano, contudo, há provas materiais de frequentes violações ao direito humanitário, sobretudo por parte do exército russo, incluindo bombardeios de áreas civis e a transferência forçada de crianças, prática que é proibida pela 4ª Convenção de Genebra de 1949[10] e que ensejou a condenação pelo Tribunal da Haia.

O êxito do mandado de prisão contra Putin emitido pelo TPI dependerá de cooperação internacional, notadamente dos mais de 120 Estados que ratificaram o Estatuto de Roma de 1998.[11]  O fato de a Rússia ser uma potência nuclear e não reconhecer a jurisdição do tribunal torna pouco provável que Putin seja efetivamente preso, sob uma ótica calcada em realpolitik. Não obstante, a sentença tem validade jurídica e reveste-se de simbolismo político: é a primeira condenação de um chefe de Estado fora da África – e de um líder de uma grande potência. A gravidade dos crimes e o ineditismo da decisão podem isolar Putin ainda mais no plano diplomático[12].

O governo da Ucrânia, por meio de seu Ministério de Assuntos Exteriores (MFA), divulgou, em dezembro de 2022, um paper intitulado “Declaração sobre a ilegitimidade da presença da Federação Russa no Conselho de Segurança da ONU e nas Nações Unidas como um todo”.[13] De acordo com o texto, a Federação Russa teria assumido cadeira de membro permanente do CSNU ilegitimamente, infringindo as normas da ONU. O MFA ressalta que a expressão “Federação Russa” sequer consta na Carta das Nações Unidas. O documento argumenta ainda que, em 1991, o pleito de adesão da Federação Russa à ONU e ao P-5, em substituição à URSS, deveria ter sido analisado e efetivado por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), após recomendação do CSNU, conforme preconiza o art. 4 da Carta.[14] O texto acrescenta que o procedimento do art. 4 foi adotado por República Tcheca e Eslováquia quando a Tchecoslováquia deixou de existir em 1993.[15] A mesma deveria ter sido aplicada à então URSS.

O paper do governo ucraniano destaca, também, que a adesão à ONU está aberta a todos os Estados amantes da paz (§ 1, art. 4); a Rússia, contudo, não preencheria esse requisito: consoante o MFA, “três décadas de presença ilegal na ONU foram marcadas por guerras e apreensão de territórios de outros países, mudança forçada de fronteiras reconhecidas internacionalmente (…)”.[16]

É incontestável que a Federação Russa tem violado reiteradamente o direito das gentes. A anexação da Crimeia (2014) e a invasão armada à Ucrânia, em 2022, contrariam normas internacionais de jus cogens, mormente a proibição do uso da força no plano mundial. Ataques a civis e a transferência forçada de crianças configuram infrações ao direito de Genebra e levaram o TPI a expedir mandado de prisão contra Putin. A campanha realizada pela diplomacia ucraniana, contestando a presença da Rússia na ONU, além de sua condição de membro permanente, pretende ser um ponto de partida para a discussão jurídica e diplomática acerca da legitimidade e do status da Rússia na organização internacional. A introdução desse debate jurídico poderá destravar o processo de reforma da ONU, considerada obsoleta por representar a configuração mundial de poder de 1945. O Conselho de Segurança, em particular, precisa tornar-se representativo de um mundo multipolar[17] e contar com processos decisórios mais ágeis, fazendo que a organização consiga prevenir conflitos e restaurar a paz entre as nações.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAS, Vladimir. Putin não deve ser preso, mas só terá livre circulação em países satélites. Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/vladimir-aras-mandado-prisao-putin> Acesso em 22 jun. 2023.

BONET, Pilar. Crimeia, a obsessão de Putin. El País, 2016. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/29/eps/1467215735_437122.html>. Acesso em 18 jun. 2023.

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KIRBY, Paul. POR QUE ENTRADA DA FINLÂNDIA NA OTAN ENFURECE TANTO A RÚSSIA. BBC News Brasil. 2023. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2ndjvvmg4o> Acesso em 25 jun. 2023.

KULIKE, Marcelli. As invasões russas na Geórgia (2008) e na Crimeia (2014). Série Conflitos Internacionais. V. 1, n. 4. Unesp, Agosto de 2014. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/4-invasoes-russas.pdf > Acesso em 21 jun. 2023.

MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em <https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020. 

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_____________. The UN’s structures built in 1945 are not fit for 2020, let alone beyond it (Special Report). 2020. Disponível em <https://www.economist.com/special-report/2020/06/18/the-uns-structures-built-in-1945-are-not-fit-for-2020-let-alone-beyond-it.> Acesso em 01 jul. 2023.

UNITED NATIONS (UN). United Nations Charter (full text). Disponível em <https://www.un.org/en/about-us/un-charter/full-text > Acesso em 18 jun. 2023.

[1] A versão original do Memorando em inglês encontra-se disponível em: https://treaties.un.org/doc/Publication/UNTS/Volume%203007/v3007.pdf , p. 167.

[2]    KULIKE, Marcelli. As invasões russas na Geórgia (2008) e na Crimeia (2014). Série Conflitos Internacionais. V. 1, n. 4. Unesp, Agosto de 2014. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/4-invasoes-russas.pdf > Acesso em 21 jun. 2023.

[3] THE ECONOMIST. Why Russia is deporting Ukrainian children. Abril de 2023. Disponível em <https://www.economist.com/the-economist-explains/2023/04/14/why-russia-is-deporting-ukrainian-children>. Acesso em 09 jul. 2023.

[4]    P-5 é a abreviação para os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China.

[5]   REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.  P.437

[6] UNITED NATIONS (UN). United Nations Charter (full text). Disponível em <https://www.un.org/en/about-us/un-charter/full-text  > Acesso em: 23 jun. 2023.

[7]   COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Jus in bello – Jus ad bellum. Disponível em < https://www.icrc.org/pt/guerra-e-o-direito/dih-e-outros-regimes-legais/jus-bello-jus-ad-bellum > Acesso em 24 jun. 2023.

[8]    AS CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 1949 E SEUS PROTOCOLOS ADICIONAIS. Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), 2010. Disponível em <https://www.icrc.org/pt/doc/war-and-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/overview-geneva-conventions.htm >. Acesso em 22 jun. 2023.

[9]    HARVARD LAW SCHOOL. The war in Ukraine and International Law, 2022. Disponível em

< https://hls.harvard.edu/today/the-ukraine-conflict-and-international-law/ >. Acesso em: 24 jun. 2023.

[10]    Convenção Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra.

[11]   ARAS, Vladimir. Putin não deve ser preso, mas só terá livre circulação em países satélites. Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/vladimir-aras-mandado-prisao-putin > Acesso em 22 jun. 2023.

[12]     A China é a única grande potência que atualmente apoia a Rússia de Putin, porém sem participação direta no conflito europeu.

[13]   MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em < https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[14]    MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em < https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[15]   O mesmo procedimento aplicou-se aos novos estados que surgiram por ocasião da dissolução da ex-Iugoslávia. Para mais informações, acessar: https://www.un.org/en/about-us/member-states/yugoslavia.

[16]    MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em <https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[17]  O P-5 com poder de veto ainda é o clube vitorioso de 1945, sem representantes da América Latina, África ou sul da Ásia.  Sem reforma, o déficit de legitimidade do Conselho continuará aumentando. Uma análise mais aprofundada acerca da reforma da ONU pode ser encontrada na reportagem especial da revista The Economist intitulada The UN’s structures built in 1945 are not fit for 2020, let alone beyond it.  (Special Report) 2020. Disponível em <https://www.economist.com/special-report/2020/06/18/the-uns-structures-built-in-1945-are-not-fit-for-2020-let-alone-beyond-it.> Acesso em 01 jul. 2023.