Como classificar os regimes dos países da América Latina? As melhores classificações dos regimes políticos do mundo são a do V-Dem Institute (V-Dem) e a da The Economist Intelligence Unit (EIU). Poderíamos, simplesmente, aplicá-las a 21 países da América Latina. Mas antes seria interessante ver os problemas dessas classificações.
CLASSIFICAÇÕES DE REGIMES POLÍTICOS
O V-Dem classifica os regimes em quatro tipos: Liberal Democracy (Democracia Liberal), Electoral Democracy (Democracia Eleitoral), Electoral Autocracy (Autocracia Eleitoral) e Closed Autocracy (Autocracia Fechada). O regime brasileiro é classificado como Electoral Democracy. O V-Dem adota seis índices: Democracia Liberal (uma espécie de síntese, chamado LDI), Democracia Eleitoral, Componente Liberal, Componente Igualitário, Componente Participatório, Componente Deliberativo.
The Economist Intelligence Unit classifica os regimes em quatro tipos: Full Democracy (Democracia Plena), Flawed Democracy (Democracia Defeituosa), Hybrid Regime (Regime Híbrido) e Authoritarian Regime (Regime Autoritário). O regime brasileiro é classificado como Flawed Democracy. A EIU adota cinco índices: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política e Liberdades Civis.
Comecemos com algumas perguntas problematizadoras: Democracias (apenas) eleitorais são regimes da mesma natureza que democracias liberais? E podem ser chamadas propriamente de democracias? O que fazer com os 58 regimes que o V-Dem classifica como democracias eleitorais (1)? O que fazer com os 48 regimes que a The Economist Intelligence Unit (EIU) chama de democracias defeituosas (flaweds democracies) (2) e, ainda, com os 36 regimes que a EIU chama de híbridos (3)?
Não parecem ser todos a mesma coisa. Ainda que sejam considerados (pelo V-Dem) democracias eleitorais, o regime de Portugal não se parece com o da Bolívia e o regime do Canadá não se parece com o do México. Ainda que sejam considerados (pela EIU) democracias defeituosas, o regime da República Checa não se parece com o do Brasil e, menos ainda, com o da Nigéria (hybrid). Quais as diferenças entre eles?
Em primeiro lugar é preciso ver que esses regimes não são democracias (liberais).
Em dados de 2022, as mais avançadas democracias do planeta são as 32 democracias liberais (segundo o V-Dem) (4) ou as 24 democracias plenas (segundo a The Economist Intelligence Unit) (5).
Liberal, no sentido político do termo é quem toma a liberdade (e não a ordem, nem que seja a ordem mais justa imaginável do universo) como sentido da política. Os primeiros democratas atenienses, nesse sentido originário do conceito de liberdade, eram democratas liberais.
Nos termos de hoje um regime é democrático na medida em que observa o princípio liberal da democracia, que implica uma visão negativa do poder político: não propriamente a capacidade do governo de se impor à sociedade, mas a possibilidade da sociedade de controlar o governo. Bons exemplos são as democracias liberais na classificação do V-Dem (4) ou as democracias plenas na classificação da The Economist Intelligence Unit (5).
Claro que um regime democrático liberal tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático (apenas) eleitoral (na classificação do V-Dem). Um regime democrático pleno tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático defeituoso ou do que um regime híbrido (na classificação da The Economist Intelligence Unit).
Quando falamos de democracia estamos falando, no sentido pleno do conceito, de democracia liberal.
Isso porque democracia, nesse sentido forte do conceito, equivale à sociedade democrática (aquela que é capaz de controlar o governo). Isso sugere um exame das classificações correntes de regimes políticos. Aquelas categorias que são chamadas de democracias eleitorais (V-Dem) ou de democracias defeituosas e regimes híbridos (The Economist Intelligence Unit) não deveriam ser chamadas, no sentido pleno do conceito, de democracias e sim de regimes eleitorais em transição. Essa transição pode ser democratizante ou autocratizante na medida em que esses regimes se aproximam ou se afastam das democracias (liberais).
Mas há regimes eleitorais não autoritários (não-iliberais) e há regimes eleitorais autoritários (iliberais). Destrinchando a classificação do V-Dem, há democracias eleitorais não parasitadas por populismos (Canadá, Portugal, Malta), há democracias eleitorais parasitadas por neopopulismos, o populismo atual dito de esquerda (Bolívia, Colômbia, México) e há democracias eleitorais parasitadas por populismos-autoritários, o populismo atual dito de direita ou de extrema-direita, também chamado de nacional-populismo (El Salvador, Armênia, Bulgária). E ainda há democracias eleitorais parasitadas por dois populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita), como é o caso do Brasil afetado pelo lulopetismo e pelo bolsonarismo. Assim como há autocracias eleitorais neopopulistas (Venezuela, Nicarágua, Angola) e autocracias eleitorais populistas-autoritárias (Hungria, Turquia, Índia).
Regimes eleitorais não-autoritários podem ser considerados Estados democráticos de direito, mas isso não significa que correspondam, necessariamente, à sociedades democráticas. Em outras palavras, nem todos os Estados democráticos de direito possuem (ou melhor, são possuídos por) sociedades capazes de controlar o governo. Por exemplo, em regimes eleitorais não-autoritários parasitados por populismos, há um déficit de democratização da sociedade que impede que eles se convertam em democracias liberais, quer dizer, em democracias no sentido pleno do conceito.
Democracias (apenas) eleitorais (não-liberais) ou democracias defeituosas, enquanto estão sob o domínio de governos populistas, são impedidas de se converter em democracias liberais.
Regimes eleitorais autoritários não são Estados democráticos de direito. Está em aberto a questão de se poderiam ser chamados de Estados de direito (mesmo quando há império da lei). Eles se enquadram mais perfeitamente na categoria de autocracias eleitorais (usada pelo V-Dem).
Há também regimes não-eleitorais (Cuba, China, Arábia Saudita). Sobre esses, na época atual, não há dúvidas. Não são Estados democráticos de direito, nem mesmo Estados de direito (e neles não há império da lei e sim o mando absoluto do líder autocrata ou da sua organização). São as autocracias plenas.
Uma classificação mais condizente com as considerações deste artigo pode ser intentada. Por exemplo, no diagrama abaixo:
A classificação acima é referenciada no conceito de populismo (que é um comportamento político não-liberal). Mas nem todo regime eleitoral não-liberal é populista. Existem regimes eleitorais que não são parasitadas por populismos e que podem ser considerados transições mais próximas para uma democracia (considerando-se que toda democracia propriamente dita é liberal). Em contrapartida, todas os regimes eleitorais parasitados por populismos, conquanto não sejam autocracias, são transições mais próximas para uma autocracia populista (considerando-se que nem toda autocracia é populista, uma vez que autocracias não-eleitorais não são populistas).
Tudo isso, porém, ainda está longe, bem longe, de uma classificação adequada, que deveria ser centrada no conceito de liberalismo, lato sensu, como política que tem como sentido a liberdade, a rigor incluindo, portanto, o paleo-liberalismo dos primeiros democratas (atenienses), o liberalismo clássico (dos reinventores modernos da democracia) e, quem sabe, um futurível liberalismo pós-moderno (a aparecer – se aparecer – numa quarta onda de democratização que poderia ser considerada uma terceira invenção da democracia) (6).
UMA CLASSIFICAÇÃO POLÍTICA DOS REGIMES POLÍTICOS
Sintetizando, regimes políticos podem ser: A) eleitorais ou B) não-eleitorais.
A) Se forem eleitorais podem ser: Aa) liberais ou Ab) não-liberais.
Se forem liberais serão Aa1) democracias (propriamente ditas ou plenas).
Se forem não-liberais podem ser: Ab1) regimes em transição democratizante (democracias formais), Ab2) regimes em transição autocratizante (só benevolamente chamados ainda de democracias) ou Ab3) regimes eleitorais autoritários (autocracias eleitorais: as novas ditaduras).
Em geral, os regimes eleitorais não-liberais em transição autocratizante são parasitados por populismos (quer pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita, quer pelo neopopulismo, considerado de esquerda).
B) Se forem não-eleitorais serão autocracias fechadas (as velhas ditaduras).
Essa classificação surgiu a partir de modificações das principais classificações adotadas pela Freedom House (FH), pela The Economist Intelligence Unit (EIU) e, principalmente, pelo V-Dem. Ela contempla cinco tipos de regimes políticos:
1) Democracias propriamente ditas (correspondendo ao estrato superior dos Free Countries da FH, às Full Democracies da EIU e parte das Liberal Democracies do V-Dem), que são regimes eleitorais liberais.
2) Regimes em transição democratizante (uma parte dos Free Countries da FH, uma parte das Flaweds Democracies da EIU e uma parte das Electoral Democracies do V-Dem), que são regimes eleitorais não-liberais formais (em geral não parasitados por populismos).
3) Regimes em transição autocratizante (o estrato inferior dos Free Countries e dos Partly-Free Countries da FH, uma parte das Flaweds Democracies e uma parte dos Hybrid Regimes da EIU e partes das Electoral Democracies e das Electoral Autocracies do V-Dem), que são regimes eleitorais não-liberais, em geral parasitados por populismos.
4) Regimes eleitorais autoritários (os Not-Free Countries da FH, algumas das Flawed Democracies e dos Hybrid Regimes da EIU e parte das Electoral Autocracies do V-Dem).
5) Regimes não-eleitorais autóritários (os Not-Free Countries da FH, os Authoritarian Regimes da EIU e as Closed Autocracies do V-Dem).
Um diagrama compreensível segue abaixo:
Não se sabe o valor de X e Y, apenas o da sua soma. Mas a análise política tem revelado, caso a caso concreto, os regimes eleitorais não-liberais considerados democracias eleitorais com governos populistas que estão se alinhando ao eixo autocrático. Por exemplo, África do Sul, Brasil, Bolívia, México, Colômbia, Gâmbia, Indonésia, Namíbia, Níger, Senegal, Serra Leoa subscreveram ou apoiaram a iniciativa do eixo autocrático, via África do Sul, de condenar Israel por genocídio. Politicamente, esses países não estão no mesmo campo dos regimes eleitorais não-liberais também considerados democracias eleitorais (porém sem governos claramente populistas), como, por exemplo, Austria, Bulgária, Canadá, Croácia, Georgia, Grécia, Lituânia, Malta, Moldova, Paraguai e Portugal.
Ou seja, o V-Dem classifica na mesma categoria (democracia eleitoral) tipos de regime que têm comportamentos políticos diferentes, o que dificulta a operacionalização política da classificação. Entende-se que a chamada ciência política não deva ser instrumentalizada politicamente para apontar ou justificar enquadramentos classificatórios que não derivem de critérios objetivos como os adotados pelo V-Dem:
Para os pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, “o princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo” (7).
Parece evidente que, com a ascensão dos populismos do século 21, esse princípio exige uma nova formulação:
O princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (sendo, portanto, contrário ao majoritarismo e ao hegemonismo). Contempla a afirmação de modos-de-vida preferidos pela sociedade expressos pelos desejos das comunidades políticas democráticas, ensejando que a sociedade controle o governo (e nunca o contrário). Adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites e condicionamentos impostos às instituições do Estado. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente [e contido em suas funções], freios e contrapesos efetivos, uma cultura política que valoriza a pluralidade política (compreendendo, inclusive, o reconhecimento das oposições democráticas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime, não encorajando a polarização introduzida pelos populismos) e a abertura para a interação com a sociedade que, juntos, limitam o exercício do poder executivo e balizam o funcionamento dos demais poderes estatais (8).
Regimes eleitorais não-liberais parasitados por populismos, mesmo que sejam chamados de democracias eleitorais, respondem muito fracamente ao quesito em tela (o princípio liberal da democracia). Algum elemento liberal sempre haverá, a rigor, em qualquer regime (enquanto existir sociedade humana).
No diagrama acima vê-se que o que chamamos (quer dizer, o V-Dem chama) de democracias eleitorais denominam duas coisas diferentes: regimes em transição democratizante (não-parasitados por populismos) e regimes em transição autocratizante (parasitados por populismos). Os regimes eleitorais não-liberais que chamamos de democracia são, na verdade transições entre democracia (a democracia propriamente dita, quer dizer, a democracia liberal) e autocracia (eleitoral).
Nos regimes em transição democratizante (não parasitados por populismos) há mais elementos de liberalismo (político) do que nos regimes em transição autocratizantes (parasitados por populismos). Porque os populismos derruem os elementos liberais dos regimes eleitorais (como, por exemplo, a aceitação do pluralismo) (9). Nos dias de hoje (ou sob a terceira onda de autocratização) quase nenhum regime eleitoral vira um regime eleitoral autoritário (uma autocracia eleitoral) sem ter sido parasitado por um populismo (como aconteceu na Venezuela, com o neopopulismo chavista e na Hungria, com o populismo-autoritário orbanista). Claro que pode virar, isto sim, um regime não-eleitoral autoritário (uma autocracia fechada) se for vítima de um golpe de Estado em termos tradicionais (como aconteceu recentemente no Niger), mas estes casos estão longe de ser os mais frequentes atualmente.
REGIMES POLÍTICOS NA AMÉRICA LATINA SEGUNDO O V-DEM
Vamos nos concentrar no ranking gerado pela aplicação do Índice de Democracia Liberal (LDI) do V-Dem 2023 aos seguintes 21 regimes da América Latina:
Costa Rica 0,816
Chile 0,786
Uruguai 0,770
Brasil 0,692
Argentina 0,690
Suriname 0,631
Peru 0,576
Panamá 0,571
Colômbia 0,565
Equador 0,467
República Dominicana 0,438
Paraguai 0,426
Honduras 0,394
Guatelmala 0,309
Bolívia 0,353
México 0,299
El Salvador 0,111
Haiti 0,066
Cuba 0,058
Venezuela 0,055
Nicarágua 0,027
Além do retrato é preciso ver o filme: a evolução (na verdade as modificações) desses regimes ao longo do tempo.
Claro que temos problemas com os levantamentos do V-Dem. Como ele consulta especialistas de cada país ou região, em alguns casos (como o do Brasil, por exemplo), os critérios adotados não parecem levar em conta que a maioria dos acadêmicos consultados tem uma tendência fortemente de esquerda – o que, pode distorcer o foco das suas avaliações.
Outro problema é que os relatórios baseados em indicadores estáticos não levam em conta os processos em andamento. São fotografias e não o filme. Por exemplo, o caso da Ucrânia, que era uma democracia eleitoral e virou uma autocracia eleitoral segundo o V-Dem, mas que decaiu em razão da guerra. País invadido é inexoravelmente compelido a restringir direitos políticos e liberdades civis. Não valeria classificar o seu regime com base em indicadores normais.
RECLASSIFICANDO OS REGIMES POLÍTICOS DA AMÉRICA LATINA
À luz do que foi exposto acima é possível reclassificar os regimes políticos dos países da América Latina, conforme a tabela abaixo:
1 e 2 | AUTOCRACIAS FECHADAS | Cuba [1] é uma autocracia fechada, uma ditadura de esquerda típica do século 20 – um regime não eleitoral. O Haiti [2] também é uma autocracia fechada, mas não se pode dizer com certeza que é o mesmo tipo de regime do cubano: não se aplica a ele a distinção (anacrônica) esquerda x direita. O regime do Haiti é o caos político.
3, 4 e 5 | AUTOCRACIAS ELEITORAIS | Venezuela [3] e Nicarágua [4] são autocracias eleitorais ditas de esquerda, que começaram seu processo de autocratização depois de serem parasitadas por uma forma de populismo que surgiu no dealbar do século 21, sobretudo na América Latina (o chamado neopopulismo). El Salvador [5] também é uma autocracia eleitoral, dita de extrema-direita, que começou seu processo de autocratização ao ser parasitado por uma forma de populismo que emergiu a partir da segunda década do século 21 (o chamado populismo-autoritário ou nacional-populismo).
6, 7, 8, 9, 10 e 11 | REGIMES ELEITORAIS PARASITADOS POR POPULISMOS | México [6], Colômbia [7], Honduras [8], Bolívia [9] e Brasil [10] são regimes eleitorais, ainda chamados de democracias (apenas eleitorais, segundo o V-Dem ou defeituosas, segundo a EIU), atualmente parasitados por governos neopopulistas (ditos de esquerda). Não viraram ainda autocracias, mas estão sob risco de entrar em transição autocratizante. Argentina [11] é um regime eleitoral também parasitado por um governo populista (dito de direita). Não se sabe ao certo se é um governo populista-autoritário ou nacional-populista (como o de Orbán, na Hungria). Sabe-se, porém, que o regime argentino não decaiu para uma autocracia, embora possa entrar em risco de.
12, 13, 14, 15, 16 e 17 | REGIMES ELEITORAIS FORMAIS | Panamá [12], Paraguai [13], Guatemala [14], República Dominicana [15], Equador [16] e Peru [17] também são, atualmente, regimes eleitorais formais (democracias apenas eleitorais ou defeituosas), quer dizer, não notadamente parasitados por governos populistas. Não estão sob grande risco – neste momento – de entrar em transição autocratizante e poderiam entrar em transição democrátizante convertendo-se em democracias liberais (embora isso também não seja muito provável no curto prazo).
18, 19, 20 e 21 | DEMOCRACIAS LIBERAIS | Costa Rica [18], Chile [19], Uruguai [20] e Suriname [21] são democracias propriamente ditas, ou seja, democracias liberais – as quatro únicas da América Latina.
Notas
(1) Electoral democracies (V-Dem 2023):
Argentina
Armenia
Austria
Bhutan
Bolivia
Botswana
BiH
Brazil
Bulgaria
Canada
Cape Verde
Colombia
Croatia
Dominican Republic
Ecuador
Gambia
Georgia
Ghana
Greece
Guyana
Honduras
Indonesia
Jamaica
Kenya
Kosovo
Lesotho
Liberia
Lithuania
Malawi
Maldives
Malta
Mauritius
Mexico
Moldova
Mongolia
Montenegro
Namibia
Nepal
Niger
North Macedonia
Panama
Paraguay
Peru
Poland
Portugal
Romania
Tomé & P.
Senegal
Sierra Leone
Slovenia
Solomon Islands
South Africa
Sri Lanka
Suriname
Timor-Leste
Trinidad and Tobago
Vanuatu
Zambia
(2) Flaweds democracies (EIU 2022):
Albania
Argentina
Belgium
Botswana
Brazil
Bulgaria
Cabo Verde
Colombia
Croatia
Cyprus
Czech Republic
Dominican Republic
Estonia
Ghana
Greece
Guyana
Hungary
India
Indonesia
Israel
Italy
Jamaica
Latvia
Lesotho
Lithuania
Malaysia
Malta
Moldova
Mongolia
Montenegro
Namibia
North Macedonia
Panama
Philippines
Poland
Portugal
Romania
Serbia
Singapore
Slovakia
Slovenia
South Africa
Sri Lanka
Suriname
Thailand
Timor-Leste
Trinidad and Tobago
United States of America
(3) Hybrid regimes (EIU 2022):
Armenia
Bangladesh
Benin
Bhutan
Bolivia
Bosnia and Hercegovina
Côte d’Ivoire
Ecuador
El Salvador
Fiji
Gambia
Georgia
Guatemala
Honduras
Hong Kong
Kenya
Liberia
Madagascar
Malawi
Mauritania
Mexico
Morocco
Nepal
Nigeria
Pakistan
Papua New Guinea
Paraguay
Peru
Senegal
Sierra Leone
Tanzania
Tunisia
Turkey
Uganda
Ukraine
Zambia
(4) Liberal democracies (V-Dem 2023):
Australia
Barbados
Belgium
Chile
Costa Rica
Cyprus
Czech Republic
Denmark
Estonia
Finland
France
Germany
Iceland
Ireland
Israel
Italy
Japan
Latvia
Luxembourg
Netherlands
New Zealand
Norway
Seychelles
Slovakia
South Korea
Spain
Sweden
Switzerland
Taiwan
United Kingdom
Uruguay
USA
(5) Full democracies (EIU 2022):
Australia
Austria
Canada
Chile
Costa Rica
Denmark
Finland
France
Germany
Iceland
Ireland
Japan
Luxembourg
Mauritius
Netherlands
New Zealand
Norway
South Korea
Spain
Sweden
Switzerland
Taiwan
United Kingdom
Uruguay
(6) Cf. a conclusão do meu artigo de 27/07/2023, As três ondas de democratização e de autocratização: uma nova abordagem, disponível em <https://dagobah.com.br/as-tres-ondas-de-democratizacao-e-de-autocratizacao-uma-nova-abordagem/>.
(7) Cf. Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018), no fundamental artigo Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes <https://doi.org/10.17645/pag.v6i1.1214>.
(8) Franco, Augusto (2023). Como as democracias nascem. São Paulo: Casas da Democracia, 2023.
(9) Cf. o artigo de Juraj Medzihorsky & Stafan I. Lindberg (2023), Walking the Talk: How to Identify Anti-Pluralist Parties. Sage Journals (17/05/2023).
A “fórmula” descrita neste artigo é a do neopopulismo ou do populismo de esquerda que floresceu, sobretudo na América Latina, no dealbar do presente século, com Hugo Chávez na Venezuela, Lula e Dilma no Brasil, Rafael Correa e Moreno no Equador, Evo Morales e Arce na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner e Fernández na Argentina, Maurício Funes e Cerén em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia – além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores. E além, é claro, de uma exceção, por não ser propriamente populista: o ditador castrista Miguel Díaz-Canel, de Cuba, uma remanescência marxista-revolucionária do século passado.
Mas o que se comenta a seguir vale, mutatis mutandis, para qualquer processo de conquista de hegemonia (inclusive, em parte, pelos intentados pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita) em regimes democráticos eleitorais (e até, como exceção, em regimes liberais).
Antes, porém, é necessário chegar a um acordo sobre os conceitos de hegemonia e populismo, tal como serão empregados neste artigo.
Hegemonia
Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.
Populismo
O termo populismo designa aqui um comportamento político que surgiu no século 21 e que se caracteriza pela divisão da sociedade com base em uma única ou dominante clivagem (povo x elites ou povo x establishment), o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós” contra “eles”) e a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Cabe notar que os populismos contemporâneos não têm muito a ver com os populismos tradicionais do século 20, caracterizados por demagogia, assistencialismo, clientelismo, irresponsabilidade fiscal: embora tais características permaneçam nos novos populismos do século 21, elas não são mais dominantes. Além do estatismo, que já estava mais ou menos presente no populismo antigo, surgiram (ou acentuaram-se) características como o majoritarismo (ou o hegemonismo), o antipluralismo e a formação de entidades tribais em permanente disputa antipolítica. Os populismos contemporâneos são modos de parasitar democracias eleitorais degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e estiolar substância liberal (sendo, portanto, iliberais ou contra-liberais). Seja para transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais. Existem hoje o populismo-autoritário ou nacional-populismo (Farage, Salvini, Bannon e Trump, Orbán, Le Pen, Wilders, Ventura, Abascal, Alexander Gauland e Alice Weidel, Bolsonaro etc.), dito de extrema-direita e o neopopulismo, dito de esquerda – que será particularmente focalizado no presente artigo.
A CONQUISTA DE HEGEMONIA PELO NEOPOPULISMO NO BRASIL
Vamos descrever a estratégia de conquista de hegemonia comentando o seguinte diagrama que focaliza, particularmente, o caso do neopopulismo lulopetista no Brasil.
Advertências
Mas é necessário fazer duas advertências antes de começar. A primeira advertência é que, embora possa parecer assim, para alguns, não se trata de uma conspiração e sim de uma co-inspiração. As peças não se encaixam a partir de um plano diretor concebido nas sombras por um grupo secreto ou clandestino e nem se encaixam antes de as possibilidades práticas se manifestarem. Padrões autocráticos que remanesceram no subsolo da consciência de diversos setores considerados de esquerda ou progressistas, em algum momento de sintonizaram e se sinergizaram. Então a estratégia de conquista de hegemonia foi se conformando por composição de partes cognatas ou afins. Isso é o que significa co-inspiração. O PT jamais anunciou uma estratégia pronta e acabada. Mas é possível conectar suas concepções e práticas, propostas, medidas ou tentativas de aplicá-las, de sorte a compor um retrato dessa estratégia.
A segunda advertência é que a estratégia de conquista de hegemonia examinada aqui não é extremista (usamos a palavra, embora esse conceito de ‘extremista’ seja inconsistente como categoria de análise), não quer destruir as instituições do Estado de direito e sim ocupá-las e hegemonizá-las, fazendo maioria em seu interior. Não prevê golpes de Estado, muito menos insurreições revolucionárias ou guerras populares – embora auto-golpes possam acontecer ao se configurarem ambientes favoráveis à quebra da ordem constitucional por parte de um governo neopopulista (como ocorreu na Venezuela e na Nicarágua). Mas isso pode ser considerado um desvio da estratégia original, que prevê um tratamento homeopático, não alopático. Para fazer um paralelo com os procedimentos dos velhos alquimistas, é uma via úmida, não uma via seca. Difícil é, porém, para quem não está realmente convertido à democracia (liberal), resistir à tentação de encurtar o caminho quando a correlação de forças se constela francamente favorável.
Um esquema descritivo
No diagrama abaixo estão os elementos principais da estratégia de conquista de hegemonia. É um desenho mais descritivo do que analítico.
Um líder com alta gravitatem é fundamental para dar um curto circuito nos mecanismos de proteção da democracia contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Ele deprime o sistema imunológico da democracia ao estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais, inabilitando seus sistemas de freios e contrapesos. A popularidade do líder é função da sua capacidade de apadrinhar as pessoas (identificando-se com elas e vendendo a ideia de que será capaz de resolver os seus problemas por elas) e de mesmerizar as massas, criando poços de potencial que deformam o campo interativo da convivência social. É como um buraco negro que suga todas as energias da sociedade, sulcando creodos e causando anisotropias nesse campo.
No caso do Brasil, no campo neopopulista, a partir do início deste século, esse papel de apadrinhar e mesmerizar é cumprido pelo líder Luis Inácio Lula da Silva.
O lider populista substitui o povo ao se apresentar como a síntese do povo. Encarnando-se como uma espécie de substituto do povo, o líder populista torna o povo desnecessário. E, pior, todos que dele discordam deixam de ser o (verdadeiro) povo.
“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.
E isso foi repetido por ele no final de junho de 2024, na mesma mídia social (já no exercício do seu terceiro mandato e quinto do PT):
“Eu não sou só um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo na presidência da República”.
O último tweet é uma variação do “L’État c’est moi” do monarca absolutista Luis XIV, com um passo adiante: “Je suis le peuple”.
Mais recentemente (em 06/07/2024), Lula declarou em um comício oficial:
“Quando eu estiver fazendo uma coisa errada, ao invés de vocês falarem ‘o Lula está errando’, vocês têm que falar “eu tô errando, porque o Lula é o nosso povo na presidência”.
A principal perturbação causada no campo interativo pelo líder populista é polarizar. Vamos analisar isso do ponto de vista das redes sociais (a referência aqui é à fenomenologia da interação entre pessoas, não às mídias sociais, como Facebook, X ou ex-Twitter, Instagram etc.). A polarização é chamada de afetiva (ou de emocionares – como disposições para a ação, independentemente de concordâncias ou discordâncias entre diferentes escolhas racionais) porque o campo interativo foi deformado. Como foi dito, mas vale repetir, a melhor coisa para deformar um campo é a presença de centros de alta gravitatem envolvidos em uma disputa adversarial (como é próprio dos populismos) que sugam as energias da sociedade parasitando o fluxo interativo da convivência social e sulcando caminhos, aqui chamados de creodos. Tornam-se espécies de buracos negros, onde tudo se abisma. O parasitismo pode, em alguns casos, tornar-se obsessor, quase um vampirismo. Então as pessoas escorrem por esses creodos sem fazer quaisquer juízos sobre suas qualidades e características.
2 – O PAPEL DO PARTIDO HEGEMONISTA
Defender e atacar
Então a primeira providência para conquistar hegemonia – além de dispor de um líder com as características descritas acima – é constituir um organismo vocacionado à hegemonia (ou seja, o organismo deve ser, ele mesmo, hegemonista) composto por militantes habilitados à praticar a política como continuação da guerra por outros meios, dirigidos estes, por sua vez, por um líder populista identificado com o próprio organismo. Ao fazer guerra, defendendo (seus integrantes e aliados) e atacando (seus oposicionistas, dissidentes e inimigos), os militantes tribalizam a política, obrigando todas as demais forças políticas a fazer o mesmo: os sem-tribo ficam completamente inabilitados para interagir no cenário político. E o fato dos outros também se tribalizarem reforça a degeneração da política como guerra do “nós” contra “eles” (ou seja, todos que não são “nós” ou não estejam subordinados à nossa direção).
A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo, uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias nas quais foram erigidos. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.
A conquista da hegemonia se dá primeiramente na sociedade e só depois no Estado. Uma vez tendo controlado o Estado, o organismo hegemônico avança em direção ao seu propósito de transformar a população em simpatizante da sua causa.
Os militantes então buscam estabelecer sua hegemonia nas mídias, nos partidos (da coalizão hegemonista), nas universidades e escolas, nas corporações (sindicais e assemelhadas), nos movimentos sociais e ONGs (que passarão a atuar como correias de transmissão do organismo hegemônico) e nos órgãos estatais.
Sem um partido com tais características (com “cabeça, tronco e membros” – como disse Lula, revelando que há uma diferença de status organizativo entre a “cabeça” e os “membros” -, ou seja, dirigentes, estrutura vertical de comando profissionalizada – o tronco; e os militantes) não é possível implementar uma estratégia de conquista de hegemonia. No caso do Brasil, os dirigentes e militantes do PT estão construindo e reforçando, pelo tempo de quase duas gerações (44 anos), esse organismo. Sim, isso não surge da noite para o dia, mas requer uma longa e árdua caminhada sujeita a vários percalços (derrotas sucessivas em eleições presidenciais em 1989, 1994, 1998; condenações e prisões dos principais dirigentes partidários por corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, associação criminosa ou formação de quadrilha, nos processos do Mensalão e do Petrolão; impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; prisão de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por 580 dias, de abril de 2018 a novembro de 2019).
A seguir uma pequena descrição de como os dirigentes e militantes atuam:
Nas mídias. Os dirigentes e militantes do PT criaram uma rede suja de sites e blogs para vender versões favoráveis ao partido (em 2014 já existiam: Brasil247, Forum, DCM, Opera Mundi, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Tijolaço, Rede Brasil Atual, Plantão Brasil, Outras Palavras, Carta Maior, Caros Amigos, Brasil de Fato, Mídia Ninja etc.). Com o advento das mídias sociais, criaram os MAVs (núcleos de militantes chamados de Mobilização em Ambientes Virtuais) e, mais recentemente, uma espécie de tropa de assalto, o “Gabinete da Ousadia” (por imitação ao chamado “Gabinete do Ódio” do governo Bolsonaro). Com a chegada ao governo (nos mandatos anteriores de Lula e Dilma, mas sobretudo no mandato atual de Lula), o PT passou a comprar a boa vontade dos grandes, médios e pequenos meios profissionais de comunicação com verbas de publicidade, conseguindo transformar alguns deles (inclusive canais de TV) naquilo que se chamava de “imprensa chapa-branca” ou assessoria de comunicação paralela (oficiosa) do governo. Militantes do PT viraram jornalistas e passaram a parasitar as redações de jornais, revistas e TVs. Em geral os oriundos de cursos universitários de jornalismo, de inclinação claramente esquerdista, formaram uma espécie de infantaria partidária. Antigos críticos passaram por uma conversão miraculosa e deram uma volta de 180 graus em sua orientação política (trânsfugas da democracia, de jornalistas, viraram propagandistas). Outros perderam a verve crítica ao poder que caracterizou seu comportamento nas últimas décadas. Outros, ainda, passaram a fazer jornalismo de fofoca, recebendo em tempo real pelo celular, enquanto estão no ar, informações de coxia plantadas por dirigentes partidários.
Nos partidos aliados. Na coalizão de partidos aliados, o PT, desde que surgiu, sempre foi amplamente hegemônico, satelizando as demais agremiações ditas de esquerda (PCdoB, PSOL, PDT, PSB etc.). O PT sempre atuou no campo de seus aliados ideológicos para ser uma espécie de “Central Única da Esquerda”. Internamente abrigou e estimulou uma profusão de tendências com o objetivo de impedir que essas forças políticas se estruturassem como organizações autônomas (e, também, mas não menos importante, para educar os seus militantes na luta interna, preparando-os para a prática da política como continuação da guerra por outros meios – e isso só se consegue configurando o ambiente partidário como um campo de luta interna permanente, quase uma associação de “inimigos íntimos”).
Nas universidades. Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).
Nas corporações. As corporações sindicais foram o berço do PT – ou um dos berços: os outros dois foram a esquerda marxista-leninista sobrevivente da ditadura militar e a chamada igreja da libertação, que abraçou a ideologia – chamada de teologia – da libertação. O papel principal, porém, foi desempenhado pelo chamado sindicalismo autêntico do ABC paulista e, em seguida, da CUT – Central Única dos Trabalhadores. Em vários períodos da história recente houve tal confusão entre sindicatos, centrais sindicais e partido, que os próprios militantes se confundiam, sem saber direito em que ambiente estavam. Era tudo, para efeitos práticos, a mesma coisa. Delúbio Soares, por exemplo, oriundo do meio sindical, virou dirigente partidário, mantendo o mesmo comportamento de sindicalista (ou seja, guiando-se pela máxima do “manda quem banca” e do uso privado – partidário – de recursos coletivos). Eles diziam – entre eles – que “sindicato é fonte de receita e partido é fonte de despesa”. Não apenas muitos candidatos foram extraídos do movimento sindical, mas boa parte das suas campanhas eleitorais (e aqui entra a maioria dos velhos dirigentes do PT) foi feita com recursos de toda ordem desviados do movimento sindical.
Nos movimentos sociais. Cabe dizer, preliminarmente, que a expressão ‘movimentos sociais’ é incorreta. Em geral são organizações hierárquicas, não movimentos. Organizações que, tais como os sindicatos, atuam como correias de transmissão do partido na sociedade e, inclusive, no Estado. O melhor exemplo é o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (de João Pedro Stedile) e o MTST (de Guilherme Boulos). O MST é uma organização política marxista-revolucionária, abrigada (e escondida) dentro de um movimento social, surgido em 1984. O MST tem direção estratégica e todas as demais características de uma organização revolucionária à moda antiga. Mas – atenção – o MST não é um mero aparelho do PT. As relações estratégicas do MST com o PT existem, mas com o “Partido Interno” (a referência aqui, para quem não se recorda, é ao 1984 de George Orwell). Cabe destaque também para o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, que é uma espécie de clone urbano do MST, surgido em 1997.
Nas ONGs. Sob o reinado petista as ONGs passaram, como brincou certa vez Manuel Castells, de organizações não-governamentais à organizações neo-governamentais. Sobretudo depois que chegou ao governo central, o PT passou a financiar as ONGs amigas, que dele ficaram dependentes. Cabe destacar aqui, pelo seu papel pioneiro, a ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, criada em 1991, abrigando, em parte, antigos dirigentes e militantes ou simpatizantes de organizações revolucionárias (algumas clandestinas) que ficaram sem seus aparelhos após a repressão da ditadura militar. Parte desses militantes tinham, inicialmente, uma visão crítica do PT, mas acabaram cedendo diante da expectativa do poder com a ascensão de Lula como principal líder da esquerda brasileira e, depois, com sua eleição e reeleição para a presidência da República.
Nos órgãos estatais. Chegando ao Estado, inicialmente pela eleição de parlamentares e executivos municipais e estaduais e, depois, ao governo federal, há uma mudança clara na correlação de forças. Ocupar o governo e estabelecer maiorias nos parlamentos (por qualquer meio, legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo – alugando parlamentares por meio de mesadas em dinheiro, da liberação de verbas para emendas legislativas ou da nomeação de seus apaniguados para cargos públicos) de sorte a poder conduzí-lo é fundamental para conseguir aparelhar a administração pública, as empresas estatais e os órgãos de controle, até – se for possível – as forças armadas e policiais e controlar o judiciário, seja por meio de nomeações legais, seja através de um processo de sedução ou de captura envolvendo, em alguns casos, a oferta de benesses indiretas e, em outros, a chantagem não declarada, mas insinuada, de revelar segredos comprometedores dos não-alinhados. O PT chegou a propor, por decreto (Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014), durante o governo Dilma Rousseff, a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado (sim, o lulopetismo aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então).
3 – O PAPEL DA IMPRENSA CHAPA-BRANCA
Interpretar e disseminar
O tema já foi tratado parcialmente acima, nos comentários sobre o papel dos militantes nas mídias (a infantaria petista nos jornais e TVs). Mas merece ser aprofundado mais um pouco. A chamada imprensa (os meios profissionais de comunicação) cumpre tarefas fundamentais aointerpretar e disseminar notícias favoráveis à estratégia de conquista de hegemonia; ou melhor, ao disseminar suas próprias interpretações como se fossem notícias.
Transformando opiniões em fatos pela repetição e difusão exaustivas, veículos profissionais de comunicação passaram a fazer parte, para efeitos práticos, de uma espécie de “partido ampliado”. Alguns canais de TV – mesmo incorporando alguns comentaristas críticos do governo (contados nos dedos de uma mão) – viraram centrais de abastecimento de munições para militantes e simpatizantes do partido oficial.
Há pesquisas mostrando que os militantes petistas se informam principalmente pela TV, ao contrário dos bolsonaristas, que preferem as mídias sociais e os programas de mensagens. Os petistas nunca abandonaram o sonho de ter um canal próprio de TV (tipo uma TV Pravda). Não deu certo com a antiga TV Lula, nem com as tentativas mais recentes de ter um canal partidário. Agora eles acham que deu certo com a Globo News e adotaram esse canal como se fosse seu próprio espaço de discussão. Por isso ficam tão indignados e intolerantes quando surge alguém na emissora que, destoando da média dos comentaristas, ousa criticar o governo e suas políticas nacionais e internacionais.
Então, quando aparece um analista emitindo opiniões destoantes daquelas legitimações chapa-branca proferidas por outros comentaristas alinhados ao governo Lula, os militantes iniciam imediatamente uma campanha de cancelamento dos primeiros chamando-os de fascistas para baixo (e aqui vêm os palavrões e as ofensas de todo tipo). Parece uma coisa menor, mas não é. Deve-se sempre olhar os sinais, os sinais fortes e os sinais fracos. O processo de autocratização começa sempre assim, ceifando uma flor singular num canto do jardim…
Se a emissora se deixar capturar por essa patrulha do abafa, que visa a espancar a pluralidade, virando uma espécie de Jovem Pan antiga com o sinal trocado, estará prestando um desserviço ao jornalismo e à democracia. A imprensa é uma instituição fundamental do regime democrático. Pode até, eventualmente, ser favorável a um governo, mas jamais pode aceitar ser parte orgânica do seu sistema de governança – como parece ser o caso.
Foi necessário que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretassem e disseminassem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos do organismo. Mídias comerciais, em alguns casos, transformaram-se em plataformas de lançamento para a guerra nas mídias sociais (ao mesmo tempo em que passaram a ser pautadas por essas últimas). Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, o PT descobriu a importância de infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir ou chantagear os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.
É significativo que o PT sempre tenha defendido o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Mais recentemente, passou a insistir na proposição de leis (ou de reforma de leis aprovadas no parlamento por intervenção política do Supremo Tribunal Federal) que, a pretexto de coibir fake news, criam simulacros de “ministérios da verdade”).
Não se pode esquecer aqui dos papeis dos institutos de pesquisa de opinião e das agências de checagem de notícias. É evidente que parte dessas instituições é simpática ao partido oficial. No caso dos institutos, para dar um exemplo, basta acompanhar a série histórica de pesquisas de intenção de voto de empresas como o IPEC, sempre com resultados fora (acima) da curva favoráveis ao candidato Lula em 2002 – o que ficou patente após o resultado oficial do pleito. Isso não significa necessariamente fraude, falsificação grosseira dos resultados das pesquisas, mas é operado de modo mais sutil, escolhendo uma base de dados mais favorável, o momento azado para a realização de um levantamento, a ordem das perguntas, o modo como estão formuladas e encadeadas etc. No caso das agências de checagem é a mesma coisa: boa parte delas focaliza mais os adversários do que os aliados do partido hegemonista.
Ainda deveriam ser mencionadas organizações como o Sleeping Giants, supostamente dedicadas a combater discursos de ódio e desinformação, que articulam o boicote (na verdade, a chantagem) a patrocinadores tentando sufocar financeiramente opositores do governo – em muitos casos até com justificadas razões. Mas é inegável que seus alvos são escolhidos seletivamente.
4 – O PAPEL DOS JURISTAS PARTIDÁRIOS
“Legalizar” e legitimar
Foi necessário que um contencioso de juristas estivesse pronto para “legalizar” e legitimar as ações do organismo e do seu líder. O principal papel dos juristas é reduzir problemas políticos a problemas legais, com isso evitando juízos políticos desfavoráveis ao organismo e ao seu líder, posto que, de pontos de vista estritamente legais (em geral procedimentais-formais), sempre há uma maneira de defender que não houve delito. Assim, se um julgamento foi anulado por erros processuais, por decurso de prazo ou pela idade avançada do réu, isso passa a significar que o réu foi absolvido e, portanto, que é inocente.
Exemplos de juristas partidários ou a serviço do partido hegemonista são hoje, no Brasil, o chamado Grupo Prerrogativas e várias associações de juizes, procuradores e advogados pela democracia. O Prerrogativas merece destaque. Não se sabe bem qual é a sua natureza jurídica, se tem CNPJ, se é um “movimento social”, se é uma organização da sociedade civil (uma ONG, como a Transparência – esta última, aliás, alvo de seus ataques). O Prerrogativas não apenas “legaliza” e legitima tudo que Lula faz de ilegal e ilegítimo, mas trabalha também para coonestar – com alegações claramente falsas – comportamentos ofensivos à democracia cometidos por organizações revolucionárias, como o MST (outra entidade de natureza misteriosa). Para todos os efeitos se comporta como uma organização para-partidária: seus membros são petistas ou fizeram campanha para o PT. Se mete em assuntos do poder legislativo: militou contra CPIs (como a do MST). Se mete em assuntos do poder judiciário: fez a defesa do ministro Dias Toffoli na imprensa (para incriminar a Transparência Internacional). Recentemente, o coordenador do grupo, para “legalizar” o que fez Lula em comício pró-Boulos, disse que pedir voto em palanque antecipadamente não afronta a lei pois é liberdade de expressão.
5 – O PAPEL DOS FAMOSOS, ARTISTAS E INFLUENCERS
Empatizar e mitificar
O PT foi o primeiro partido a entender que, no âmbito da sociedade, é necessário que diferentes plantéis de famosos, como os artistas de todas as áreas (atores e diretores de novelas e filmes, cantores, compositores e músicos, desportistas etc.), admirados por extensas parcelas da população, contribuam para aumentar a empatia com o organismo e com seu líder, chegando ao ponto de mitificar este último. Entenda-se bem: todas essas celebridades têm o direito, numa democracia, de apoiar um candidato ou o governo de um partido que julgam mais progressista, mais afeito à proteção dos direitos humanos, mais incentivador do mundo dos espetáculos (sobretudo com verbas oficiais) ou mesmo um representante mais fiel dos pobres. Mas não é disso que se trata aqui e sim do resultado de uma ação coordenada. Tudo isso, que deve parecer espontâneo é, em grande parte, organizado – pelo menos inicialmente – pela força política hegemonista. Ultimamente, passaram também a cumprir importante – e decisivo – papel os chamados influencers, como Felipe Neto.
O papel dos famosos, artistas e influencers, como foi dito, não é só gerar empatia pelo líder (Lula) e obter votos para ele quando se candidata, mas também mitificá-lo. Lula seria mais do que uma espécie de líder genial dos povos, seria a própria síntese do povo, semelhante a um demiurgo ou uma quase-divindade. E o próprio Lula, como vimos acima, insiste em alimentar esse mito.
6 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES DO JUDICIÁRIO
Nomear e controlar
Todos os neopopulistas tentam controlar o poder judiciário, em especial as supremas cortes de justiça dos regimes que parasitam. Alguns regimes, que já viraram ditaduras (como os da Venezuela e da Nicarágua), destruiram completamente a independência da justiça e passaram a demitir juízes de carreira ou contrários às suas investidas e a indicar seus esbirros para ocupar os tribunais. Mas outros governos neopopulistas, que parasitam regimes que ainda são considerados democracias (como a Bolívia e não se sabe em que medida o México e Honduras) também intervêm no poder judiciário. Em geral, os objetivos são legalizar a acumulação de mandatos falsificando a rotatividade democrática para se delongar nos governos e, em seguida, reformar as decisões parlamentares contrárias aos seus interesses.
O PT também nomeia membros que lhe são simpáticos no poder judiciário (sobretudo no STF, TSE e STJ) e, inclusive, militantes, como fez com o ex-advogado do partido (Dias Toffoli) e de Lula (Cristiano Zanin) para a suprema corte. Mas vai além. Atualmente (2023-2024), verificando-se minoritário no parlamento, nas mídias sociais e nas ruas, o PT busca compensar essa correlação de forças que lhe é desfavorável “governando” com o STF, ou seja, reformando, no “tapetão”, decisões do Congresso que prejudicam sua estratégia.
No Brasil, particularmente, há um perigo ainda maior: a normalização da atuação política do poder judiciário. Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante, sobretudo no judiciário. As formulações de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’, são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.
O problema é que vai crescendo, entre membros do poder judiciário, a ideia autoritária de “democracia militante” para combater – preemptivamente – ataques à democracia. Se a Justiça vira militante, ela se ideologiza. Deixa de ser imparcial ao esposar uma interpretação particular. E fica então vulnerável a ser controlada, direta ou indiretamente, por um partido.
7 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO PARLAMENTO
Eleger e conduzir
Aqui se trata de eleger o maior número de pessoas para os parlamentos, sobretudo para o Congresso Nacional. O objetivo é fazer maioria nas casas legislativas. Como isso é difícil de ser obtido com força própria ou com forças do próprio campo populista de esquerda e como um partido hegemonista é avesso à alianças (ou melhor, faz alianças quando está fraco para ficar mais forte e, ficando mais forte, mata seus aliados ao final), a tarefa de conduzir o parlamento usa todos os tipos de recursos para aprovar suas pautas e para eleger os presidentes das mesas legislativas. Na história recente do PT temos o exemplo do Mensalão (uma espécie de contribuição regular, não obrigatoriamente mensal, para alugar representantes fisiológicos ou corruptos de outras siglas levando-os a votar com o governo). Recentemente o uso de expedientes como esse ficaram mais difíceis no Brasil com o aumento do poder do parlamento sobre o orçamento (as emendas compulsórias e o chamado orçamento secreto).
8 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO GOVERNO
Eleger e aparelhar
Eleger governantes (executivos) – para ter o poder de nomear e demitir – é central na estratégia do neopopulismo lulopetista. O neopopulismo chega ao governo pelo voto e depois tenta se prorrogar no governo por tempo suficiente para conquistar os centros de decisivos de poder. Aparelhar tudo com militantes e simpatizantes partidários é fundamental: na administração direta, nas estatais, nos órgãos de controle e, se for possível, nas forças armadas e policiais.
É por isso que um partido hegemonista é tão avesso a autonomia de órgãos de Estado, como o banco central, as agências reguladoras e outros órgãos de controle, pois são uma restrição ao seu poder de mandar (nomear e demitir), governamentalizando e partidarizando instituições que deveriam ser de Estado e não de um governo particular. A estratégia do neopopulismo prevê uma privatização partidária da esfera pública.
Uma vez controlando o governo e os órgãos chaves do Estado, o processo de conquista de hegemonia volta-se novamente para a sociedade. Caberá então ao Estado, controlado pelo organismo hegemonista, educar a sociedade para estabelecer sua hegemonia de longa duração sobre ela.
Educar é tudo em um processo de autocratização não-disruptivo (ou seja, que não adote as vias do golpe de Estado ou do auto-golpe, da insurreição ou da guerra popular). Platão, o patriarca do pensamento autocrático ocidental, lançou os fundamentos dessa ação na sua distopia (ou retropia) totalitária, incorretamente intitulada ou traduzida como A República. Não havia, em Platão, um projeto propriamente político e sim um projeto pedagógico, um projeto de educação.
Está certo! Quem quer conquistar hegemonia não se dedica propriamente à política. Seu objetivo é extra-político. Hannah Arendt (1951), em obra ja citada aqui, estudando as maiores experiências autoritárias do século 20, concluiu que “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”. Só um movimento totalitário que consiga se materializar como governo totalitário pode obter, ainda que temporariamente, os resultados de uma autocratização total. Mas isso não significa que movimentos, governos e regimes autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) dos traços que caracterizam os totalitarismos.
Limitações da estratégia neopopulista de conquista de hegemonia
A estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar “por dentro” o “DNA” da democracia, tem muitas limitações.
Os populistas contam com a sua capacidade de permanecer nos governos que conquistam eleitoralmente, violando a rotatividade ou alternância democrática. Eles têm razões para acreditar nessa resiliência. Nenhum partido populista, seja considerado de direita (nacional-populista) ou de esquerda (neopopulista), sai facilmente do poder apenas pelo voto. Os exemplos são fartos.
À direita. o partido de Viktor Orbán não saiu: ele foi reeleito. O partido de Recep Erdogan não saiu: ele foi reeleito. O partido de Narendra Modi não saiu: ele foi reeleito. O partido de Vladimir Putin não saiu: ele foi reeleito. No campo do populismo-autoritário o partido de Donald Trump é uma das poucas exceções: saiu, mas deslegitimou a vitória de Joe Biden e está tentando voltar à presidência dos EUA com amplas chances de vitória.
À esquerda. O partido de Daniel Ortega, na Nicarágua, não saiu: ele foi reeleito n vezes. O partido Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, não saiu: o primeiro faleceu e o segundo, seu sucessor, foi reeleito n vezes. O partido de Rafael Correa, no Equador, não saiu: ele foi reeleito e emplacou seu sucessor Lenin Moreno. O partido de Evo Morales, na Bolívia, não saiu: ele foi reeleito n vezes até que sofreu um contra-golpe parlamentar em reação à sua tentativa de auto-golpe e, depois, elegeu seu sucessor Luis Arce (do mesmo Movimento ao Socialismo) com o qual se desentendeu. O partido de Manuel Zelaya, em Honduras, não saiu: ele foi preso, mas em seguida elegeu sua mulher Xiomara Castro. O partido de Lula e Dilma Rousseff, no Brasil, não saiu: Lula foi reeleito e fez sua sucessora Dilma, que sofreu impeachment. O partido de Fernando Lugo, no Paraguai, não saiu: ele sofreu impeachment. O partido de Maurício Funes, em El Salvador, não saiu: ele fez seu sucessor, Salvador Cerén, da mesma Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional. À esquerda, Cerén é a única exceção (já que Cristina Kirchner, na Argentina, não conta muito ao não ter conseguido emplacar Daniel Scioli seu sucessor, talvez porque ainda estivesse em transição do velho populismo peronista para o neopopulismo contemporâneo; mas ela voltou ao poder como vice de Alberto Fernandez cujo candidato a sucessor, Sérgio Massa, perdeu então as eleições para Javier Milei).
Com as exceções, mencionadas acima, que confirmam a regra, nenhum partido que abrigava esses populistas saiu do governo normalmente apenas pelo voto.
Mesmo assim, essa estratégia é de difícil implantação. Em primeiro lugar, porque ela é muito longa; ou seja, prevê um caminho difícil e arriscado, sujeito a imprevistos de toda ordem: legais e extra-legais, eleitorais ou não.
Por exemplo, um líder populista pode não ser reeleito, quebrando a continuidade da estratégia. Pode sofrer impeachment (como ocorreu com Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012 e com Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016). Seu principal líder pode ser preso por corrupção e outros crimes (como ocorreu com Lula, no Brasil, do início de 2018 ao final de 2019, ficando impedido de concorrer novamente). Pode ser vítima de um golpe ou contra-golpe em resposta a uma tentativa de auto-golpe (como ocorreu com Evo Morales, na Bolívia, em 2019). Pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o candidato de Cristina Kirchner, Daniel Scioli, na Argentina, em 2015); ou seu sucessor pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o sucessor de Maurício Funes, Salvador Cerén, em El Salvador, em 2019). Pode se desentender com seu sucessor (como ocorreu com Rafael Correa, no Equador, que entrou em disputa com Lenin Moreno, em 2018 e com Evo Morales, na Bolívia, que se desentendeu com Luís Arce recentemente).
Em segundo lugar, é uma estratégia que coloca desafios quase insuperáveis em países em que a democracia está minimamente consolidada. Depois da chegada eleitoral ao governo, o líder populista precisa ampliar a duração de seu mandato (o que as leis costumam proibir). Para tanto, tem que intervir no judiciário (em geral nas supremas cortes), substituir juízes (ou ministros) por militantes ou simpatizantes de seu partido (o que também não pode ser feito sem violar as leis vigentes). Não havendo – como no caso do Brasil – correlação de forças favorável que permita uma quebra do arcabouço legal, rasgando-se a Constituição, a solução é eleger sucessores do mesmo partido por tempo suficiente para alterar a composição das cortes de justiça lentamente (um por um) – o que leva à primeira dificuldade apontada acima (a extensão característica desse caminho).
Consideradas essas duas primeiras dificuldades, é explicável que partidos e líderes neopopulistas tenham cedido à tentação de converter seus regimes em ditaduras encurtando o caminho para a tomada do poder (como aconteceu na Venezuela de Chávez e Maduro e na Nicarágua de Ortega).
Outro desafio, que pode ser quase insuperável em algumas circunstâncias, é conseguir o controle das forças armadas e policiais. Em países – como, novamente, o Brasil – em que essas forças são antipáticas às ideias e práticas populistas de esquerda, isso requer também um longo caminho de intervenção legal nas listas de promoção de oficiais superiores, de mudança dos currículos da formação militar e de troca dos professores ou instrutores encarregados dessa atividade. A direção nacional do PT chegou a colocar a necessidade dessas providências, mas não teve força suficiente para levá-las a cabo.
Há ainda o desafio de conseguir recursos de monta, suficientes para financiar as operações dos militantes em todos as áreas de atividades, na sociedade e no Estado. Isso, em geral, abre um flanco legal (criminal). Não por acaso, muitos populistas de esquerda foram acusados de corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha (ou de organização criminosa), sendo então processados, condenados e presos. Não aconteceu somente no Brasil, onde todos os principais dirigentes petistas – sobretudo presidentes, ex-presidentes e tesoureiros da organização – acabaram encarcerados.
Por último, há o desafio de montar uma coalizão internacional de apoio. No âmbito da América Latina isso foi feito com o Foro de São Paulo e várias outras iniciativas oficiais (tipo Unasul), ou mesmo oficiosas ou informais. Com a ascensão de um eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua), ficou mais fácil alcançar tal objetivo, inclusive via BRICS (uma articulação política escondida sob a fachada de bloco econômico, coalhada de ditaduras e regimes eleitorais parasitados por populismos em que não figura nem uma democracia liberal) ou via o delírio chamado Sul Global (um substituto do velho terceiro-mundismo anti-imperialista), mas abre um flanco político perigoso que afasta os regimes eleitorais parasitados por governos neopopulistas (México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul etc.) do concerto dos países democráticos, sobretudo das democracias liberais (EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia). Ou seja, os países que tomam esse caminho perdem o discurso de que são democráticos ou de que estão defendendo a democracia ao polarizar seus ambientes políticos internos sob o pretexto de combater o populismo-autoritário (convertendo falsamente todos os que não estão subordinados às suas diretivas em extrema-direita, com o objetivo de impedir o surgimento de oposições democráticas).
É na política externa que o lulopetismo revela claramente o seu caráter não democrático – o que vale também para seus homólogos no campo do populismo de esquerda. Todas essas vertentes populistas: são contrárias (ou indiferentes) ao fortalecimento da União Europeia; discordam do apoio político, financeiro e militar à Ucrânia invadida pela Rússia; não apoiam as sanções a Putin; não apoiam a democracia isralense (não se fala aqui de apoiar o governo populista-autoritário de Netanyahu e sim de defender a único regime democrático do Oriente Médio); não condenam claramente o terrorismo do Hamas, do Hezbollah e do IRGC (a Guarda Revolucionária Iraniana ou Pásdárán); não repudiam o antissemismo (quando disfarçado de antissionismo); não defendem Taiwan contra as ameaças de invasão e anexação da ditadura chinesa; não defendem as democracias liberais contra as investidas do eixo autocrático; e não recusam o anti-americanismo (pelo contrário, o reforçam). Esses posicionamentos, de verificação bem prática, são suficientes para definir um caráter político avesso à democracia.
O fato de o nacional-populismo ou populismo-autoritário, dito de extrema-direita, ser uma ameaça (social) de curto prazo, mais agressiva e boçal à democracia, não normaliza, nem minimiza, a ameaça (política) de médio e longo prazos, do neopopulismo dito de esquerda.