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Foto: Ali Haj Suleiman

O lamento da esquerda pelo fim da ditadura de Bashar Assad

Em várias cidades da Síria, multidões fizeram festa para celebrar o fim da ditadura de Bashar Assad. Especialmente em Damasco, a capital, milhares de pessoas ocuparam ruas e praças para expressarem alegria e júbilo pela destruição de uma tirania brutal que, passando de pai para filho, já durava mais de 50 anos.

Tais manifestações foram registradas, com abundantes imagens que percorreram o mundo pelos canais de TV e pela internet. Não obstante, parte da esquerda desprezou o povo sírio, declarou a derrota de Assad como trama pérfida do imperialismo e derramou-se em desalentado pranto pelo fim de uma das mais ignóbeis ditaduras da história.

Certamente, não foi toda a esquerda: existem correntes de uma esquerda moderada, como o trabalhismo e a social-democracia, que conservam o juízo e honram a convivência democrática. Todavia, é a estridente esquerda sul global que se vem fazendo ouvir mais intensamente.

Essa esquerda autoritária, inimiga declarada da civilização ocidental, fez opção preferencial pelas autocracias e chora a ditadura que agora se foi.

Saydnaya, “matadouro humano”

As perversidades do regime sírio estão agora em foco, com destaque para Saydnaya, prisão militar ao norte de Damasco, um local de tortura e matança do regime de Bashar Assad.

Qualificada como um “matadouro humano” por organizações de direitos humanos, essa prisão foi construída pelo pai de Bashar, o então ditador Hafez Assad. Desde então, tornou-se esconderijo de atrocidades, onde milhares de pessoas foram detidas, torturadas e executadas:

“Numa das salas, os corpos dos presos eram esmagados numa prensa…”; “Depois do esmagamento, segundo relatos dos rebeldes, o que sobrava dos cadáveres era dissolvido em ácido”, diz o trecho de uma reportagem da Euro News.

A mesma matéria denuncia uma verdadeira política de extermínio em Saydnaya: “Entre 2011 e 2015, 13 mil pessoas foram enforcadas nesta prisão, de acordo com a Anistia Internacional – várias dezenas de execuções por enforcamento foram ali consumadas todas as semanas.”

Pepe Escobar e Jeffrey Sachs

Nada disso, porém, comove a hipócrita esquerda sul global, cujo discurso tem se concentrado em apontar participação da Otan e de Israel na campanha contra o regime deposto e em lamentar a queda de Bashar Assad como uma derrota na “luta anti-imperialista”.

Pepe Escobar, por exemplo, “jornalista” brasileiro, inflamado defensor da tirania de Putin na Rússia e da tirania dos aiatolás no Irã, definiu a queda de Assad, em entrevista à TV 247, como “um dos espetáculos mais tristes da história” e lamentou o fim da ditadura de Assad como “uma derrota estratégica enorme para a Rússia e para o Irã”.

Já o economista norte-americano Jeffrey Sachs, que se tornou querido da extrema esquerda por sua predisposição contra Israel e os EUA, escreveu o seguinte, em artigo no site progressista Common Dreams: “[…] Sem dúvida, Assad muitas vezes cometeu erros e enfrentou um descontentamento interno severo, mas seu regime foi alvo de colapso por décadas pelos EUA e Israel.”

Como podemos ver, Jeffrey Sachs concede, en passant, que Assad cometeu erros e enfrentou descontentamento. Porém, esta miserável concessão diante dos horrores de mais de 50 anos de atrocidades dos Assad é apenas um cisco em meio a um rio de lágrimas vertidas em honra da ditadura morta ao longo do referido artigo.

O futuro da Síria

Não sendo possível a quem tem bom senso negar a importância do fim de uma tirania de meio século, ainda assim, há reais motivos de preocupação com o futuro da Síria.

Como já amplamente divulgado, as forças rebeldes vitoriosas são compostas por facções heterogêneas que vão de grupos moderados até fundamentalistas islâmicos radicais.

A facção principal, o grupo Hay’at Tahrir Sham (HTS) é uma organização política e paramilitar jihadista. O líder desse grupo, Abu Mohammed Jawlani foi chefe de uma antiga afiliada da organização terrorista Al Qaeda.

Porém, desde que abriu dissidência da sua antiga organização, Al Jolanne passou a dar vazão a um discurso mais moderado e tenta mostrar abertura para o diálogo; se há fortes motivos para preocupação, não é, porém, descabido que se alimentem esperanças.

O presidente Joe Biden mandou mensagem afirmando que os EUA querem colaborar para levar adiante o processo de transição para uma Síria independente e soberana; porém, marcando a posição de continuar lutando contra o Estado Islâmico.

Países europeus como França, Espanha, Inglaterra, Polônia, Itália e Alemanha mandaram mensagens semelhantes, enfatizando a construção da soberania Síria e alertando contra o perigo dos extremismos.

Enfim, querem ajudar. Já os esquerdistas sul globalistas querem atrapalhar. Se pudessem, retornariam com o ditador Assad e reativariam a prisão de Saydnaya.

Foto: Reuters.

Barbas de Molho

O ditado “colocar as barbas de molho” é uma expressão que significa a necessidade de paciência, cautela e prudência, algo que se aplica de forma perfeita em relação aos últimos acontecimentos na Síria. Ao se despedir de Bashar al-Assad, o país está livre de um ditador brutal. Entretanto, nada garante que o futuro seja auspicioso, especialmente sob o domínio de Abu Mohammed al-Jolani, chefe do grupo islamista HTS, uma dissidência da Al-Qaeda que assumiu o controle do país.

A Síria é formada pela confluência de etnias e grupos religiosos de difícil concertação, dentre eles muçulmanos xiitas, sunitas e alauítas, drusos, além de cristãos e judeus. Cerca de metade dos habitantes do país é de origem árabe, 15% são alauítas, 10% curdos, aproximadamente 10% são levantinos e os 15% restantes pertencem a diversos outros grupos étnicos, como nusairis, armênios e assírios. Um mosaico étnico-religioso de difícil equilíbrio, especialmente em uma região de constante conflito.

A formatação atual nasceu com o fim da Primeira Guerra Mundial, que repartiu o espólio do Império Otomano mediante o acordo Sykes Picot. Esta divisão arbitrária dos antigos territórios otomanos tem sido, desde então, fonte de instabilidade e conflitos na região. O território atual da Síria e Líbano ficou a cargo da França. O mandato francês se iniciou em 1923 e foi até 1946.

A lógica do Império Otomano, que tolerava etnias, povos diversos, tribos, clãs, sistemas de governança de todos os tipos e valores, com a única obrigação de pagar tributos ao Sultão, havia sido extinta. Se durante quatro séculos, cristãos, judeus, xiitas, sunitas, coptas, drusos, gregos ortodoxos, conviviam dentro das fronteiras do Império sem maiores conflitos, existia agora a perspectiva de criação de um país, onde repousavam diversas nações. Uma receita perfeita para o caos.

A lógica francesa acabou por dividir a Síria em seis territórios, Damasco, Alepo, Estado dos Alauitas, Jebel Druzo, Halay e Sadnjak de Alexandreta, uma divisão que tentava, dentro dos limites possíveis, manter a autonomia étnico-religiosa das regiões. O risco da sobreposição de um grupo em detrimento de outros sempre fez parte da história do país e se tornou um perigo contínuo, porém se transformou em uma palpável realidade com a chegada de Hafez al-Assad ao poder em 1971.

O mosaico étnico-religioso do passado é uma realidade ainda mais intrincada no presente, com ainda sérios agravantes, como o enorme êxodo de sírios que buscou refúgio em outros lugares do mundo. O risco está em o país se tornar mais um protetorado islâmico radical como o Afeganistão ou um novo Iraque. O país, defendido por anos por milícias, detentor de bases russas e aliado preferencial do Irã na região, está mergulhado na incerteza e na possibilidade real de guerra civil ou mesmo o massacre de alguma das minorias que fazem parte deste intrincado jogo de poder.

A queda de Bashar al-Assad é certamente o fim de um ciclo de terror, porém, é também o encerramento de um governo laico que conseguiu durante cinco décadas manter os pilares de unidade de um país fraturado. O futuro pode guardar um governo com traços teocráticos, alianças perigosas e a manutenção dos porões de um regime ditatorial. Como disse, a queda de Assad deve ser celebrada, mas é momento de colocar as barbas de molho.