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Foto: Sérgio Lima/Poder360 .

Crise de Identidade

Em 1988 o legislador elaborou uma carta constitucional de claro teor parlamentarista. A aposta era esperada, afinal, em 1993 o Brasil encararia um plebiscito que poderia mudar o sistema de governo. Faltou combinar com os russos, como diria Garrincha, e o eleitor optou pelo presidencialismo. O resultado foi o modelo popularmente conhecido como “presidencialismo de coalizão”, onde o Planalto fatiava o governo entre os aliados diante da necessidade de formar maioria em um sistema fragmentado.

Cerca de 30 anos antes, outra tentativa de mudança no tapetão havia sido desenhada, com a adoção do sistema parlamentar em meio ao mandato de João Goulart. O objetivo era evitar um golpe e a manutenção do mandato do Presidente, porém confiscando seus poderes, entregando-os para uma espécie de Primeiro-Ministro. Inicialmente escolhido para chefiar o governo, o mineiro Tancredo Neves acabou renunciando, o que abriu uma crise sucessória envolvendo os nomes de San Tiago Dantas, Auro de Moura Andrade e Brochado da Rocha. Instaurado em 1961, o incipiente parlamentarismo foi derrotado no referendo de 1963, devolvendo o país ao presidencialismo tradicional.

Agora uma nova tentativa volta à baila, entretanto, muito mais para normalizar uma situação de fato, do que uma iniciativa para mudar as regras do sistema. De fato, o país já vive em um modelo parlamentar. Torto, é verdade, mas parlamentar. Um movimento que começou nos anos Dilma, mas que se intensificou enquanto Bolsonaro ocupava o Planalto. Hoje, com o controle do orçamento em suas mãos, o parlamento tomou para si, indiretamente, a função de governar, ou seja, assumindo o bônus de direcionar recursos, porém, sem qualquer tipo de ônus ou desgaste.

Com o objetivo de normalizar institucionalmente esta situação, surgiu a discussão do semipresidencialismo na Câmara dos Deputados. O modelo é inspirado no sistema francês onde o Presidente, chefe de estado, é eleito pela população e o primeiro-ministro, chefe de governo, indicado pelo Presidente, depende da confiança do parlamento. Este deve liderar seu gabinete, formado pelo conselho de ministros. Neste caso, o controle do governo se divide, assim como o poder, responsabilizando o Congresso Nacional e o Presidente, que podem inclusive derrubar o Primeiro-Ministro.

Fato é que diante do atual modelo, com a autonomia do parlamento por meio das emendas, houve o sepultamento do Presidencialismo de Coalizão, uma vez que este mecanismo depende do poder do governo em manter uma maioria por intermédio da alocação de recursos. Hoje estamos diante de um novo sistema. Se 20 anos atrás, mais de 70% dos recursos repousavam sob o domínio do governo, hoje apenas 7% estão sob seu controle. O parlamento tornou-se senhor do orçamento. Formar um base de apoio do governo no Congresso Nacional da forma tradicional tornou-se impossível.

Mais do que mudar o sistema de governo, a proposta vem reconhecer e disciplinar uma mudança que de fato já ocorreu no interior do modelo político, responsabilizando seus agentes eleitos de acordo com as funções que exercem, sejam deputados, senadores e o próprio Presidente da República, atualmente um legítimo pato manco diante das atuais regras. Resolver esta crise de identidade se tornou ponto central de nosso país, que vive um sistema disfuncional, errático e desorientado, incapaz de gerar as políticas públicas e regras de controle necessárias para a condução de um governo.

Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

A novela do corte de gastos do governo Lula: afinal, sai ou não sai?

O governo Lula encontra-se em uma encruzilhada perigosa: a promessa de cortar gastos paira no ar como um mantra político, mas a ação parece eternamente adiada. A popularidade do presidente está em queda, conforme indicam as pesquisas, e o prazo para lidar com a crise econômica está se esgotando. Com um governo fragilizado, sem poder de barganha e refém de um Congresso pouco cooperativo, a pergunta central é clara: como será feito esse corte?

Os desafios são imensos. De um lado, há um funcionalismo público abarrotado de privilégios e salários desproporcionais, ironicamente defendidos por um Judiciário que consome uma fatia considerável do orçamento e exige ainda mais aumentos. Do outro, uma economia debilitada, onde as famílias brasileiras estão atoladas em dívidas enquanto o governo parece mais preocupado em ampliar benefícios para quem já tem demais.

Enquanto isso, a única ação concreta do governo foi escancarar a lista de empresas e influenciadores que usufruem de incentivos fiscais questionáveis. Nomes como Felipe Neto, Virgínia e gigantes empresariais figuram nessa lista, expondo isenções que somam centenas de milhões de reais. Esses privilégios fiscais, justificados originalmente pela pandemia, seguem sendo renovados como se fossem indispensáveis. É um deboche com o cidadão comum, que luta para comprar itens básicos enquanto assiste ao governo patrocinar luxos desnecessários.

A questão mais amarga é que, mesmo diante dessa pressão, o governo parece incapaz de enfrentar os problemas estruturais do país. Prometer reforma administrativa é quase um esporte olímpico entre os políticos brasileiros, mas tirá-la do papel significa mexer com interesses instalados em todas as esferas do poder. Quem está “mamando” nas benesses do Estado dificilmente abrirá mão de seus privilégios. Assim, a reforma administrativa segue sendo uma ideia platônica: admirada, mas jamais realizada.

O problema vai além da inação. Existe uma narrativa conveniente de que cortar gastos equivale, automaticamente, a retirar recursos dos mais pobres. Esse discurso, embora popular, é utilizado para mascarar a incapacidade de mexer nas estruturas que realmente consomem o orçamento público. Não é uma questão de prejudicar programas sociais, mas de enfrentar privilégios profundamente enraizados. No entanto, essa tarefa hercúlea parece estar fora da agenda do governo Lula.

Enquanto isso, a economia cobra seu preço. A avaliação de um presidente é inevitavelmente atrelada ao bolso do povo. Quando os brasileiros estão viajando, comprando eletrodomésticos ou fazendo churrasco, o governante é visto como um sucesso, mesmo que ele tenha pouco a ver com essa prosperidade. Mas quando os preços disparam e até o iogurte vira item de luxo no carrinho de compras, o cenário muda rapidamente. O atual governo está sentindo esse impacto: a promessa de picanha e cerveja na mesa se transformou em um símbolo de decepção.

A grande ironia é que o governo Lula conta com um escudo poderoso: o silêncio de boa parte da imprensa. Se fosse Bolsonaro, certamente haveria um massacre midiático diário. Dois anos prometendo cortes que não chegam seriam motivo de editoriais inflamados e críticas incessantes. Para Lula, entretanto, a paciência parece infinita. Essa blindagem, no entanto, não engana o povo, que sente na pele os efeitos da falta de ação.

Resta saber se o corte de gastos sairá do campo das promessas antes que a conta chegue. E ela sempre chega. Caso contrário, não será apenas a popularidade de Lula a desabar. Será o brasileiro comum que pagará, mais uma vez, pelos erros de um governo que insiste em adiar o inevitável.