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Foto: REUTERS - Elisabeth Mandl.

A última flor da Primavera Árabe

O regime cruel do ditador sírio Bashar Al-Assad foi derrubado, no final de 2024, pelo grupo militante  Hayat Tahrir al-Sham (HTS), após longa guerra civil, que teve seus início na onda de protestos da chamada Primavera Árabe. Quando uma série de protestos se espalhou pelo mundo árabe levando às ruas milhares de pessoas fartas dos abusos de diversas ditaduras que se espalhavam pelo chamado mundo árabe.

A primavera como esperança de governos mais democráticos e do rule of law como norma nas relações entre cidadãos e os diversos estados da região, não logrou seus resultados. Ditaduras caíram, mas logo o vácuo causado pela queda dos “homens fortes” resultou em conflitos sectários explorados pelo jogo das potências mundiais e dos líderes regionais. E novas autocracias foram se construindo.

Quando a pressão dos protestos da primavera começou a ameaçar Assad, ele construiu uma intrincada rede de apoio interna e balanceou e usou a seu favor interesses geopolíticos de outros atores, como Irã, Hezbollah e Rússia. Criando condições de sustentar o lado do regime na guerra civil.

Essa aliança de sustentação dotou o regime de meios operacionais e capacidade bélica para se manter no poder e enfrentar inimigos como o ISIS, Al-Qaeda e a oposição síria, isso para resumir os muitos atores numa guerra civil que começou, em 2011. Estimativas colocam os números de mortos neste conflito em mais de 600 mil pessoas.

O status-quo da guerra civil na Síria começou a se alterar por uma série de fatores externos e internos. No campo externo a capacidade logística da Rússia e principalmente sua capacidade coordenação e controle tem sido esgarçada no prolongado conflito na Ucrânia, diminuindo consideravelmente sua capacidade de investir na preservação do regime de Assad.

Outro aliado importante o Irã sofreu uma série de baixas importantes em sua liderança militar para a região e sofreu ataques importantes em Israel, que mostraram fragilidades reais cujo discurso e propaganda do regime persa pretendia manter encoberto. A liderança do Hezbollah foi dizimada por Israel.

Apesar desse cenário, a velocidade da queda do governo de Al-Assad, o avanço não contestado do grupo militante Hayat Tahrir al-Sham (HTS), um dos diversos grupos militantes. Esse grupo nasceu de uma célula da Al-Qaeda que rompeu com o movimento principal, mas ainda é mantido nas listas de terroristas de Estados Unidos e União Europeia.

Até aqui o grupo HTS tem se mostrado favorável a construir um governo de conciliação, mas muitas variáveis ainda se mantêm ocultas para uma avaliação esperançosa para o futuro da governabilidade Síria, ainda mais por que a fraturas continua existindo, ainda há a questão curda e como esse grupo militante foi se manter em locais cosmopolitas como Damasco. E ainda há conflitos e outros grupos com apoio Turco, que geram muitas incertezas para a região.

Uma Síria fragmentada apresenta um dilema de segurança para Israel que intensificou seus ataques aéreos à Síria na tentativa de negar recursos bélicos, como mísseis, armas químicas, para o grupo militante HTS. E aumentou a presença militar nas colinas de Golã.

A perda da Síria como base para sua frota no mediterrraneo e como parte de sua rede logística em ações na Líbia apresenta um problema complicado para a estratégia russa no Oriente Médio e Norte da África.

A queda de Assad é provavelmente a última flor da primavera árabe, regada pelo sangue de centenas de milhares de pessoas e com muitos espinhos, alguns ainda ocultos.

Foto: Reuters.

Barbas de Molho

O ditado “colocar as barbas de molho” é uma expressão que significa a necessidade de paciência, cautela e prudência, algo que se aplica de forma perfeita em relação aos últimos acontecimentos na Síria. Ao se despedir de Bashar al-Assad, o país está livre de um ditador brutal. Entretanto, nada garante que o futuro seja auspicioso, especialmente sob o domínio de Abu Mohammed al-Jolani, chefe do grupo islamista HTS, uma dissidência da Al-Qaeda que assumiu o controle do país.

A Síria é formada pela confluência de etnias e grupos religiosos de difícil concertação, dentre eles muçulmanos xiitas, sunitas e alauítas, drusos, além de cristãos e judeus. Cerca de metade dos habitantes do país é de origem árabe, 15% são alauítas, 10% curdos, aproximadamente 10% são levantinos e os 15% restantes pertencem a diversos outros grupos étnicos, como nusairis, armênios e assírios. Um mosaico étnico-religioso de difícil equilíbrio, especialmente em uma região de constante conflito.

A formatação atual nasceu com o fim da Primeira Guerra Mundial, que repartiu o espólio do Império Otomano mediante o acordo Sykes Picot. Esta divisão arbitrária dos antigos territórios otomanos tem sido, desde então, fonte de instabilidade e conflitos na região. O território atual da Síria e Líbano ficou a cargo da França. O mandato francês se iniciou em 1923 e foi até 1946.

A lógica do Império Otomano, que tolerava etnias, povos diversos, tribos, clãs, sistemas de governança de todos os tipos e valores, com a única obrigação de pagar tributos ao Sultão, havia sido extinta. Se durante quatro séculos, cristãos, judeus, xiitas, sunitas, coptas, drusos, gregos ortodoxos, conviviam dentro das fronteiras do Império sem maiores conflitos, existia agora a perspectiva de criação de um país, onde repousavam diversas nações. Uma receita perfeita para o caos.

A lógica francesa acabou por dividir a Síria em seis territórios, Damasco, Alepo, Estado dos Alauitas, Jebel Druzo, Halay e Sadnjak de Alexandreta, uma divisão que tentava, dentro dos limites possíveis, manter a autonomia étnico-religiosa das regiões. O risco da sobreposição de um grupo em detrimento de outros sempre fez parte da história do país e se tornou um perigo contínuo, porém se transformou em uma palpável realidade com a chegada de Hafez al-Assad ao poder em 1971.

O mosaico étnico-religioso do passado é uma realidade ainda mais intrincada no presente, com ainda sérios agravantes, como o enorme êxodo de sírios que buscou refúgio em outros lugares do mundo. O risco está em o país se tornar mais um protetorado islâmico radical como o Afeganistão ou um novo Iraque. O país, defendido por anos por milícias, detentor de bases russas e aliado preferencial do Irã na região, está mergulhado na incerteza e na possibilidade real de guerra civil ou mesmo o massacre de alguma das minorias que fazem parte deste intrincado jogo de poder.

A queda de Bashar al-Assad é certamente o fim de um ciclo de terror, porém, é também o encerramento de um governo laico que conseguiu durante cinco décadas manter os pilares de unidade de um país fraturado. O futuro pode guardar um governo com traços teocráticos, alianças perigosas e a manutenção dos porões de um regime ditatorial. Como disse, a queda de Assad deve ser celebrada, mas é momento de colocar as barbas de molho.