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Segurança Alimentar: A estratégia multidimensional de Putin

A invasão russa na Ucrânia é conseqüência da cosmovisão que alimenta a ideologia eurasiana prevalente nas cúpulas militares, políticas e religiosas da Rússia atual e um dos pilares dessa visão de mundo é que a Rússia sofre um cercamento de uma frente organizada ocidental que visa destruir o jeito russo de viver. Assim, para escapar do cercamento e ocupar o lugar que essa ideologia considera natural da Rússia no mundo é preciso desarmar a frente unida que enfrenta a Rússia e criar um espaço controlado direta ou indiretamente que sirva de tampão entre as fronteiras russas e a Europa ocidental.

Nesse contexto, resta claro que Putin precisa criar divisões entre seus aliados, subverter seus valores democráticos assim influenciar a opinião pública e aproveitar divisões internas nos adversários. E uma arma poderosa para isso é a pressão econômica e de segurança alimentar e o que o mundo assiste hoje na Ucrânia é aplicação dessa estratégia multidimensional.

Todos os observadores internacionais, do casual ao profissional, conseguiram antever que uma guerra em uma região conhecida pela produção agrícola afetaria o mercado global de alimentos. Era esperado que a própria movimentação de tropas e os combates nas regiões produtoras e os bloqueios a navios e danos secundários as estradas e infraestrutura gerariam quedas nas colheitas e na exportação dos grãos ucranianos.

O que muitos não anteciparam era a campanha deliberada de ataque a produção agrícola ucraniana, batizada em russo como “operação agricultura”, que consiste entre outras medidas de infestar os campos ucranianos de minas terrestres, ataques tendo como alvo principal a infraestrutura agrícola como silos, unidades de processamento, estrada, ferrovias, portos, galpões, campos e fazendas além das perdas humanas da mão de obra desse setor. As perdas desse setor são contabilizadas em torno de 80 bilhões de dólares no período do conflito.

Entre os principais clientes das exportações de grãos ucranianos estão países africanos, do Oriente Médio e a China, o que gerou uma pressão considerável para que a Rússia permitisse o escoamento da produção agrícola ucraniana pelo Mar Negro. A China, ciente da pressão que a Segurança Alimentar tem na manutenção de seu regime, encontrou no Brasil fornecedores alternativos do milho que precisava e com certeza esse fato contribuiu para que a Rússia pudesse romper em julho de 2023 esse sistema de escoamento voltando a atacar a infraestrutura de exportação ucraniana.

Essa estratégia nega aos ucranianos acesso a renda da exportação o que contribui ainda mais para queda do PIB e dificulta seu esforço de guerra. A Rússia substituiu a Ucrânia em muitos desses mercados afetados, garantindo ainda que seja vista positivamente por várias correntes de opinião nessas regiões e como parceiro a não ser irritado de diversos governos dependentes de importação de alimentos.

A Ucrânia tem sido capaz de escoar parte da sua produção para a União Européia, mas o fluxo repentino de grãos para esses mercados tem causado queda nos preços, o que tem instado muitos fazendeiros a protestarem. Esse descontentamento é aproveitado pela máquina russa de propaganda e usada para manipular eleições e discussão publica criando um sentimento “anti-ucraniano”. Caso seja bem-sucedida essa estratégia pode gerar paralisia nos mecanismos regionais como OTAN ou mesmo condenar a Ucrânia a ser anexada pela Rússia.

A tudo isso se soma que os países de menor desenvolvimento e os países em desenvolvimento foram, desde a pandemia de Covid-19, duramente afetados pela inflação dos preços de alimentos e muitos governos não tem espaço para acomodar ou subsidiar preços de alimentos para suas populações, o que expõe uma parcela dessas pessoas ao terrível espectro da insegurança alimentar, ou seja, de não ser capaz de conseguir comprar alimentos e seus governos e entidades civis não terem capacidade para suprir essa carência.

A estratégia via agricultura está conseguindo contribuir para gerar e ampliar insegurança alimentar no mundo, sentimento anti-ucraniano, divisão entre os membros da OTAN e grandes lucros com ampliação de exportações russas, bem como acesso a novos mercados, além dos ganhar em soft power da propaganda pró-russa e, sobretudo, causar danos econômicos e grande sofrimento humano na Ucrânia.