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A França tomba nas mãos da extrema esquerda e do Islã

As redações ao redor do mundo respiram aliviadas, a aterrorizante “extrema direita” não venceu na França. A esdrúxula e incongruente união de última hora entre o campo macronista (Ensemble) e a Nova Frente Popular (França insubmissa, ecologistas, socialistas e comunistas) conseguiu – em uma reviravolta política que o Le Figaro descreveu como “surpresa monumental e um verdadeiro salto no desconhecido” – bloquear a temida ascensão do partido de Marine Le Pen. A barreira contra o Rassemblement Nationale deu certo, mas lançou a França no colo da extrema-esquerda.

Como assim extrema esquerda? Existe isso? Existe e acabou de obter uma grande vitória na França. Mas ela só existe no mundo real, não consta no vocabulário de boa parte dos jornalistas, que fizeram reserva de mercado das expressões “extrema”, “ultra” e “radical” para o outro lado do espectro político.

O cronista Eduardo Affonso se referiu a esse estranho fenômeno como um processo de “mexicanização da política e da linguagem”. Onde deveríamos encontrar reportagens ou análises políticas, encontramos comentário de novela mexicana:

“Mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho)”, escreveu Affonso.

Niilismo

Eu não tenho esse talento para escrever crônica, não possuo essa irreverência inteligente capaz de apontar o nó cego de uma questão séria, de modo leve, e fazer rir. Há certo peso na minha escrita. Ela é um pouco sombria. O mundo que vejo é sombrio. É um mundo que não percebeu que por trás da perda de sentido da linguagem está uma perda real de sentido, um niilismo que está gradualmente sendo substituído por novas ideologias, por novas religiões políticas.

E aqui não pretendo afirmar que aquilo que estão chamando hoje de “extrema-direita” seja a resposta adequada a essa crise. A própria direita política, inclusive a brasileira, parece não ter consciência de si nem do peso da sua história. Entendem-se como cidadãos de bem, belos e morais, esquecendo-se da quantidade de mal que a tentativa de introjetar na estrutura política e administrativa do Estado uma concepção moral absoluta já causou.

O que me parece é que, à esquerda e à direita, há muitos que já não identificam suas próprias raízes nem trazem consigo a consciência histórica dos males que a radicalização desses posicionamentos trouxe à humanidade.

Filosofia, política e linguagem

Um dos problemas básicos da filosofia tem sido o estudo da relação entre o ser e a linguagem ou a coisa e seu significado. Se atentarmos para isso, veremos que muitos problemas filosóficos poderão ser resolvidos com uma análise da linguagem, o que não reduz o escopo da filosofia, uma vez que o que resta como problematizável após a depuração dos falsos problemas é justamente aquilo que cumpre analisar com o rigor filosófico de quem se debruça sobre o real e não sobre o discurso.

O discurso político é o mais problemático do ponto de vista de uma abordagem filosófica porque faz parte do político o manuseio conceitual inadequado para fins de poder. Conjugado a isso, tem-se ainda a ambiguidade própria dos conceitos aí formulados, que não possuem a rigidez epistemológica de uma definição própria das ciências “não humanas”, nem a objetividade pretendida por aqueles que querem impor sua ideologia.

Faz parte do jogo político essa pretensão e essa ambiguidade, mas também faz parte do esforço de compreensão tentar limpar o terreno discursivo antes de tratar os problemas, deixando claro que os conceitos da ciência política não são estáticos nem unívocos.

Palavras como democracia, esquerda, direita, fascismo, liberalismo, conservadorismo, etc. não têm como referente algo fixo, com propriedades imutáveis, mas a própria experiência humana. Há uma experiência originária fundante do próprio conceito, que precisa servir de referência, mas há também as oscilações posteriores de significado, que se relacionam com as novas experiências históricas e com a história do uso que se faz do próprio conceito em questão.

“O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia”, escreveu Hannah Arendt no prefácio à sua obra Origens do totalitarismo.

Não se trata de direita e esquerda. Ambas descambaram nos regimes totalitários. Trata-se do ser humano e de sua dignidade. Pouco importa se um ou outro lado do espectro político arvora-se retoricamente defensor dessa dignidade. Nesse momento decisivo, pouco importa o discurso, mas a ação concreta, a oposição firme e não ambígua a tudo aquilo que é indefensável porque fere a humanidade na sua dignidade.

A extrema esquerda intolerante e antissemita

O mais proeminente e o mais radical dos líderes da aliança da esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, foi o grande vitorioso dessa eleição.

Mélenchon, que em certa ocasião chegou a bradar “La République, c’est moi!”, discursou logo após os primeiros resultados, exigindo que o presidente Emmanuel Macron chame a Nova Frente Popular para formar o governo. Segundo ele, após a vitória do NFP, Macron deve “sair, ou nomear um primeiro-ministro das nossas fileiras”. A aliança, disse ele, “está pronta para governar”.

Jordan Bardella (RN), por sua vez, lamentou que o resultado da votação tenha jogado “a França nos braços da extrema esquerda”.

O Rassemblement National não chegou ao poder dessa vez, mas ainda reúne um terço dos eleitores e suas pautas principais continuarão a se impor. A direita populista continuará forte na França e no mundo porque as pessoas se saturaram da hipocrisia de uma esquerda que segue à risca intelectuais amorais como Herbert Marcuse que, no texto “Repressive Tolerance”, negou o valor universal da tolerância para pregar literalmente “intolerância contra os movimentos da direita e tolerância aos movimentos da esquerda.”

Desde 7 de outubro de 2023 essa hipocrisia deixou de ser apenas estúpida para se tornar repulsiva. A esquerda, que retoricamente afirma estar do lado dos mais fracos, tolerou, justificou ou comemorou o pogrom bestial perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense.

A França, outrora palco da revolução em meio a qual os conceitos de direita e esquerda adquiriram seu significado político, sucumbiu, mais uma vez, ao radicalismo quando achou que seria uma boa ideia unir esquerda e extrema-esquerda antissemita numa “Nova Frente Popular”.

Essa aliança de extrema-esquerda, que saiu vitoriosa nessas eleições devido à renúncia de muitos candidatos macronistas em favor de candidatos da NFP que pudessem vencer o RN, foi firmemente rechaçada pelo que restou de inteligência, bom senso e idoneidade moral na França.

Em um manifesto no qual tentaram contrapor o universalismo humanista ao sectarismo de uma esquerda identitária e tribalista, os signatários do “arco republicano contra o antissemitismo” apelaram aos franceses para não votarem na “nova praga vermelho-marrom, não votar nesta mentira, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´, uma verdadeira impostura em circunstâncias tão trágicas.”

Percebam que o ponto de atenção do referido manifesto não é Marine Le Pen, o seu jovem pupilo Bardella, ou o seu partido Rassemblement National. A ameaça não é a tal “extrema-direita” que deixou as redações em polvorosa. Os signatários do manifesto sabiam que a hora era grave e a situação perigosa porque uma nebulosa político-ideológica antissemita estava avançando, distorcendo concepções, tornando-se cúmplice do terrorismo islâmico e aliando-se àqueles que querem “impor a sharia obscurantista”.

Enxergar isso e lutar contra isso seria o dever de uma consciência realmente humanista e autenticamente democrática ou republicana. Diante da urgência dessa luta, como afirma o manifesto, esquerda e direita perdem sua relevância conceitual, são posições secundárias. Só existe esquerda e direita dentro da política democrática, que é uma invenção ocidental; em uma República Islâmica só existirá a vontade do aiatolá, que é a vontade de Alá.

Islamo-esquerdismo é um fascismo

O próprio filósofo francês Michel Onfray, um dos signatários desse manifesto, autor de mais de cem livros, já explode em si mesmo a falsa ideia de que esquerda e direita são conceitos estáticos e suficientes para dar conta de fenômenos políticos e de pessoas em constante transformação.

Ele, que já se autointitulou um “socialista libertário não liberal” e já foi descrito como “puritano hedonista”, “revolucionário dândi” e outros paradoxos, parece fazer parte hoje daquele time de ateus que reconhece o valor incontornável da civilização judaico-cristã e que, por isso, insiste em defender o Ocidente contra seus inimigos internos e externos. “Hoje você tem o direito de ser antissemita, racista, homofóbico, misógino, desde que seja em nome do Islã”, denuncia o filósofo, que hoje se entende como um “conservador de esquerda” ou um “anarquista conservador”.

Seja como for, o prolífico autor tem sido uma das poucas vozes lúcidas na luta atual contra as loucuras do identitarismo woke e do islamo-gauchismo (islamo-esquerdismo) que assola a França. As recentes declarações e publicações de Michel Onfray têm o condão de desmontar a ideia preconcebida de que o ódio aos judeus é exclusividade da extrema-direita.

Em artigo que publicou no jornal Le Figaro logo após o ataque bestial de 07 de outubro, ele explica como o antissemitismo, que sempre esteve presente na esquerda, retornou com grande força por trás do antissionismo de fachada:

“Mélenchon, e os da LFI e do NUPES que o seguem, herdam este antissemitismo de esquerda. Depois da Shoah, não podemos mais ser antissemitas à moda antiga, somos agora antissionistas; a mudança semântica permite-nos vestir a velha podridão com um novo casaco. A incapacidade em que esta esquerda se encontra de chamar de terrorista um massacre em massa de populações civis inocentes, mulheres, idosos, crianças incluídas, por serem judeus, o que constitui um crime contra a humanidade, acrescenta um capítulo à história do antissemitismo de esquerda. Normal que, não querendo ver essa infâmia entre eles, afirmem encontrá-la entre Marine Le Pen, culpada de ser filha de seu pai!”, escreveu Onfray no referido artigo intitulado “O islamo-esquerdismo é um fascismo.”

E concluiu:

“Marx fez da vanguarda esclarecida do proletariado a elite destinada a impor a sua ditadura; Lenin queria que esta vanguarda fosse constituída militarmente como um partido. […] Mélenchon substitui o proletariado messiânico pela população composta pela delinquência periférica, pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pelo niilismo dos black blocs, pelo jihadismo dos subúrbios que anda de mãos dadas com a misoginia, a falocracia e, claro, o antissemitismo. Ele acredita que está explorando isso; mas ele é de fato quem está sendo instrumentalizado.

Os apoiadores jihadistas não querem saber de mulheres cisgênero, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, casais de lésbicas, transições transexuais, barrigas de aluguel, saladas de quinoa, turbinas eólicas e bicicletas elétricas da pequena burguesia

Nupesiana. Este braço que Mélenchon arma para seus fins pessoais se voltará contra ele quando chegar a hora. Nestas horas terríveis, os judeus seriam os primeiros a serem sacrificados. E, portanto, a França com eles”.

Como se vê, alguns filósofos, por insistirem em lidar com o real por trás dos discursos, acabam sendo capazes de conceber discursos proféticos.

O novo antissemitismo, resenha do texto de Noah Feldman

A revista americana Time publicou, em 27 de fevereiro, um importante ensaio intitulado O novo antissemitismo, assinada por Noah Feldman, professor da Harvard Law School e o autor do livro To Be a Jew Today: A New Guide to God, Israel, and the Jewish People (Ser Judeu Hoje: Um Novo Guia para Deus, Israel e o Povo Judeu).

O alarmante aumento de casos de antissemitismo em todo o mundo tem dado ensejo a inflamados debates e renovadas reflexões. Um dos pontos para o qual as análises atuais têm chamado mais atenção é a emergência de novas formas de antissemitismo. Já abordamos essa questão em artigos anteriores e, mais detalhadamente, no artigo intitulado “islamo-esquerdismo: a nova face do ódio ao judeu.”

No referido artigo, citamos a constatação do filósofo francês Luc Ferry de que o antissemitismo católico, baseado na antiga acusação de deicídio e o antissemitismo nazista, baseado na teoria dos judeus como raça inferior estavam em vias de extinção, mas que, pelo contrário, o antissemitismo islâmico da Irmandade Muçulmana que, na década de 1930, reforçou o antissemitismo nazista, encontra hoje ressonância nas ideologias contemporâneas de esquerda, especialmente no chamado wokismo, que reduz tudo ao simplismo da lógica opressor-oprimido e em cuja perspectiva ideológica “o sionismo é o mais recente avatar do colonialismo ocidental e racista apoiado pelo neoliberalismo americano.”

A análise de Noah Feldman, publicada na Times, corrobora essa abordagem, reconhecendo também que o antissemitismo hoje não é impulsionado primariamente nem pela religião cristã nem pela teoria nazista da raça superior. O antissemitismo, pra ele, não é “um conjunto imutável de ideias derivadas de crenças antigas”, mas “uma força criativa, mutável e multiforme” que “reflete as preocupações ideológicas do momento” e que “conseguiu reinventar-se múltiplas vezes ao longo da história, mantendo sempre alguns dos antigos tropos, ao mesmo tempo que criava novos, adaptados às circunstâncias atuais”.

O ponto fundamental do discurso antissemita é que, nele, “os judeus são sempre levados a exemplificar o que um determinado grupo de pessoas considera ser a pior característica da ordem social em que vivem”. Assim sendo, “o seu conteúdo pode ser alterado e mudado à medida que as preocupações e os julgamentos morais de uma sociedade mudam.

O antissemitismo do século XIX já marca uma reinvenção do antissemitismo clássico. O aspecto do preconceito religioso vai cedendo lugar a teorias da conspiração como a de que os judeus controlavam secretamente o mundo. 

No século XX, sob ângulos diferentes, tanto o nazismo como o marxismo identificaram os judeus como um inimigo que mereciam ser expurgados.

Hoje, constata Feldman, “a pseudociência racial é uma vergonha e a luta entre o capitalismo e o comunismo tornou-se ultrapassada. O populismo antielitista ainda pode basear-se em velhas mentiras sobre o poder judaico, e essas ainda repercutem em certos públicos, especialmente na extrema direita. Mas é mais provável que a corrente mais perniciosamente criativa no pensamento antissemita contemporâneo venha da esquerda”.

Assim como Luc Ferry, no artigo intitulado “Judeofobia: compreendendo a nova situação”, tenta nos alertar da urgência de se reconhecer as diferentes faces do ódio ao judeu, sob risco de não nos darmos conta do que realmente nos ameaça hoje, também o artigo de Noah Feldman faz soar o alarme de que “o antissemitismo está se transformando novamente, neste momento, diante dos nossos olhos”.

A nova situação, alertada por Ferry, é que, aos olhos do wokismo e do islamo-esquerdismo, o muçulmano substituiu o proletário no papel dos oprimidos e a retórica do “Ocidente colonizador” como o lado opressor uniu ao wokismo e ao islamismo o tal “Sul global”, fazendo com que aproximadamente dois terços do planeta esteja sendo movida pelo ódio galvanizado por essa narrativa ideológica.

Noah Feldman, por sua vez, acrescenta a esse diagnóstico a análise de que “o cerne do novo antissemitismo reside na ideia de que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores: imperialistas, colonialistas e até supremacistas brancos. Esta visão preserva vestígios do tropo de que os judeus exercem um vasto poder. Atualiza criativamente essa narrativa às circunstâncias contemporâneas e às preocupações culturais atuais com a natureza do poder e da injustiça”.

Embora as preocupações com o abuso do poder e com as injustiças sejam perfeitamente legítimas, explica Feldman, é importante distinguir as críticas idôneas das formas antissemitas como elas podem ser utilizadas. Essa cautela é importante porque “Israel, o primeiro Estado judeu a existir em dois milênios, desempenha um papel central na narrativa do novo antissemitismo.”

Israel e o novo antissemitismo

Não é inerentemente antissemita criticar Israel. O seu poder, como qualquer poder nacional, pode estar sujeito a críticas legítimas e justas”, pondera Feldman. Porém, na crítica a Israel, categorias como o imperialismosupremacia branca colonialismo têm sido manipuladas sem nenhum rigor para fazer julgamentos morais e tentar deslegitimar a sua existência.

Segundo o professor, essas categorias não se enquadram muito bem na especificidade de Israel.

O conceito de imperialismo, por exemplo, foi desenvolvido para descrever potências europeias que conquistaram, controlaram e exploraram vastos territórios no Sul e no Leste globais, enquanto “Israel é uma potência regional do Oriente Médio com uma presença minúscula, e não um império global ou continental concebido para extrair recursos e mão-de-obra” e foi criado para abrigar judeus deslocados depois de 6 milhões deles terem sido mortos no Holocausto.

O paradigma da supremacia branca tampouco corresponde facilmente aos judeus. Conforme explica o professor da Harvard Law School, aproximadamente metade dos judeus de Israel “não são etnicamente europeus em nenhum sentido, muito menos racialmente brancos, um número significativo de judeus israelenses é de origem etíope e a pequena comunidade de israelenses hebreus negros em Israel é etnicamente afro-americana”.

Sobre a consideração dos primeiros colonos sionistas como colonialistas, pode-se apontar que boa parte deles eram pessoas apátridas e oprimidas que procuravam refúgio na antiga terra prometida onde alguns judeus sempre viveram.

A conclusão de Noah Feldman é que, “a narrativa de Israel como um opressor colonizador igual ou pior do que os EUA, o Canadá e a Austrália é fundamentalmente enganadora. Aqueles que a promovem correm o risco de perpetuar o antissemitismo ao condenarem o Estado Judeu […] a única pátria de um povo historicamente oprimido que não tem outro lugar a que chamar de seu”.

Negação do holocausto à direita e à esquerda

O uso arbitrário das referidas categorias faz parte, portanto, da estratégica retórica do novo antissemitismo, que não para, porém, por aí: “para enfatizar a narrativa dos judeus como opressores, o novo antissemitismo deve também, de alguma forma, contornar não apenas dois milênios de opressão judaica, mas também o Holocausto, o maior assassinato organizado e institucionalizado de qualquer grupo étnico na história da humanidade.

Nesse aspecto os dois extremos ideológicos se tocam: “à direita, os antissemitas ou negam que o Holocausto tenha acontecido ou afirmam que o seu alcance foi exagerado. À esquerda, uma linha é que os judeus estão usando o Holocausto como arma para legitimar a opressão dos palestinos”.

Nesse ponto, gostaria de pedir ao leitor que refletisse sobre a argumentação que se segue tendo em mente as recentes palavras do presidente Luís Inácio Lula da Silva quando comparou a ação de Israel com o holocausto e acusou Israel de cometer genocídio, promovendo assim uma crise diplomática de grande dimensão.

Levando em conta a força e a clareza do restante do ensaio que me propus a comentar, despeço-me aqui deixando o próprio autor finalizar. 

Com a palavra, Noah Feldman

Transcrevo, a seguir, as longas, mas importantes citações do texto em pauta O novo antissemitismo, de Noah Feldman:

“Durante a Guerra de Gaza, alguns argumentaram que Israel, tendo sofrido o trauma do Holocausto, está agora perpetrando um genocídio contra o povo palestino. Tal como outras críticas a Israel, a acusação de genocídio não é inerentemente antissemita. No entanto, a acusação de genocídio é especialmente propensa a desviar-se para o antissemitismo porque o Holocausto é o exemplo arquetípico do crime de genocídio.

O genocídio foi reconhecido como crime pela comunidade internacional após o Holocausto. Acusar Israel de genocídio pode funcionar, intencionalmente ou não, como uma forma de apagar a memória do Holocausto e de transformar os judeus de vítimas em opressores. […]

Os esforços de Israel para se defender contra o Hamas, mesmo que envolvam a morte de um número desproporcional de civis, não transformam Israel num ator genocida comparável aos nazis ou ao genocídio em Ruanda. A acusação de genocídio depende da intenção. E Israel, como Estado, não está travando a Guerra de Gaza com a intenção de destruir o povo palestino.

Os objetivos de guerra declarados de Israel são responsabilizar o Hamas pelo ataque de 7 de Outubro a Israel e recuperar os seus cidadãos que ainda estão mantidos em cativeiro. Esses objetivos são legais em si mesmos.

Os meios que Israel utilizou estão sujeitos a críticas legítimas por terem matado demasiados civis como danos colaterais. Mas a campanha militar de Israel foi conduzida de acordo com a interpretação de Israel das leis internacionais da guerra. Não existe uma resposta única e definitiva de direito internacional à questão de saber até que ponto os danos colaterais tornam um ataque desproporcional ao seu objetivo militar concreto. A abordagem de Israel assemelha-se às campanhas travadas pelos EUA e pelos seus parceiros de coligação no Iraque, no Afeganistão, e pela coligação internacional na batalha contra o ISIS pelo controlo de Mossul. Mesmo que o número de mortes de civis provocadas pelo ar pareça ser mais elevado, é importante reconhecer que Israel também enfrenta quilômetros de túneis intencionalmente ligados a instalações civis pelo Hamas.

Para ser claro: por uma questão de valor humano, uma criança que morre às mãos de um assassino genocida não é diferente daquela que morre como dano colateral num ataque legal. A criança é igualmente inocente e a tristeza dos pais é igualmente profunda. No entanto, do ponto de vista do direito internacional, a diferença é decisiva. Durante o ataque do Hamas, os terroristas assassinaram intencionalmente crianças e violaram mulheres. A sua carta apela à destruição do Estado judeu. No entanto, a acusação de genocídio está senta feita contra Israel.

Estes fatos relevantes são importantes para colocar a acusação de genocídio no contexto de potencial antissemitismo. Nem a África do Sul nem outros estados apresentaram um caso de genocídio contra a China pela sua conduta no Tibete ou em Xinjiang, ou contra a Rússia pela sua invasão da Ucrânia. Há algo especificamente digno de nota em lançar a acusação contra o Estado Judeu – algo entrelaçado com a nova narrativa dos Judeus como opressores arquetípicos em vez de vítimas arquetípicas. Chame-o de prestidigitação do genocídio: se os Judeus forem retratados como genocidas – se Israel se tornar o próprio arquétipo de um Estado genocida – então os Judeus serão muito menos propensos a serem concebidos como um povo historicamente oprimido e empenhado em autodefesa.

A nova narrativa dos judeus como opressores está, no final, demasiado próxima da tradição antissemita de apontar os judeus como merecedores únicos de condenação e punição. Tal como aquelas formas anteriores de antissemitismo, o novo tipo não tem a ver, em última análise, com os judeus, mas com o impulso humano de apontar o dedo a alguém que pode ser obrigado a carregar o peso dos nossos males sociais.

A opressão é real. O poder pode ser exercido sem justiça. Israel não deveria estar imune a críticas quando age de forma errada. No entanto, a história horrível e a resiliência invicta do antissemitismo significam que os modos de ataque retórico a Israel e aos judeus devem ser sujeitos a um escrutínio cuidadoso”.