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Voto crítico no órgão regional do Hemisfério Ocidental pode abrir a porta para a influência da China

Líderes no Hemisfério Ocidental enfrentam escolhas difíceis nos próximos meses enquanto se ajustam a uma nova administração dos EUA que está jogando por suas próprias regras em suas relações com a região. No entanto, uma escolha futura deve ser simples: a eleição de um novo secretário-geral para a Organização dos Estados Americanos em 10 de março.

O resultado da votação influenciará se a América Latina será capaz de conter regimes autoritários, combater o crime organizado e conter a crescente presença da China no hemisfério. Mais amplamente, moldará a capacidade da região de navegar no que está se configurando para ser um período tumultuado nas relações EUA-América Latina.

Após 10 anos sob a liderança do diplomata uruguaio Luis Almagro, a disputa entre o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai Rubén Ramírez Lezcano e o diplomata surinamês Albert Ramdin representa mais do que uma transição de liderança de rotina. É um referendo sobre se a OEA manterá seu papel tradicional como defensora da democracia ou mudará para acomodar influências autoritárias na região.

Ramírez enfatiza o papel crítico da OEA no apoio à democracia e direitos humanos e pede esforços mais concentrados contra o crime organizado e lavagem de dinheiro. O Paraguai é o último aliado diplomático da América do Sul de Taiwan e um dos aliados mais próximos de Israel na América Latina, e seu apoio à oposição democrática da Venezuela levou o regime de Maduro a romper relações diplomáticas com o Paraguai em janeiro.

Em contraste, Ramdin defende uma abordagem mais permissiva em relação ao regime autoritário da Venezuela, priorizando o diálogo em vez da responsabilidade democrática. Ramdin conhece bem a organização, tendo atuado como secretário-geral assistente de 2005 a 2015, e sugeriu que o potencial do Suriname como um grande produtor de petróleo o posicionaria para vencer a eleição. Embora o Suriname tenha relações amigáveis ​​com os Estados Unidos, ele é mais próximo da China, que apoia a candidatura de Ramdin. Ramdin falou calorosamente sobre o papel da China no desenvolvimento do Suriname, inclusive por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, à qual o Suriname aderiu em 2018.

Para alguns na região que já veem a OEA como muito amigável aos EUA, a tentação será apoiar o candidato que for menos atraente para Washington. Isso seria um erro. Os países da região estão experimentando uma série de desafios interconectados – insegurança, corrupção e erosão democrática entre eles – que exigem maior resolução coletiva e coordenação. A região precisa desesperadamente superar compromissos ideológicos e encontrar maneiras de se unir, ou corre o risco de se tornar um alvo mais fácil para atores malignos e perder relevância no cenário mundial.

O resultado da votação também importa para os Estados Unidos. A OEA continua a plataforma multilateral mais eficaz para o envolvimento dos EUA com o hemisfério. Ao contrário de outros fóruns, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, ou CELAC, onde os EUA não têm um assento à mesa, a OEA geralmente se alinhou com os objetivos dos EUA e promoveu valores democráticos nas Américas.

A estratégia atual do governo Trump de pressão bilateral para enfraquecer o envolvimento da região com a China pode render concessões em alguns casos, mas não é suficiente para a tarefa maior de reconstruir a influência dos EUA na região. A América precisa de uma agenda mais ampla e positiva, e uma OEA forte sob liderança com ideias semelhantes poderia fornecer a plataforma para isso, especialmente em áreas como segurança, estado de direito e desenvolvimento.

Alguns críticos podem argumentar que as limitações da OEA a tornam indigna de atenção séria, mas tal visão é míope. É verdade que a OEA exibe muitas das fraquezas comuns a órgãos multilaterais, com uma ênfase indevida no consenso e capacidade limitada de fazer cumprir decisões. Ela também é cronicamente subfinanciada.

No entanto, apesar de suas imperfeições, a OEA continua sendo um importante baluarte para a democracia na região. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA documentou vigorosamente os esforços sistemáticos da Venezuela para suprimir a participação da oposição na política, impedir eleições livres e incutir medo entre os venezuelanos. E em agosto de 2024, os estados-membros da OEA votaram para instar a Venezuela a divulgar as contagens eleitorais e fornecer verificação imparcial dos resultados.

A escolha que os estados-membros da OEA enfrentam não é apenas entre dois candidatos — é entre manter o compromisso da organização com a democracia e permitir que a OEA e o hemisfério se dividam ainda mais. Para governos que buscam virar a página da atual instabilidade e deriva democrática na região, apoiar Ramírez é um imperativo.

Foto: Roque de Sá.

O que eu disse ao relator de Liberdade de Expressão da OEA

Na última quinta-feira, participei de uma audiência fechada com o relator de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Pedro Vaca Villareal, que visitou o Brasil esta semana para produzir um relatório.

Fui ouvida como representante do Instituto Direito de Fala, que fundei para reunir pessoas em defesa da liberdade de expressão após um episódio em que eu fui cerceada. Também participaram representantes de outras organizações como Instituto Brasileiro de Direito e Religião, Instituto Millenium e Instituto Liberal, entre outros.

Cada um de nós teve 5 minutos para sua exposição verbal. Nenhum tema foi proposto ou restrito, todos falamos livremente. Também tivemos a oportunidade de enviar documentos à relatoria para embasar nossos relatos.

Podíamos fazer nossas manifestações em inglês e espanhol normalmente. Quem optasse pelo português precisaria falar pausadamente. Optei pelo inglês. Segue a tradução para o português da minha fala.

Prezado Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villareal,

Meu nome é Madeleine Lacsko. Sou jornalista há 28 anos, colunista em O Antagonista, Gazeta do Povo e UOL News, escritora, autora do livro Cancelando o Cancelamento, e fundadora do Instituto Direito de Fala. Já fui assessora da presidência do Supremo Tribunal Federal e da comissão de Direitos  Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. Fiz parte do time do Unicef que erradicou a pólio em Angola. Dedico minha carreira à defesa da liberdade de expressão e do livre debate, pilares essenciais da democracia.

Fui condenada judicialmente por um suposto ato de “transfobia”, embora este conceito não exista no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão foi fundamentada exclusivamente em uma interpretação subjetiva da linguagem, baseada na ideia de que usei uma palavra “indevida” para me referir a um influenciador transgênero.

A expressão “cara” pode ser usada informalmente de forma neutra, mas no contexto específico em que utilizei, tratava-se da forma formal e necessariamente feminina. Ou seja, sequer houve “misgendering”.

A condenação não teve como base a lei brasileira, mas ideologias que dizem buscar justiça social. Isso abre um perigoso precedente para a violação do devido processo legal.

Além disso, o julgamento partiu do pressuposto de que eu teria uma intenção maliciosa ao usar essa palavra, sem que eu sequer tenha sido ouvida pelo Judiciário. Meu último recurso está no Supremo Tribunal Federal.

Além da total ausência de base legal, esse julgamento desconsidera completamente meus direitos como mulher, jornalista e cristã. Como qualquer cidadão em uma democracia, tenho o direito de expressar minha visão sobre a pauta trans e meu conceito de mulher.

Da mesma forma, tenho o direito, como cristã, de professar minha fé, o que inclui a concepção biológica e espiritual do que é ser mulher. No entanto, esses direitos sequer foram levados em conta na decisão, que me trata como se eu não fosse sujeito de liberdade de expressão, de crença e de opinião.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião elaborou um parecer sobre o meu caso porque tem enfrentado desafios semelhantes na área de liberdade religiosa. Há uma tendência crescente de decisões judiciais que ignoram o arcabouço legal, amparando-se em conceitos fluidos que podem ser interpretados de forma arbitrária. Como alerta o parecer do IBDR: “O Judiciário, ao se afastar da legislação objetiva e basear-se em doutrinas ideológicas, coloca em risco não apenas a liberdade de expressão, mas a própria segurança jurídica”.

A tentativa de calar a imprensa não começou agora.

Lembro de um episódio emblemático há 21 anos, quando o presidente Lula tentou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times Larry Rohter por não gostar de uma reportagem.

A perseguição vai além da censura direta. No Brasil, é comum que políticos peçam a demissão de jornalistas, promovam campanhas difamatórias e incitem seguidores a hostilizar e ameaçar profissionais da imprensa e suas famílias.

O Poder Judiciário costumava ser o anteparo aos arroubos autoritários dos políticos. Há um ponto de inflexão quando se torna parte dessa engrenagem.

O marco importante é a censura direta à Revista Crusoé, em 2019, pela reportagem O Amigo do Amigo do Meu Pai, acerca de um ministro do STF. Essa decisão marca uma guinada na cultura judicial, consolidando um ambiente onde a censura se tornou ferramenta recorrente. O deputado Marcel Van Hattem já apresentou esse caso à Relatoria, e a própria Crusoé dará seu testemunho.

A censura também se estendeu ao humor. Humoristas como Léo Lins e Danilo Gentili acumulam dezenas de processos judiciais simplesmente por fazerem piadas.

O caso de Léo Lins é especialmente emblemático: ele teve um especial de stand-up banido, suas redes sociais suspensas, foi proibido de deixar o estado de São Paulo e não pode mais fazer piadas com uma lista de temas elaborada pela Justiça. Shows seus foram cancelados mais de 50 vezes porque políticos locais se sentiram ofendidos. Hoje, ele enfrenta cerca de 80 processos, sendo 20 deles criminais.

Há uma tendência crescente e preocupante. Vale ressaltar que a Justiça brasileira tem não apenas o poder de censurar, mas também de aplicar multas de milhares de dólares e bloquear automaticamente contas bancárias dos réus em punições. É um cenário que tem sido muito eficaz no incentivo à autocensura e ao silêncio. Inclusive das vozes dissonantes dentro do próprio judiciário.

Diante desse cenário, fundei o Instituto Direito de Fala. Nosso objetivo é reunir e apoiar aqueles que compreendem que a liberdade de expressão é a base para todas as outras liberdades. Sem ela, não há debate, não há pluralidade, não há avanços sociais.

O que está em jogo não é apenas minha liberdade de expressão, mas o próprio alicerce da democracia brasileira. Quando o Judiciário abandona a imparcialidade para agir como guardião de ideologias específicas, instala-se um regime onde o arbítrio se sobrepõe ao direito, e a intimidação substitui o debate.

Hoje sou eu a condenada por um crime inexistente, mas amanhã qualquer voz dissonante pode ser silenciada da mesma forma. A liberdade não é um privilégio concedido pelo Estado, é um direito inalienável de cada cidadão. Permitir que ela seja corroída pelo medo e pela censura é aceitar a morte da democracia em silêncio.

Muito obrigada