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Lula na Tribuna, Trump nos Bastidores: O Duelo de 20 Segundos que Abalou a Estratégia Brasileira na ONU

O discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 80ª Assembleia Geral da ONU, proferido hoje, revelou-se um marco calculado na estratégia de reeleição para 2026. Sob o manto de uma defesa genérica do multilateralismo, Lula ergueu uma narrativa de confronto com os Estados Unidos, uma jogada destinada a galvanizar sua base eleitoral. No entanto, a realidade geopolítica, personificada por um encontro casual e estratégico com Donald Trump, expôs as contradições e o isolamento dessa abordagem, deixando o presidente brasileiro em uma posição delicada.

A fala no plenário foi construída em dois eixos: a autovitimização do Brasil e a criminalização de seus críticos. Ao afirmar que o país sofre “medidas unilaterais e arbitrárias” e uma “agressão contra a independência do Poder Judiciário”, Lula dirigia-se claramente ao seu eleitorado interno. A menção a uma “extrema direita subserviente” é um código para o palanque doméstico, transformando um fórum global em plataforma para atacar adversários. O objetivo é claro: consolidar a imagem de um líder sitiado, defendendo a pátria de potências estrangeiras e de uma “elite golpista” local, um roteiro bem-sucedido em campanhas passadas.

No plano internacional, o alinhamento com os rivais geopolíticos do Ocidente foi flagrante. A equiparação do conflito em Gaza a um “genocídio” e a afirmação de que sob os escombros palestinos está sepultado “o mito da superioridade ética do Ocidente” é uma das mais duras condenações já proferidas por um líder brasileiro, colocando-o em sintonia com os eixos antiamericanos. Da mesma forma, ao defender a retirada de Cuba da lista de patrocinadores do terrorismo e ao exigir, no contexto ucraniano, que se levem em conta “as legítimas preocupações de segurança de todas as partes” – um claro eco da narrativa russa –, Lula sinaliza qual bloco pretende liderar: o do Sul Global em contraposição ao equilíbrio de forças do Pós-Guerra.

Esta postura, no entanto, revela uma contradição flagrante: ao mesmo tempo em que condena supostas ingerências nos assuntos brasileiros, o presidente não hesita em discursar sobre os temas internos de outros países, praticando um ativismo internacional seletivo em defesa de aliados políticos ideologicamente alinhados. Até mesmo a agenda positiva apresentada – como o combate à fome e à crise climática – é instrumentalizada como pano de fundo para este projeto de poder, fazendo com que anúncios legítimos, como a saída do Brasil do Mapa da Fome e os preparativos para a COP30, percam força ao serem eclipsados por um discurso marcadamente acusatório.

A estratégia, porém, durou poucas horas. Nos bastidores, o acaso promoveu um choque de realidade. Ao se cruzarem, Lula e Trump travaram um encontro de 20 segundos que falou mais que o discurso de uma hora. O abraço e a rápida marcação de um encontro para a próxima semana, narrados com perspicácia pelo presidente norte-americano, foram um golpe de mestre típico de Trump. Ele reconheceu a “química excelente” de 39 segundos, mas foi rápido em lembrar, logo em seguida, as tarifas impostas pelo Brasil no passado e a suposta incapacidade do país de “se sair bem” sem os EUA. Trump, com habilidade negociadora, abriu uma porta de diálogo justamente após intensificar a pressão econômica, deixando Lula encurralado.

A confusão estratégica para o presidente brasileiro é evidente. Como conciliar a retórica de confronto, essencial para animar sua base ideológica, com a necessidade pragmática de negociar com o mesmo país que ele acabara de criticar frontalmente? A reação imediata dos mercados – com a Bolsa subindo e o dólar caindo ante a simples perspectiva de diálogo – é um sinal claro de que a comunidade econômica anseia por pragmatismo, não por embates.

O timing não poderia ser mais revelador. Em 2025, com o olho fixo nas eleições de 2026, Lula precisa reativar a mobilização de sua base. O discurso na ONU foi a peça central dessa estratégia. No entanto, a astúcia de Trump obriga-o agora a um malabarismo perigoso: negociar com o “império” que denuncia, arriscando desmobilizar seu eleitorado cativo, ou manter a rigidez e aprofundar o isolamento e os danos econômicos. A aposta na retórica do conflito mostrou-se um jogo de risco elevado. Lula, que aspirava a ser uma ponte, pode sair dessa semana não como líder, mas como um ator confuso, forçado a negociar com a potência que escolheu como adversária no palco mundial.

Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

Lula na ONU: desvio de caráter, covardia e diplomacia do mal

Os redatores do Itamaraty não tiveram dificuldade em elaborar o discurso exibido pelo presidente Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU. A gosto do freguês, redigiram o de praxe: discurso para momentos de grande solenidade, ideologicamente carregado, vazado numa linha de narrativa arrogante e seletiva. 

Diante, porém, do quadro inescapável da realidade, o contraste entre supostas intenções e gestos efetivos tornou-se patente e a fala empolada de Lula revelou-se como um tecido de enganações: um discurso cosmético, sem substância e incoerente.

O próprio Lula já declarou que uma narrativa bem construída supera todos os obstáculos. Disse isso como conselho ao seu amigo Nicolás Maduro, ditador da Venezuela. E no seu discurso maquiado da ONU, com efeito, ele realizou a façanha de fechar os olhos para a crise humanitária causada pela ditadura no país vizinho e arregalá-los para crises e guerras em locais muito distantes, como Oriente Médio e Ucrânia.

E a Venezuela, Lula?

Ocorre que precisamente a crise da vizinha Venezuela é a única em que as palavras de Lula e atitudes do governo brasileiro poderiam ter uma influência de monta. Assim, tão descabida omissão seletiva configura desvio de caráter e covardia diplomática.

Vale lembrar que a própria Missão Independente da ONU divulgou recentemente um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela entre setembro de 2023 e agosto de 2024. Segundo o documento, “o governo da Venezuela intensificou dramaticamente os esforços para esmagar toda oposição pacífica ao seu domínio, mergulhando a nação numa das mais agudas crises humanitárias na história recente.”

O relatório da ONU informa que, na primeira semana após as eleições, por exemplo, foram presas cerca de 2.000 pessoas, incluindo mais de 100 menores de idade e algumas pessoas com deficiências. Pelo menos 25 pessoas foram executadas, a maioria jovens pobres, incluindo dois menores.

Se a omissão sobre a Venezuela mostra a face de uma diplomacia inerte e covarde, os pitacos de Lula em relação às guerras no Oriente Médio e na Ucrânia mostram que a sua ignorância está a serviço do seu ativismo no que tenho chamado de diplomacia do mal.

A diplomacia do mal

Lula começou o seu discurso com uma saudação especial a Mahmmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina.Os semelhantes se atraem e se entendem. Assim como Lula, Abbas tem posicionamentos ambíguos e escorregadios em relação a questões fulcrais. Assim como Lula, ele costuma acender uma vela para Deus e outra para o diabo.

Abbas, que consegue matizar seu discurso e disfarçar suas reais intenções a ponto de estabelecer diálogo com autoridades europeias e americanas, tirou, por um momento, a máscara da moderação por ocasião do seu tributo em honra do terrorista Ismail Haniyeh. Em agosto, no Parlamento da Turquia, Abbas expressou o que realmente pensa: “A América é a praga e a praga é a América.” Antiocidentalismo e antiamericanismo são, como sabemos, a senha capaz de reunir esquerda radical e islã em uma perigosa aliança. 

Após cumprimentar o amigo duas caras, com quem se encontrou no dia seguinte, Lula tentou colar em si a máscara de pacifista, desfilando platitudes e lamentos acerca do crescimento dos gastos militares globais que poderiam ser usados para combater a fome e enfrentar a mudança do clima. Ele se queixou também de que “o uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando a regra.”

Oh sofista hipócrita! Por que, então, estás aliado a Putin, que violou o direito internacional com o uso da força ao invadir um país soberano, trazendo morte e desgraça a um povo já tão sofrido? Povo esse vitimado inclusive, no passado, pela grande perversidade do Holodomor, o genocídio de milhões de ucranianos, que morreram de fome, em razão da política econômica de Stalin, ditador cruel até hoje reverenciado pela extrema esquerda.

Tu mentes, Lula, quando afirmas que “o Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano”. Jamais houve condenação firme, apenas considerações ambíguas e levianas que equiparam o país invadido e o país invasor em um mesmo grau de responsabilidade pela guerra.

Além disso, segues tu e o líder da tua diplomacia do mal, Celso Amorim, com demonstrações de simpatia pelo tirano do Kremlin. E mesmo agora, a alegada firmeza contra a invasão se perde na omissão do nome do país invasor. 

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, faz bem em desmascarar reiteradamente o teu cinismo, acusando-te de fazer “teatro” e de ter intenções escusas com uma proposta de paz articulada com a China e o país invasor.

Disseste, ainda, presidente Lula, em teu discurso malandro, que “não podemos esperar por outra tragédia mundial, como a Segunda Grande Guerra, para só então construir sobre seus escombros uma nova governança global”. Deus nos livre de uma terceira guerra, mas Deus nos livre também de uma governança global sob os valores dos teus aliados ditadores e terroristas.

O evento político-militar que mais tem aproximado o mundo de uma Terceira Guerra é precisamente a invasão criminosa da Ucrânia pela Rússia: nada há de mais parecido com o início da Segunda Guerra, que se deu com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista. Não é algo bonito de se dizer, mas a verdade é que a Ucrânia só pode alcançar a paz com armas.

Da mesma forma, a verdade dura e obliterada no discurso de Lula, sempre crítico e condenatório em relação aos esforços de defesa de Israel, é que a paz no Oriente Médio depende da força bélica desse pequeno país. Certeira foi Golda Meir, ex-primeira-ministra de Israel, ao afirmar que “se os palestinos baixarem as armas, haverá paz. Se os israelenses baixarem as armas, não haverá mais Israel”.

Ladainha e meio ambiente

A ladainha de Lula na ONU prolongou-se enfadonha, abordando temas os mais díspares. Ele criticou “experiências ultraliberais”, posou de valentão contra “plataformas digitais”, defendeu “forte regulação da economia doméstica”, divagou em torno de uma “inteligência artificial emancipadora que também tenha a cara do Sul global”, achou tempo para tomar as dores da ditadura cubana e terceirizou o problema das queimadas do Brasil ao mesmo tempo em que afirmou que não os terceirizaria.

Lula cobrou do mundo rigor na proteção do meio ambiente, quando – em grande parte pela omissão, incompetência e irresponsabilidade do seu governo – o Brasil está sendo devastado por incêndios: com flora, fauna e inteiros biomas destruídos; com grande parte deste país continental coberto pela fumaça; com milhões de pessoas – especialmente idosos e crianças – sendo vítimas de males respiratórios.

Sobre tamanha catástrofe, situação desesperadora sem fim previsto, Lula falou de forma dispersa e evasiva, com frases de compreensão complicada, como essa: “O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania”. Qual foi, Lula, o país estrangeiro ou agente nacional traidor que, nessa emergência de incêndios, pediu ao governo brasileiro para “abdicar da sua soberania”?

O fato é que Lula fez muito pouco em relação às queimadas. Seu governo não está enfrentando o desafio da crise climática; por enquanto, está contornando o desafio. Muitos dos que lucram com a degradação ambiental submetem o governo com chantagens no Congresso Nacional. Variados ilícitos ambientais vêm prosperando em todas as regiões do país sem dar muita atenção à alegada intransigência governamental. O combate ao garimpo ilegal, forte no início do governo, arrefeceu. Quanto ao crime organizado, até mesmo por enfrentar um governo desorganizado, está ganhando a guerra.

Enfileirando platitudes, supostas boas intenções e enganações o discurso do presidente do Brasil na ONU foi longe, mas a repercussão internacional ficou aquém do pretendido. No Brasil, sempre há quem jogue confete, faça festa e coloque qualquer bobagem que Lula diz nas alturas. Fora da bolha ideológica da esquerda lulista e da mídia chapa branca, porém, viu-se apenas mais um discurso hipócrita facilmente desmascarado.