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STF decide: o STF não pode ser fiscalizado

A decisão cautelar na ADPF 1259, proferida pelo ministro Gilmar Mendes, vai muito além de um simples ajuste interpretativo sobre a Lei do Impeachment. O que se viu foi uma decisão com efeitos legislativos e institucionais profundos, produzida sob o argumento de “proteção da democracia”, mas que, na prática, redesenha os mecanismos de controle sobre o Supremo Tribunal Federal e afasta o cidadão do processo político que lhe pertence por direito.

Há, em primeiro lugar, uma impropriedade jurídica elementar: a Constituição não retirou do povo a legitimidade para provocar o Senado em crimes de responsabilidade. A Lei 1.079/50, recepcionada pela Constituição de 1988, preservou esse espaço popular no art. 41. E não há dispositivo constitucional que exija monopólio acusatório do Ministério Público. Pelo contrário: o sistema de freios e contrapesos prevê que o Legislativo contenha abusos de todos os Poderes, inclusive do Judiciário. Ao restringir a iniciativa à PGR, a decisão cria um filtro político-personalista — o impeachment de ministros passa a depender da vontade de um único agente estatal, escolhido pelo Presidente da República e altamente suscetível a pressões partidárias e conjunturais.

Outro ponto crítico é a importação indevida da simetria presidencial. O ministro assume que a abertura de processo contra um integrante do STF exige o mesmo quórum qualificado de 2/3 aplicado ao presidente da República. Esse paralelismo não encontra base na Constituição. Trata-se de uma construção teórica livre, que ignora as diferenças estruturais entre os modelos de responsabilização: o presidente responde a um rito bicameral que separa admissibilidade (Câmara) e julgamento (Senado). Já os ministros do STF são julgados exclusivamente pelo Senado, sem fase prévia de outra casa legislativa. A decisão cria, portanto, uma espécie de “Câmara invisível”, um filtro inexistente que só serve para tornar o processo inviável.

A decisão também incorre em confusão conceitual entre “recebimento” e “instauração”. O ato inicial do Senado não é julgamento nem afastamento automático. É mera admissibilidade. A decisão trata esse momento como ameaça institucional, sugerindo que a simples existência do instrumento intimida juízes. O raciocínio é perigosamente autorreferente: como o Supremo pode ser alvo de pressões, o povo deve ser afastado do processo. É o oposto do princípio republicano. Democracias maduras não combatem abusos eliminando a fiscalização popular — qualificam os procedimentos, definem critérios objetivos, garantem filtros técnicos.

Por fim, a decisão se ancora em conceitos amplos como “constitucionalismo abusivo” e “ataques antidemocráticos”, transformados em justificativa para blindar um Poder contra o controle político legítimo. A crítica à “instrumentalização do impeachment” não pode servir de premissa para extinguir o direito de provocação. Países que se pretendem livres não tratam sua população como ameaça constante. A retórica da proteção institucional, quando recai sobre a própria Corte, torna-se autoproteção corporativa. O Supremo é guardião da Constituição, não senhor dela. Se a democracia começa e termina na toga, então já não existe República — existe apenas poder incontestável.

O que é um comportamento democrático

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas ideologias confessadas por seus integrantes em vez de pelo comportamento praticado por eles, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz conservador, liberal ou socialista. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas suas posições nos lados em confronto da política praticada como continuação de guerra por outros meios, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz de esquerda ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelos rótulos de suas crenças ou visões de mundo, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz social-democrata de esquerda ou centro-esquerda ou social-liberal de centro, centro-direita ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Piora tudo, é claro, se quisermos dividir as forças políticas em progressistas x fascistas ou em comunistas globalistas x patriotas nacionalistas. É nesse lugar escuro, nesse pátio fétido da polarização, em que, infelizmente, nos encontramos.

Chegamos então ao centro da questão. O que é um comportamento democrático? Em primeiro lugar é um comportamento não-populista, pluralista e liberal (no sentido político do termo). Isso resumo (quase) tudo, mas precisa ser debulhado.

Democratas defendem – não importa se ditos conservadores, liberais ou socialistas; de esquerda (como Boric) ou de direita (como Lacalle Pou); social-democratas ou social-liberais – as seguintes ideias:

Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).

Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (e, portanto, recusam o majoritarismo e o hegemonismo).

Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.

Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).

Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.

Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).

Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.

Império da lei e judiciário independente (e auto contido em suas atribuições).

Forças armadas subordinadas ao poder civil.

A sociedade controla o governo e não o contrário (pois avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado – o que pressupõe recusa ao estatismo).

Tudo bem como ideário. Mas como democratas se comportam, na prática?

Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (ditadura ou autocracia), seja dita de esquerda ou de direita, religiosa ou laica.

Democratas se opõem a governos antidemocráticos (mesmo quando governando em regimes democráticos) e a oposições antidemocráticas (que queiram não apenas mudar o governo, o que é legítimo, mas alterar a natureza do regime democrático ou substituí-lo por regimes não democráticos).

Democratas se opõem a governos, mesmo democráticos, dos quais discordam (pois sabem que a democracia funciona com situação democrática e oposição democrática e que, por isso, as oposições democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como fundamentais para o bom funcionamento de regime).

Democratas recusam a guerra (ou não praticam a política como continuação da guerra por outros meios): repudiam o antipluralismo, o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”, pois avaliam que política não é guerra e sim evitar a guerra.

Democratas atuam, fundamentalmente, no sentido de fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática; ou seja, não se dedicam a tentar converter todos os indivíduos de uma população em democratas – pois sabem que isso é impossível: nunca aconteceu no passado, não acontece hoje e não acontecerá no futuro, até porque não faz sentido – e sim a criar condições para que a interação das opiniões diversas e plurais que existem na sociedade tenha como resultante, por emergência, uma opinião pública (que não é a mesma coisa que a soma das opiniões privadas dos indivíduos) democrática. Nesse sentido, pode-se dizer que não são a massa, mas o fermento na massa.