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Hannah Arendt contra o antissemitismo de Lula, Janja e PT

Após ser detida, por alguns dias, pela Gestapo, por colaborar com envio de documentos para uma organização de resistência ao nazismo, a jovem judia alemã Hannah Arendt se refugiou na França. Entre 1934 e 1940, antes de ir parar em um campo de detenção na própria França, do qual conseguiu fugir, Arendt trabalhou em uma organização que conduzia judeus do leste europeu para a região do futuro Estado de Israel.

Em 1943, quando já morava nos Estados Unidos, Arendt tomou conhecimento da existência dos campos de extermínio nazistas espalhados pela Europa. Aquilo era tão absurdo que não parecia crível. Mas era real. A pavorosa perversidade do assassinato em massa, desprovido de qualquer critério utilitário, com o único objetivo de degenerar a natureza do ser humano e gerar uma pilha de cadáveres parecia-lhe algo sem sentido, sem motivo, sem fundamentação. Com os campos de concentração, o mal parecia atingir uma proporção inédita.

Esse empreendimento macabro, com toda a sua organização racional e técnica, que tinha por objetivo destruir por destruir, exterminar por exterminar, esse mal que se configurava até mesmo para além do interesse pessoal de quem o perpetrava é identificado inicialmente por Hannah Arendt como o mal absoluto: “Se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do mal”, escreverá Arendt no prefácio da obra As origens do totalitarismo.

Hannah Arendt, como boa pensadora, era rigorosa com os termos. O regime que tornou possível os campos de concentração (nazistas e soviéticos) era diferente das tiranias e das ditaduras. Sendo o regime totalitário uma forma de “domínio total” e “a única forma de governo com a qual não é possível coexistir”, teríamos, segundo ela, “todos os motivos para usar a palavra ‘totalitarismo’ com cautela”.

À especificidade do regime totalitário relaciona-se também, para Arendt, a qualificação técnico-jurídica do genocídio como crime contra a humanidade.

Genocídio 

A base inicial da tipificação deste crime, em texto internacional, encontra-se no ato constitutivo do Tribunal de Nürenberg, de 8 de agosto de 1945. Esse tribunal, criado para julgar e punir os grandes crimes de guerra dos países do Eixo, tinha competência e jurisdição, nos termos do art. 6.° do seu estatuto, em relação aos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade.

Enquanto crimes contra a paz e crimes de guerra já eram tidos como comportamentos ilícitos na perspectiva do Direito Internacional antes da II Guerra Mundial, “a concepção de crimes contra a humanidade, previstos no art. 6.° “c” do Estatuto do Tribunal de Nürenberg, procurava identificar algo novo, que não tinha precedente específico no passado; representava um primeiro esforço de tipificar, como ilícito penal, o ineditismo da dominação totalitária”, conforme explica Celso Lafer, no livro A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

Os princípios de Nürenberg foram oficialmente sistematizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, por solicitação da Assembleia Geral, em resolução de 1947. No que concerne ao genocídio, esses princípios converteram-se em norma internacional através da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, entrando em vigor em 12 de janeiro de 1951. Ali, a tipificação do crime de genocídio, no art. 2.°, estabelece nas letras “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, os aspectos objetivos do comportamento ilícito, e no seu caput o aspecto subjetivo, que é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Para Hannah Arendt, explica ainda Celso Laffer, “o genocídio, como crime, só pode ocorrer com base na lei criminosa de um Estado criminoso”. Não se trata de um crime qualquer que pode ser cometido por indivíduos isoladamente, mas um crime “estruturalmente ligado à gestão totalitária”, um crime que depende de uma estrutura de poder posta a serviço da perversidade e na qual o mal se converte em legalidade.

O genocídio “assume o ser humano como supérfluo”; “não é uma discriminação em relação a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de guerra nem um crime contra a paz. O genocídio é algo novo“, é, para usar as palavras da própria Arendt “um crime contra a humanidade perpetrado no corpo do povo judeu“.

O antissemitismo de Lula

Armados dessa compreensão, podemos agora dimensionar a gravidade da crise diplomática iniciada por Luís Inácio Lula da Silva ao discursar fazendo analogia entre o holocausto e a resposta de guerra de Israel contra um grupo terrorista que o atacou e acusando Israel de estar perpetrando um genocídio, o que equivale a considerar Israel como um Estado criminoso, negando-lhe, consequentemente, o direito à existência.

Se a rinha política hodierna nas redes sociais é marcada pela distorção de conceitos importantes, o mesmo uso ligeiro e irresponsável de palavras graves não deveria, de forma alguma, dar o tom do discurso de um presidente em uma coletiva internacional, em momento tão complexo como o atual.

O pior de tudo, porém, é que não foi apenas descuido e desleixo. Não foi uma gafe, um despropósito infeliz ou uma inadequação por simples ausência de bom senso. O Brasil já havia dado apoio à África do Sul na absurda acusação contra Israel (levada ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia), já havia prometido doações à UNRWA no momento mesmo em que outros países paralisaram as doações ao verem comprovadas as suspeitas de relações da agência com o Hamas.

Por fim, o Brasil não fez a menos questão de se retratar a fim de resolver a crise diplomática que Lula criou. Na verdade, a sua fala galvanizou o antissemitismo de esquerda, que, agora, mal sente a necessidade de se disfarçar.

Antissionismo como antissemitismo

Todas as tentativas de emenda do discurso de Lula saíram pior que o soneto. A sua esposa, Janja, defendeu o bom velhinho, que, segundo ela, defende a vida de mulheres e crianças e escreveu o seguinte: “a fala se referiu ao governo genocida e não ao povo judeu. Sejamos honestos nas análises.”

Para alcançar a sutileza necessária para uma análise honesta, recorro, mais uma vez, a Celso Lafer que, em artigo publicado no Estadão, escreveu: “Hoje muitas críticas à atuação de Israel em Gaza vão além do aceso das polêmicas sobre a aplicação das normas do direito humanitário ou da gravíssima situação humanitária em Gaza. Resvalam pela denegação de sua existência. Neste contexto, cabe a pergunta: de que maneira um antissionismo bastante presente na crítica a Israel é uma modalidade contemporânea de antissemitismo?”

O advogado, jurista, professor, ex-ministro das Relações Exteriores e também ex-aluno de Hannah Arendt socorre a ignorância petista lembrando que o sionismo “buscou a construção de um Estado como resposta às perseguições que os judeus padeceram como uma minoria discriminada”, conforme o princípio de autodeterminação dos povos e que essas aspirações se traduziram no reconhecimento de Israel.

A crescente negação do direito à existência de Israel, que se tem verificado desde o início da guerra em Gaza, apresenta, segundo Lafer, um caráter de seletividade, pois inexistem outras manifestações de denegação da existência de qualquer outro Estado reconhecido na vida internacional em consequência de críticas a suas políticas. Assim sendo “esta seletividade negacionista faz do antissionismo uma manifestação de antissemitismo. Comporta analogia com o negacionismo revisionista da denegação da verdade factual do Holocausto.”

O antissemitismo de Janja

O antissemitismo, Janja, tem várias facetas. A hostilidade em relação aos judeus pode vir um pouco disfarçada, como na sua postagem, que fala em um “governo genocida”, desconsiderando que a guerra em curso não é conduzida apenas por Benjamin Netanyahu, mas por uma coalizão que inclui, inclusive, a oposição. 

Referir-se a um “governo genocida” ou afirmar, como Lula o fez, que “na faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, é chamar Israel de Estado criminoso e negar-lhe, por conseguinte, o direito de existir.

Conforme explica Celso Lafer e outros autores, o antissemitismo moderno é distinto do tradicional, “por isso, pode-se falar com mais propriedade de antissemitismos, no plural. Uma das modalidades atuais do antissemitismo é o antissionismo”. 

É nessa modalidade de antissemitismo que a sua declaração e a de seu marido se encaixam.

‘Queers for Free Palestine' em Delhi Queer Pride walk 2023. | Foto: Manisha Mondal/ThePrint.

Wokismo: o destrutivo tsunami ideológico que ameaça o Ocidente

O jornalista britânico e editor do The Sunday TelegraphAllister Heath, publicou, em 13 de dezembro, um artigo de opinião no qual afirma que “a civilização ocidental está sendo destruída por dentro por forças que não podemos controlar”.

Essas forças de dissolução, segundo ele, foram subestimadas por muito tempo e aqueles que “alertaram para a ameaça devastadora representada pela tomada das nossas instituições por ideólogos conscientes (woke ideologues) foram implacavelmente atacados e ridicularizados”.

“terrível verdade” exposta por Heath no referido artigo é que essas pessoas que supostamente se preocupam com os outros e que dizem acreditar na justiça social e na auto-realização sexual, combater o preconceito, esclarecer a história, promover a igualdade e salvar o planeta são as mesmas que apoiam abertamente o genocídio.

Embora grande parte da mídia esteja embotada pela ideologia woke, o referido artigo do The Telegraph é uma amostra de que vozes qualificadas têm denunciado, aqui e ali, o paradoxo desses que se pretendem politicamente corretos ao mesmo tempo em que relativizam e justificam as piores barbáries.

Recentemente, em 11 de dezembro, o jornal suíço Neue Zürcher Zeitung(NZZ) publicou um artigo de opinião do seu correspondente político, Benedict Neff, intitulado “Traktat über die Verirrten: Der Palästina-Konflikt demaskiert die radikale Linke” (Tratado sobre os Perdidos: O Conflito Palestino Desmascara a Esquerda Radical).

Nesse artigo, o analista político suíço explica a infiltração da ideologia radical esquerdista nas universidades, sob o manto das teses antirracistas e pós-colonialistas, e denuncia a hipocrisia desses radicais diante das atrocidades cometidas pelo grupo terrorista Hamas:

“Há acontecimentos que levam a uma clareza peculiar. Um exemplo é o massacre do Hamas em Israel, em 7 de outubro de 2023. Um desmascaramento ocorreu longe dos combates. Depois de os terroristas palestinos massacrarem e raptarem mais de 1.000 civis inocentes, os ultra-esquerdistas e os islamistas do Ocidente saíram juntos às ruas para se manifestarem contra Israel. O crime não foi motivo para estes esquerdistas radicais mostrarem solidariedade para com as vítimas. Pelo contrário, deram proteção aos flancos dos perpetradores”, escreveu o articulista suíço.

Ambos os artigos citados denunciam que o 7 de outubro escancarou um absurdo padrão de pensamento que já existia há muito tempo, mas não era levado a sério; um padrão de pensamento no qual os modelos ideológicos seriam mais forte do que a compaixão humana:

“Hoje podemos considerar isto ingênuo, mas acredito que muitas pessoas — incluindo muitas da esquerda — só recentemente se tornaram plenamente conscientes do pensamento delirante e mecânico dos extremistas de esquerda, baseado em teorias pós-coloniais e antirracistas. Porque basicamente estes esquerdistas radicalizados disseram: os israelenses não são vítimas e não podem ser vítimas”, escreveu Benedict Neff, no NZZ.

“Forma demente de pensar”

Allister Heath, do The Telegraph, liga essa “forma demente de pensar” ao “destrutivo tsunami ideológico desencadeado pelos fanáticos despertos (woke fanatics)”. Para ele, embora muitos já compreendam, por exemplo, que “o aumento da defesa extrema dos trans levou à mutilação de muitas crianças e à erosão dos direitos das mulheres”“a natureza autoritária, e até mesmo fascista, da ´teoria crítica da raça´ e da ´teoria pós-colonial´ foi subestimada”.

Depois do constrangedor silêncio das organizações feministas em relação à violência sexual contra as mulheres israelenses, deu-se o caso das dirigentes de Harvard, da Universidade da Pensilvânia e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que, ao serem questionadas por uma comissão do Congresso dos EUA, se recusaram a confirmar que o apelo ao genocídio dos judeus violaria o código de conduta das universidades e disseram, com um sorriso sarcástico nos lábios, que isso “dependeria do contexto”.

Não é de surpreender, afinal, que, para os ideólogos radicais da esquerda, o massacre de 7 de outubro, orquestrado sinistramente pelo Hamas, também não pode ser analisado sem um contexto, ou seja, sem ser justificado dentro da ideologia woke que divide o mundo em opressores e oprimidos.

“O povo judeu é classificado como ´branco´ ou ´branco adjacente´ e, portanto, opressor, e isto supostamente dá aos manifestantes luz verde para entoar slogans que qualquer observador objetivo deveria considerar apoiar o genocídio”, explica o analista do jornal britânico.

Ele lembra ainda o quão essas pessoas que se recusam a criticar as manifestações pró-Hamas antissemitas são “paranóicos obcecados por microagressões com códigos discursivos estritos para prevenir ofensas”.

Duplo padrão

Sob a óptica dessa etiqueta discursiva politicamente correta, que escancara o duplo padrão moral que grassa hoje na maioria das universidades, professores ou estudantes podem ser perseguidos caso errem um pronome de quem mudou a identidade de gênero, mas clamar pela “Intifada revolution” e cantar “from the river to the sea”, que são inequivocamente vistos como apelos ao terrorismo e à eliminação de Israel do mapa, são atitudes analisadas de modo muito complacente, pois dependeriam contexto.

Segundo o artigo do The Telegraph, essa “normalização do racismo com um toque de década de 1930”, que tem tomado conta das universidades, impacta muito negativamente a sociedade:

“O vírus da mente desperta (woke mind) transformou outrora grandes centros de aprendizagem em campos de doutrinação, veículos para fabricar consentimento para ideias niilistas e um novo obscurantismo.”

Ainda segundo o analista britânico, é a “hierarquia de vitimização”, própria da ideologia woke, a razão pela qual algumas pessoas “ainda admiram as moralmente falidas Nações Unidas”:

“O enviado do Irã ter presidido a uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, apesar de a República Islâmica ser um dos principais violadores dos direitos humanos não importa, argumentam os extremistas despertos (woke extremists): é um membro do ‘sul global’, lutando contra o ‘imperialismo’.”

O artigo de Allister Heath também critica a UNRWA, tantas vezes denunciada aqui, em O Antagonista:

“Tomemos o exemplo da UNRWA para os Refugiados da Palestina: transformou os seus pupilos numa classe perpétua de refugiados, roubando-lhes a agência e rotulando as suas cidades como “campos de refugiados” permanentes. Os palestinos são o único povo para quem o estatuto de refugiado é automaticamente transmitido através das gerações, garantindo que as suas queixas nunca possam ser resolvidas e que a burocracia da ONU possa manter o seu trem da alegria na estrada. Isto é uma tragédia para os palestinos e torna a paz quase impossível.”

O artigo também tece duras, mas pertinentes, críticas ao ambientalismo de Greta Thumberg, as quais reproduzimos a seguir:

“O ambientalismo de Greta Thunberg parece agora ser uma mera tábua de um movimento revolucionário mais amplo. Entre outros ataques a Israel, ela foi filmada cantando “esmague o sionismo” em um comício em Estocolmo em novembro. Foi também coautora de um artigo para o The Guardian no qual alega que Israel cometeu “crimes de guerra” e “genocídio”, um caso clássico de inversão moral e culpabilização da vítima. […]

O que tem a israelofobia de Thunberg a ver com a abordagem de um problema técnico como o aquecimento global? A resposta é tudo e nada: os fanáticos verdes mais extremos são autoritários woke que querem travar guerra à meritocracia, ao individualismo, à racionalidade, ao capitalismo e até à democracia moderna. As alterações climáticas são apenas um pretexto para fomentar uma convulsão mais ampla. É por isso que tantos verdes radicais não estão interessados em soluções tecnológicas para a descarbonização.

Os aliados de Thunberg acreditam que ‘não há justiça climática sem direitos humanos’. Assim, com a ‘justiça climática’ não se trata de reduzir o crescimento das temperaturas médias: trata-se de destruir Israel, de lutar contra o sonho americano, de eliminar a liberdade de expressão e assim por diante. A ‘justiça climática’ não tem realmente a ver com clima nem com justiça, tal como a ‘justiça social’ é antissocial e injusta.”

A agenda woke, obviamente, não sobreviveria fora do mundo livre e seus defensores seriam friamente eliminados caso os fanáticos islâmicos lograssem êxito em impor sua visão de mundo teocrática. Mas o ódio ao “ocidente colonizador” parece ser maior do que o instinto de sobrevivência que deixaria entrever essa verdade.