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O grito de Oslo: o Nobel que desmascara o autoritarismo latino-americano

A decisão do Comitê Nobel de Oslo de conceder o Prêmio da Paz de 2025 a María Corina Machado, a incansável opositora venezuelana, transcende o reconhecimento individual: é um ato de denúncia moral e um grito universal em defesa da democracia em agonia. Em um cenário global onde o autoritarismo avança com inquietante naturalidade — como evidencia o Relatório de Democracia 2025 do V-Dem, que pela primeira vez em duas décadas registra mais autocracias (91) do que democracias (88) —, a escolha de Machado emerge como farol ético e político em meio à penumbra das tiranias.

Machado encarna a essência do testamento de Alfred Nobel — a busca da paz por meio da dignidade humana e da liberdade política. Fundadora da organização Súmate e líder do Vente Venezuela, há mais de vinte anos ela desafia um regime que transformou o país em laboratório do autoritarismo contemporâneo. Banida como candidata presidencial em 2024, ela não se rendeu: apoiou Edmundo González e organizou uma rede de observadores que documentou a vitória opositora antes que o regime de Nicolás Maduro destruísse as urnas e adulterasse o resultado. O Comitê Nobel descreveu seus esforços como “inovadores e corajosos, pacíficos e democráticos” — um tributo à fé inabalável de quem, mesmo ameaçada de prisão e tortura, recusou o exílio para continuar lutando dentro do país que ama. Nas palavras do presidente do Comitê, Jørgen Watne Frydnes, “foi a urna contra as balas”.

O prêmio expõe, com clareza quase cruel, o abismo humanitário cavado pelo regime chavista. Uma nação outrora próspera foi reduzida a um Estado em decomposição, onde a escassez, a violência e a corrupção substituíram a esperança. Segundo o Comitê Nobel, quase 8 milhões de venezuelanos foram forçados ao exílio desde 2014, em uma das maiores diásporas do século XXI. O ACNUR estima 7,8 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos espalhados pela região, enquanto dentro das fronteiras do país 3,3 milhões de pessoas, entre elas 1,8 milhão de crianças, dependem de ajuda humanitária imediata, conforme relatório da UNICEF de junho de 2025.

Enquanto isso, a elite bolivariana — empoleirada sobre uma economia destruída, corroída por hiperinflação e colapso produtivo — enriquece em meio à miséria coletiva. O Freedom House, em seu relatório de 2025, apontou a Venezuela como paradigma do declínio global da liberdade, onde a repressão eleitoral, as prisões arbitrárias e a censura de Estado tornaram-se instrumentos rotineiros de sobrevivência do poder.

A lição de Machado é inequívoca: a democracia não é ornamento institucional, é condição de paz duradoura. Como lembrou Nina Græger, diretora do Peace Research Institute Oslo, em 2024 o planeta registrou número recorde de eleições — mas pouquíssimas foram autênticas. O voto, cada vez mais, é sequestrado pela coerção, pela manipulação e pela mentira. Ao proclamar “votos em vez de balas”, Machado recorda ao mundo que a resistência civil, quando sustentada pela coragem moral, pode ainda inverter o curso da história.

E é aqui que o eco do Nobel reverbera mais dolorosamente — no Brasil. A honraria concedida por Oslo deveria provocar constrangimento à diplomacia brasileira e à presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto o Comitê denuncia com clareza o “regime autoritário” de Maduro e a tragédia humanitária que ele perpetua, Brasília mantém uma complacência disfarçada de pragmatismo, oferecendo aval político a eleições fraudulentas e refúgio diplomático a um ditador deslegitimado.
Lula hesita em romper com um aliado ideológico cuja permanência no poder depende da aniquilação das liberdades básicas. Essa ambiguidade não é neutralidade — é conivência com o despotismo. Apoiar Maduro, sob o pretexto da solidariedade latino-americana, é trair o próprio ideal de integração democrática que o Brasil historicamente defendeu.

O Prêmio Nobel da Paz a María Corina Machado não é apenas uma homenagem: é uma convocação moral. Um lembrete de que a democracia não se sustenta sem solidariedade entre democratas. Que o Brasil — berço de lutas cívicas e democracias vibrantes — abandone a tibieza diplomática e se alinhe ao coro global em defesa da liberdade. Como advertiu Frydnes, num mundo com menos urnas e mais correntes, é a própria paz que se dissolve.

Principais características dos democratas

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

2 – Quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

3 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

4 – Democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

5 – Democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

6 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

7 – Democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

8 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

9 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

10 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

11 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

12 – Democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

13 – Democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

14 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

15 – Democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.