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8 de janeiro: democracia inabalada?

Democracia é um regime político, originado na Grécia Antiga, baseado nos princípios de isegoria (igualdade do ponto de vista da palavra) e isonomia (igualdade perante a lei), que surge quando o poder decisório, deslocado para o espaço público, passa para o demos (povo) e a autoridade, outrora unificada na figura do tirano, é distribuída para o chefe militar, o chefe religioso e o governante, todos escolhidos pelos cidadãos.

Na modernidade, com a formação dos Estados nacionais e a consolidação do conceito de soberania, os valores de igualdade e liberdade, instituídos na antiga Grécia, retornam na defesa de um Estado liberal contra o Estado absoluto.

Um Estado liberal não é necessariamente democrático nem um governo democrático é necessariamente liberal. Conforme explica Norberto Bobbio no livro Liberalismo e Democracia, trata-se de duas exigências fundamentais que nasceram com o Estado moderno: a exigência de limitar o poder (liberalismo) e de distribuí-lo (democracia).

Quais são, então, as características do Estado democrático? Elenquemos algumas: distinção entre o poder e o governante, garantida pela presença de leis, divisão das esferas de autoridade e existência de eleições; princípio republicano de distinção entre o público e o privado, existência de situação e oposição, maioria e minoria, respeitadas pela lei; legitimidade do dissenso e do contraditório.

Quais são, ainda, os pressupostos do Estado liberal? A doutrina dos direitos do homem elaborada pela tradição do direito natural, que está na base do direito proclamado nas duas principais revoluções liberais, a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).

O Estado Democrático de Direito é, pois, aquele em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais e constitucionais). É o governo de leis e não o governo dos homens. É um Estado, em suma, dotado de mecanismos constitucionais que obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder. Esses mecanismos são:

1 – Controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo;

2 –Eventual controle do Legislativo por uma Suprema Corte à qual se pede a averiguação da constitucionalidade das leis;

3 – Magistrado independentedo poder político.

Armados dessa introdução conceitual, passemos a analisar o 8 de janeiro de 2023.

O que houve de fato nessa data? Milhares de bolsonaristas, que estavam há dias acampados em frente a quartéis, invadiram a Praça dos Três Poderes. Alguns quebraram vidros, relógios, picharam estátuas, defecaram no STF, urinaram na tapeçaria, esfaquearam um Portinari e rasgaram a Constituição. 

Esses foram os fatos. Mas, como diria Nietzsche, não existem fatos, só existem interpretações. Então, vamos elas. 

Quem mais se beneficiou da patacoada bolsonarista foi, obviamente, Luiz Inácio Lula da Silva, que posa hoje de herói da democracia e aproveita a oportunidade para estreitar laços com todos os ministros do STF, convidando-os para churrascos e, claro, para a solenidade “Democracia inabalada”, que marcará um ano dos “ataques golpistas às sedes dos três Poderes, em Brasília”, reunindo no Congresso Nacional cerca de 500 convidados, entre autoridades e representantes da sociedade civil.

O ministro Alexandre de Moraes confirmou presença no pomposo evento, durante entrevista para O Globo, na qual declarou que “quem não acredita na democracia, não deve participar da vida política do país.” 

Estranha, porém, essa democracia tornada inabalável através de ações autoritárias que corrompem a democracia em seus princípios. Na democracia em que acredito, o Supremo Tribunal Federal não instaura inquérito de ofício – que dura cinco anos – para investigar Fake News, nem ministro julga processo no qual é também investigador e vítima. Na democracia em que acredito, há garantia de direitos individuais mesmo se o investigado tiver cometido o que seria, na cabeça de alguns, o maior de todos os delitos: ser bolsonarista.

A massa de manobra que invadiu a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro é formada principalmente por pessoas de classe média baixa, doutrinadas durante anos por um discurso raso, reducionista, reacionário e belicoso, difundido por meio de aplicativos de mensagens. 

São pessoas comuns, alguns jovens, mas, principalmente, pessoas de meia idade: pais e mães, avôs e avós de família, que deveriam ser processadas individualmente por dano ao patrimônio público não por cinco crimes, como julgou procedente o autoritário e inclemente Alexandre de Moraes.

Muitos bolsonaristas estão se lixando para a democracia, queriam sim fechar o congresso, o STF e adorariam ver um golpe de Estado. Mas eles não eram capazes de dar esse golpe, portanto não deveriam ser julgados e condenados por isso. 

Como bem escreveu Diogo Mainardi, em seu blog, no site Não é imprensaos bolsonaristas que, ao contrário de Bolsonaro, participaram do quebra-quebra foram iludidos de que aquilo resultaria num golpe, mas o fato é que nunca houve o menor perigo de que isso ocorresse, porque os militares não estavam dispostos a derrubar o regime. O Brasil inventou essa modalidade de golpistas sem golpe, que serviram de pretexto para o grande conluio nacional.” 

O que vai ser celebrado, portanto, na cerimônia “Democracia inabalada” não é a democracia, mas o triunfo desse conluioO STF, odiado por metade do país por ter possibilitado o retorno à vida pública de Lula e por ter revertido as penas da Lava Jato que incidiram sobre os corruptos mais poderosos do país, agora está de mãos dadas com o Poder Executivo. Às favas com o princípio democrático de independência do magistrado em relação ao poder político.

A democracia do supremo-lulismo é formidável. Que um homem chamado Clezão tenha morrido sob custódia do Estado com um parecer favorável de soltura da PGR engavetado é só um detalhe incômodo. Que um jovem de 24 anos tenha sido condenado a 17 anos de prisão pelo terrível crime de ter entrado no Congresso Nacional em 8 de janeiro e divida a cela com condenados por estupro e homicídio que cumprem pena menor que a dele, é outro detalhe de somenos importância.

Essa é a democracia festejada pelos esquerdistas que aclamam o ministro Alexandre de Moraes aos gritos de “Xandão” e “sem anistia”, enquanto babam de satisfação ao ver a vingança sem tréguas contra seus adversários políticos. 

Mas as prisões da fulana cozinheira, do sicrano pedreiro, do beltrano corretor e de tantas outras pessoas simples, sem nenhum antecedente criminal, deveriam pesar também na consciência dos influenciadores de direita que, durante anos, encheram o próprio bolso com o rentável ofício de blogueiros chapa-branca do bolsonarismo, pagos para reproduzir em seus canais o discurso da ordem do dia.

De Miami ou do conforto do seu sofá, incentivaram e insuflaram a invasão do dia 8 de janeiro, seguindo o exemplo do covarde-mor, o próprio Jair. A peãozada foi presa por Moraes. Os influencers estão curtindo uma temporada nos Estados Unidos. 

Trinta senadores da oposição assinaram um manifesto público em resposta ao evento “Democracia inabalada”, promovido pelo governo federal.

No documento, os signatários condenam “vigorosamente os atos de violência e a depredação dos prédios públicos ocorridos no dia 08.01.2023, em Brasília.” Também alertam que “o abuso dos poderes e o uso indevido de interpretações de dispositivos constitucionais pode matar a democracia” e ainda apelam para a “volta da normalidade democrática”.

Tudo isto está bem dito e é correto, mas não tem força pelo simples fato de que a maioria dos que assinam o documento foram incapazes de romper com o bolsonarismo quando isso se fazia claramente necessário. 

Apontar o que há de autoritário e antidemocrático nos nossos adversários políticos é fácil; difícil é apontar isso dentro do próprio espectro político ou do próprio grupo. A democracia brasileira continuará abalada sempre que a sua suposta salvação retroalimentar o populismo.

Por que somos oposição democrática ao governo Lula

(Esboço de uma declaração de democratas não-populistas)

Antes de qualquer coisa, porque não concordamos com os populismos do século 21, seja com o populismo dito de esquerda (o neopopulismo de Chávez-Maduro, de Ortega, de Lourenço, de Evo, de Correa, de Lugo, de Funes, de Kirchner, de Petro, de Obrador e de Lula), seja com o populismo dito de direita ou de extrema-direita (o populismo-autoritário de Bannon, de Trump, de Orbán, de Erdogan, de Wilders, de Le Pen, de Farage, de Gauland, de Salvini, de Abascal, de Modi e de Bolsonaro).

Avaliamos que os populismos, ditos de esquerda ou de direita, são hoje os principais adversários da democracia liberal. A evidência mais flagrante disso é o alinhamento dos governos populistas (ditos de esquerda ou de direita) ao eixo autocrático (Rússia, Irã, Síria e outras ditaduras islâmicas – incluindo Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica e demais organizações terroristas – com o apoio dissimulado da China e, às vezes, da Índia).

Somos oposição democrática ao governo lulopetista porque é um governo neopopulista, não-liberal. Discordamos da oposição bolsonarista porque é uma oposição antidemocrática, iliberal.

Nos opomos ao governo Lula por razões políticas (democráticas), não por motivos extra-políticos que tenham a ver com tradições, costumes e valores ditos conservadores (mas muitas vezes reacionários, no caso dos bolsonaristas).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua posição de se alinhar às maiores autocracias do planeta contra as democracias liberais.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o seu relacionamento preferencial com ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela, Nicarágua) e de não privilegiar as democracias liberais da América Latina (como Costa Rica, Chile e Uruguai).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o fato dele não apoiar a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o fato dele ser um articulador de um bloco composto majoritariamente por ditaduras (o BRICS), onde não figura nem uma democracia liberal.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com a sua visão geopolítica de um Sul Global em guerra fria contra o mundo livre (supostamente composto por países ricos, imperialistas e colonialistas).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o seu posicionamento objetivamente contrário à auto-defesa de Israel aos ataques da organização terrorista Hamas.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua desvalorização do papel de uma oposição democrática para o bom funcionamento do regime democrático e rejeitamos a prática de seus esbirros de chamar quem não é governista de fascista ou golpista e de fazer acusações sórdidas a quem critica ou não apoia o governo de querer a volta de Bolsonaro.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua prática de tomar a política como uma continuação da guerra por outros meios, dividindo a sociedade com uma única clivagem (povo x elites) e adotando a dinâmica do “nós” (o povo, quer dizer, os que seguem o líder) contra “eles” (as elites, ou seja, os que não aceitam se subordinar à hegemonia petista).

Nos opomos ao governo Lula porque rejeitamos o seu estatismo e defendemos as reformas de modernização do Estado promovidas na última década (incluindo a continuidade das privatizações) e o compromisso com as reformas futuras, com destaque para a administrativa e a política (com o fim da reeleição e a reforma partidária – visando a democratização interna dos partidos e o fim da partidocracia).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com a sua velha proposta petista de controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação, nem com a tentativa de incorporar grandes veículos de imprensa (escrita e televisiva) ao seu sistema de governança, criando um jornalismo chapa-branca, ameaçando e cancelando os profissionais independentes que não se conformam com essa interferência.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua estratégia de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido com o objetivo de se delongar do governo (falsificando o critério da rotatividade democrática).