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Foto: Frederico Brasil/TheNews2/Estadão Conteúdo.

Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro

Tudo o que eu tenho escrito e dito de relativamente importante a propósito de filosofia política pode ser resumido em uma tentativa de mostrar a necessidade de nos recolocarmos no fluxo da evolução de uma tradição democrática, liberal e humanista que se iniciou na Grécia como um anelo, um anseio, um elã por justiça e por liberdade.

A configuração social, o regime político, o sistema de governo que mais se aproxima da concretização desse anseio é a democracia.

O ter que qualificar tal modelo ao qual me refiro como democracia liberal seria desnecessário se a palavra democracia não tivesse sido deturpada, manipulada e instrumentalizada para defender justamente o seu oposto, dando ares de legitimidade a ações que lhe defraudam os princípios.

Essa manipulação maquiavélica daquilo que, para além de um mero conceito, é também um valor, atingiu níveis estratosféricos de cinismo, no Brasil, na semana passada, marcada pela patética cerimônia lulista em lembrança dos dois anos do 8 de janeiro de 2023, pela presença de representantes brasileiros e dirigentes petistas na posse de um ditador e pela histeria censora em torno da decisão da Meta de descentralizar a checagem de postagens nas redes sociais.

Abraço de amante na democracia relativa

Como foi bem pontuado por alguns poucos editoriais e artigos de quem prefere exercer o senso crítico à bajulação, Lula se apropriou do 8 de janeiro para posar, mais uma vez, de grande defensor da democracia. Nada mais distante da verdade.

Em um discurso que deveria ser solene, o presidente largou essa pérola: não sou nem marido, eu sou um amante da democracia. Porque, a maioria das vezes, os amantes são mais apaixonados pelas amantes do que pelas mulheres.”

Ah, a linguagem! Essa dama que os mal-intencionados tentam manipular, acabando presos nas suas complexas redes de sentido. Ao tentar exagerar o seu suposto ardor amoroso pela democracia, Lula apenas entregou a baixeza do seu caráter como homem: um homem vulgar, para quem é normal ter amantes e amá-las mais que a própria esposa.

Depois da tosca improvisação do discurso, Lula deu continuidade ao cerimonial patético: partiu rumo ao evento “abraço à democracia” onde minguadas centenas de militantes de esquerda deram as mãos e simbolizaram um abraço em torno da palavra democracia, escrita com flores que estavam em vasos no chão da Praça dos Três Poderes.

Lula X Maria Corina Machado

Em 9 de janeiro, um dia depois da encenação novelesca do suposto amor lulista pela democracia, dava-se, no país vizinho, um ato de genuína coragem e zelo democrático: milhões de venezuelanos saíam mais uma vez às ruas para cobrar respeito à vontade popular, que elegeu o ex-diplomata Edmundo González Urrutia como presidente da República.

A intimorata líder Maria Corina Machado saiu da clandestinidade e foi ter com o povo. Antes disso, já havia declarado: “se alguma coisa acontecer comigo, a instrução é muito clara para a minha equipe, para os venezuelanos: ninguém vai negociar a liberdade da Venezuela por minha causa.”

Como brilha a virtude para quem tem olhos para discerni-la! Como a força e grandeza dessa mulher ofusca e apequena ainda mais certas figuras que desempenham o papel de liderança política! Lula, por exemplo, jamais citou o seu nome. Certa feita, comparou-se a ela sem citar seu nome e, em tom de deboche, asseverou não ter ficado chorando quando ele próprio foi impedido de se candidatar…

Ah, a inveja! Como sofre a alma que dela padece…como se contorce o indivíduo vaidoso e moralmente débil, fustigado no seu orgulho ao ser confrontado por um indivíduo valoroso, portador da honra de que ele carece. Sobra-lhe isso: o deboche.

Ao sair da grandiosa manifestação, Corina Machado teve a moto que a conduzia interceptada pela Guarda Nacional Bolivariana. Ela foi, então, forte e bruscamente arrancada do seu veículo e colocada em outra moto entre dois homens.

Graças às redes sociais (essa ferramenta de interação global que a esquerda lulista está fortemente empenhada em censurar), a notícia do seu sequestro se espalhou rapidamente e, em questão de minutos, autoridades de diversos países mandaram duros recados exigindo sua imediata liberação. O Brasil de Lula, claro, permaneceu em silêncio.

“Amante secreto de Maduro”

No dia seguinte, 10 de janeiro, como se nada tivesse ocorrido, Lula enviou à Venezuela uma embaixadora brasileira para, ao lado dos ditadores de Cuba e da Nicarágua, participar do teatro que consumou o autogolpe de Estado com o qual Nicolás Maduro pretende se perpetuar no poder e continuar matando seu povo de terror e de fome.

A proximidade dos dois eventos – o “abraço da democracia” na Praça dos três poderes, em 8 de janeiro, e o endosso do Brasil ao golpe do ditador vizinho, no dia 10 – explicitou ainda mais a incoerência, a hipocrisia, o cinismo e até a maldade de quem se vale do nome democracia para fazer avançar a tirania, que é o seu exato oposto.

Dentre os vários comentários e trocadilhos aos quais o discurso improvisado de Lula, em 8 de janeiro, deu ensejo, foi do senador Sergio Moro o mais certeiro. Lula não é amante da democracia; “Lula é o amante secreto de Maduro.”

Galerias da Democracia

Começando pelo princípio: os “pais fundadores” atenienses, se a democracia tivesse propriamente fundadores. Não tem. E se tivesse haveria uma mãe, que adquiriu reputação de puta (diz-se que pela maledicência dos oligarcas): Aspásia de Mileto. O que temos aqui? Clístenes (em virtude da reforma distrital que propôs e implantou a partir de 508 a.C.), Efialtes (em razão da reforma que retirou o poder político do Areópago, por volta de 461 a.C – uma espécie de suprema corte até então coalhada de oligarcas), Péricles (o principal expoente da primeira democracia), Aspásia (sua amante, entre outras coisas, mas que não podia participar da democracia por duas razões: ser mulher e ser estrangeira) e Protágoras (aqui representando os sofistas, esses seres vulneráveis à democracia que foram vítimas de terríveis e injustos ataques de Platão e, claro, dos oligarcas).

De nenhum desses chegou a nós qualquer escrito. Aliás, não há nenhum texto teórico dos século 5 e 4 defendendo a democracia que tenha sobrevivido (se é que algum foi escrito). Só sabemos que houve democracia, por testemunhos indiretos da época do auge democrático (século 5 a.C.), por Ésquilo (em 472 a.C., Os Persas) e Eurípedes (em 425-16 a.C., As Suplicantes). E também por dois historiadores: Heródoto e Tucídides, que provavelmente nunca se converteram à democracia.

Então a primeira galeria é singela (e nela a imagem de Efialtes é totalmente inconfiável). Não aparece aqui o introdutor (ou os introdutores) do sorteio, sem o qual jamais teríamos ouvido a palavra democracia, pois se fosse para continuar disputando tudo no voto, os remanescentes da aristocracia fundiária, contrários à democracia, que tinham mais recursos para arrebanhar e subornar pessoas, venceriam todas ou quase todas as disputas (como de fato aconteceu, frequentemente, nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes).

A collage of statues of men

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 Pulando mais de dois milênios, passemos agora aos modernos que criaram as bases conceituais para a reinvenção da democracia, começando com Spinoza (vinte anos antes de Locke) (1670), seguido por Locke (1689), Montesquieu (1749), Rousseau (1762), Jefferson (representando os redatores da Declaração de Independências dos EUA) (1776), Madison (representando os federalistas Hamilton e Jay) (1787-88), Paine (1791), Constant (1819), Tocqueville (1835), Mill (1859), Dewey (1937-39), Popper (1945) e Arendt (c. 1950).

A collage of portraits of men

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 Bem, agora vêm os pensadores que fizeram a ponte entre os modernos e os contemporâneos: Berlin (1969), Dahl (1972-98), Havel (1978), Lefort (1981), Bobbio (1981-84), Castoriadis (1986), Dahrendorf (1990), Rawls (1993), Maturana (1993), Sen (1999), Przeworski (1985), Fukuyama (1995) e Rancière (2005).

 Em seguida, mais duas galerias de contemporâneos, cujos nomes os leitores não vão ter muita dificuldade de associar às imagens abaixo; embora aqui estejam em ordem alfabética: Applelbaum, Carothers, Castells, Coppedge, Diamond, Foa, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Krauze, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, Naim, O’Donnell, Plattner, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt. Nem todos, porém, estão retratados.

A collage of men wearing suits

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A collage of several people

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 Claro que nas duas galerias acima não estão todos os pensadores (ou autores) contemporâneos da democracia. São apenas alguns exemplos destacados.

No entanto, estudar esses autores não é o único caminho – nem talvez o mais curto – para que as pessoas despertem para a democracia. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, ela se aprende melhor pelo avesso. Em outras palavras, aprender democracia é desaprender autocracia. Um dos caminhos, portanto, é explorar as distopias, nas quais os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase) e podem ser mais facilmente identificados. O reconhecimento desses padrões na vida cotidiana é o melhor indicador de aprendizagem da democracia.

Então, a próxima galeria reúne os principais distopistas: Jerome K. Jerome (1981 em A nova utopia); Yevgeny Zamyatin (1921 em Nós); Aldous Huxley (1932 em Admirável mundo novo); Arthur Koestler (1940 em O zero e o infinito, ou melhor, Escuridão ao meio dia); George Orwell (1945, em A revolução dos bichos, ou melhor, Fazenda dos animais; e também 1949, em 1984); Ray Bradbury (1953 em Fahrenheit 451); William Golding (1954 em O senhor das moscas); e Daniel Wallace (2015 em Star Wars: manual do império). Aqui, novamente, não estão todos; por exemplo, falta, entre outros, Margaret Atwood (1985 em O contro da aia).

 Por último, há os grandes ficcionistas (ditos às vezes “científicos”), fundadores de mundos imaginários que, ainda mais que os distopistas considerados acima, revelam uma camada interpretativa das configurações sociais que permitem a ereção de sistemas autocráticos. Vale a pena destacar pelo menos três: Isaac Asimov (1951-53, pela trilogia Fundação, e 1982-93 pela extensão da série); Frank Herbert (1965-85 pela série Duna) e Philip Dick (1962 pelo O homem do castelo alto).

A collage of men with beards

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 Algumas obras fundamentais dos construtores da “tradição” democrática moderna, de Baruch de Spinoza a Amartya Sen, estão disponíveis na nota Tratamento para o analfabetismo democrático. É possível que, futuramente, sejam disponibilizadas também as obras principais dos demais presentes nas galerias acima.