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STF decide: o STF não pode ser fiscalizado

A decisão cautelar na ADPF 1259, proferida pelo ministro Gilmar Mendes, vai muito além de um simples ajuste interpretativo sobre a Lei do Impeachment. O que se viu foi uma decisão com efeitos legislativos e institucionais profundos, produzida sob o argumento de “proteção da democracia”, mas que, na prática, redesenha os mecanismos de controle sobre o Supremo Tribunal Federal e afasta o cidadão do processo político que lhe pertence por direito.

Há, em primeiro lugar, uma impropriedade jurídica elementar: a Constituição não retirou do povo a legitimidade para provocar o Senado em crimes de responsabilidade. A Lei 1.079/50, recepcionada pela Constituição de 1988, preservou esse espaço popular no art. 41. E não há dispositivo constitucional que exija monopólio acusatório do Ministério Público. Pelo contrário: o sistema de freios e contrapesos prevê que o Legislativo contenha abusos de todos os Poderes, inclusive do Judiciário. Ao restringir a iniciativa à PGR, a decisão cria um filtro político-personalista — o impeachment de ministros passa a depender da vontade de um único agente estatal, escolhido pelo Presidente da República e altamente suscetível a pressões partidárias e conjunturais.

Outro ponto crítico é a importação indevida da simetria presidencial. O ministro assume que a abertura de processo contra um integrante do STF exige o mesmo quórum qualificado de 2/3 aplicado ao presidente da República. Esse paralelismo não encontra base na Constituição. Trata-se de uma construção teórica livre, que ignora as diferenças estruturais entre os modelos de responsabilização: o presidente responde a um rito bicameral que separa admissibilidade (Câmara) e julgamento (Senado). Já os ministros do STF são julgados exclusivamente pelo Senado, sem fase prévia de outra casa legislativa. A decisão cria, portanto, uma espécie de “Câmara invisível”, um filtro inexistente que só serve para tornar o processo inviável.

A decisão também incorre em confusão conceitual entre “recebimento” e “instauração”. O ato inicial do Senado não é julgamento nem afastamento automático. É mera admissibilidade. A decisão trata esse momento como ameaça institucional, sugerindo que a simples existência do instrumento intimida juízes. O raciocínio é perigosamente autorreferente: como o Supremo pode ser alvo de pressões, o povo deve ser afastado do processo. É o oposto do princípio republicano. Democracias maduras não combatem abusos eliminando a fiscalização popular — qualificam os procedimentos, definem critérios objetivos, garantem filtros técnicos.

Por fim, a decisão se ancora em conceitos amplos como “constitucionalismo abusivo” e “ataques antidemocráticos”, transformados em justificativa para blindar um Poder contra o controle político legítimo. A crítica à “instrumentalização do impeachment” não pode servir de premissa para extinguir o direito de provocação. Países que se pretendem livres não tratam sua população como ameaça constante. A retórica da proteção institucional, quando recai sobre a própria Corte, torna-se autoproteção corporativa. O Supremo é guardião da Constituição, não senhor dela. Se a democracia começa e termina na toga, então já não existe República — existe apenas poder incontestável.

A Prisão de Jair Bolsonaro: um ataque à legalidade, uma arma de guerra política e o prenúncio de um 2026 turbulento

A prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros condenados pelo STF não é apenas um episódio jurídico. É o ápice de um processo marcado por arbitrariedades que colocam em xeque o Estado de Direito e revelam um Judiciário profundamente contaminado por interesses políticos. Não se trata de justiça — trata-se de engenharia eleitoral às vésperas de 2026.

O processo que levou Bolsonaro à prisão é, no mínimo, um manual de como driblar garantias constitucionais. A ausência de iniciativa do Ministério Público — que deveria ser o titular da ação penal — é uma agressão direta ao princípio do devido processo legal. Quando o juiz assume o papel de acusador, não temos Justiça; temos perseguição. Some-se a isso a imposição de censura prévia nas redes sociais, um dispositivo que remete aos períodos mais sombrios da história brasileira, com a nítida intenção de silenciar um líder político e sua base social. Não há respaldo jurídico sólido para esse tipo de intervenção: há apenas decisão monocrática com verniz de legalidade.

Ainda mais grave é o uso de teorias jurídicas artificiais, como a “autoria mediata”, para transformar opinião política em crime. Esse malabarismo conceitual é típico de regimes que não conseguem derrotar adversários nas urnas e recorrem ao tapetão institucional. A Justiça, que deveria ser o freio das arbitrariedades do poder, tornou-se sua extensão ideológica.

O impacto disso no cenário eleitoral de 2026 é devastador. O Judiciário, ao tentar afastar Bolsonaro do jogo político, cria exatamente o contrário: uma narrativa de mártir, capaz de reorganizar a direita e reacender o espírito de reação das bases conservadoras. Quanto mais se aperta, mais se alimenta a mobilização popular. O eleitorado percebe a perseguição — e a perseguição gera resistência. A esquerda, por sua vez, aposta tudo nessa estratégia: eliminar pela força aquilo que não consegue derrotar pela ideia.

Mas a realidade cobra. Um país cuja Justiça age como parte interessada deixa de ser uma democracia funcional e passa a ser uma república de exceção. A credibilidade institucional, elemento central para a estabilidade política, está sendo corroída por decisões que soam como vingança. Nesse ambiente, as eleições de 2026 não serão disputadas apenas por propostas — serão travadas sob o peso da insegurança jurídica, da polarização agravada e da erosão da confiança pública.

Se o Brasil deseja evitar um abismo institucional, precisa recuperar urgentemente o respeito pelo devido processo legal e pelo equilíbrio entre os poderes. Democracia não se sustenta com sentenças que silenciam adversários. Democracia exige disputa limpa, justiça imparcial e instituições que não sejam instrumentos de facção. O caminho para um 2026 menos tóxico começa com algo simples: o Judiciário assumindo novamente o seu papel de guardião da Constituição — e não o de inquisidor da política.

Imposto de Renda: um alívio real, mas com prazo de validade

O Congresso aprovou o Projeto de Lei nº 1.087/2025, que promete aliviar o bolso de milhões de brasileiros ao isentar do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil por mês. Segundo o governo, cerca de 25 milhões de pessoas serão beneficiadas a partir de 2026. A medida é positiva e traz um ganho real para a renda do trabalhador, mas seu impacto tende a ser passageiro.

O motivo é simples: a tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas acumula uma defasagem de cerca de 154% entre 1996 e 2024, segundo a Receita Federal. O novo projeto corrige apenas 35% dessa defasagem, o que significa que o alívio tributário é parcial. A cada reajuste salarial e aumento de preços, mais pessoas voltam a ser tributadas, mesmo sem terem ampliado de fato seu poder de compra.

Outro problema é que o projeto não estabelece uma regra de correção automática da tabela pela inflação. Sem essa atualização anual, o benefício concedido agora será rapidamente corroído, como já ocorreu no passado. Entre 2016 e 2022, a tabela ficou congelada, e o número de contribuintes que pagavam imposto subiu de 26 milhões para mais de 32 milhões. Na prática, o congelamento funciona como um aumento de imposto disfarçado: o trabalhador não fica mais rico, mas paga mais.

Ainda assim, o PL tem méritos. A criação de uma tributação mínima de 10% sobre rendas acima de R$ 600 mil anuais e a taxação de lucros e dividendos remetidos ao exterior corrigem distorções históricas que beneficiavam os mais ricos. Hoje, os 0,01% com maiores rendas pagam proporcionalmente menos imposto que parte da classe média. Nesse ponto, o projeto traz mais justiça fiscal e torna o sistema um pouco mais progressivo.

O problema é que a pressa em aprovar a medida antes do fim do ano — para que entrasse em vigor já em 2026 — fez com que o Senado abrisse mão de discutir pontos estruturais, como a correção automática da tabela e a compensação financeira adequada a estados e municípios, que devem perder cerca de R$ 5 bilhões por ano de arrecadação.

Assim, o novo Imposto de Renda é um avanço simbólico e social, mas de efeito limitado. Representa uma vitória política importante, ao aliviar o peso sobre quem mais sente o custo de vida, mas sem resolver o problema de fundo. Sem uma política permanente de atualização da tabela, a reforma perde força com o tempo e corre o risco de se transformar em mais um alívio temporário — daqueles que começam com promessa de justiça fiscal e terminam como mais uma ilusão passageira.

Entre o tiroteio e a omissão: o colapso da segurança pública e o dever de valorizar quem protege a sociedade

A megaoperação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos, expõe um drama nacional: o Brasil ainda não encontrou o equilíbrio entre força legítima, coordenação institucional e presença social. A cada operação de grande escala, renova-se a sensação de que o Estado perdeu o controle de parte do território — e de que as respostas continuam sendo improvisadas.

A PEC 18 de 2025, em debate no Congresso, pretende constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e ampliar o papel da União na coordenação do setor. O objetivo é nobre — integrar políticas e garantir recursos —, mas o risco é transformar um problema de gestão em um problema de centralização. Segurança não se administra de Brasília. Ela se constrói com inteligência local, presença contínua e responsabilização real.

O SUSP já existe desde 2018, mas nunca funcionou plenamente. Faltam integração de dados, financiamento constante e mecanismos de controle. Constitucionalizar o sistema pode ser um avanço, desde que venha acompanhado de metas, transparência e fortalecimento das polícias estaduais, que são quem enfrenta o crime no dia a dia.

Também é necessário avaliar o impacto da decisão do STF na ADPF 635, a “ADPF das favelas”. Ao restringir operações durante a pandemia, buscou-se preservar vidas, mas o efeito colateral foi permitir que o crime organizado expandisse seu domínio em várias comunidades. Onde o Estado recua, o tráfico e as milícias ocupam o espaço.

O caminho para conter essa escalada passa por fortalecer a certeza da punição. Penas mais duras são necessárias, sim — mas de nada adiantam sem investigações eficazes, julgamentos céleres e presença institucional permanente. O que inibe o crime é a previsibilidade da lei e a autoridade do Estado, não apenas o tamanho da pena.

E é preciso dizer com clareza: os policiais militares merecem respeito e valorização. São homens e mulheres que arriscam a própria vida para proteger a sociedade, muitas vezes sem as condições adequadas de trabalho. Eles precisam de treinamento, tecnologia, apoio psicológico e respaldo jurídico — não de discursos vazios ou improvisos políticos.

A tragédia do Rio é um sinal de alerta. Se o Brasil não reconstruir seu modelo de segurança com base em inteligência, integração e valorização de quem protege o cidadão, continuaremos oscilando entre a omissão e o confronto.
O país precisa de uma política de segurança pública que una firmeza e humanidade — capaz de garantir paz com autoridade, e autoridade com responsabilidade.

A toga não pode ser trincheira

A possível indicação de Jorge Messias ao Supremo Tribunal Federal representa muito mais do que uma escolha técnica — é um movimento político com potencial de alterar o equilíbrio entre os Poderes e abalar a confiança do cidadão na Justiça.

Como advogado-geral da União, Messias ultrapassou os limites do cargo e assumiu um papel político, ao criar, por iniciativa própria, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia — um órgão que se propôs a combater a desinformação, mas que na prática se transformou em instrumento de controle narrativo, mirando quase exclusivamente opositores do governo. Nenhuma ação foi dirigida a atores da esquerda, embora a desinformação exista em todos os campos políticos. Quando o Estado escolhe a quem punir por falar, a democracia começa a perder a voz.

A transição de Messias da Advocacia-Geral da União para o STF agrava o problema. O papel de um ministro do Supremo exige distanciamento político, independência e neutralidade. No entanto, sua trajetória recente mostra identificação clara com a agenda do Executivo e uma atuação que beira o ativismo ideológico. Um juiz que já escolheu um lado não pode ser o guardião de todos. Levar ao Supremo alguém com esse perfil significa aproximar perigosamente o tribunal do governo, transformando o guardião da Constituição em parte interessada nos rumos da política.

Há ainda uma contradição evidente na tentativa de apresentar Jorge Messias como um nome “evangélico”, numa estratégia de aproximação do governo com um segmento de valores morais conservadores. Messias pode ser um homem de fé, mas sua atuação institucional e o campo político que representa colidem com princípios caros à maioria dos evangélicos, como a defesa da vida, da família e da liberdade religiosa. Não basta citar a Bíblia; é preciso honrar seus valores. Vender essa imagem é uma tentativa de usar a identidade religiosa como escudo simbólico para legitimar uma escolha essencialmente política.

O Supremo Tribunal Federal precisa de ministros que ajam com isenção, respeito à pluralidade e compromisso com o equilíbrio entre os Poderes — não de intérpretes de governo travestidos de juízes constitucionais. A Constituição não precisa de defensores de narrativa, mas de guardiões da lei. A toga é símbolo de justiça, não de militância. A eventual ida de Jorge Messias ao STF seria mais um passo na politização da Justiça e na perda de confiança do cidadão comum nas instituições que deveriam proteger a liberdade e o Estado de Direito.

O Nobel da Paz de María Corina Machado — um prêmio à liberdade e um constrangimento ao autoritarismo

A decisão de conceder o Prêmio Nobel da Paz de 2025 à líder venezuelana María Corina Machado é mais do que uma homenagem pessoal. É um gesto de coragem política e uma denúncia pública contra o regime de Nicolás Maduro, que há anos sufoca a democracia na Venezuela. O prêmio, concedido a uma mulher que enfrenta perseguição, censura e ameaça, é uma mensagem clara ao mundo: lutar pela liberdade em tempos de opressão é, em si, um ato de paz.

Não há contradição alguma em conceder o Nobel da Paz a uma pessoa que resiste a um regime autoritário. Pelo contrário. A verdadeira paz não se resume à ausência de guerra — ela exige justiça, liberdade e respeito aos direitos humanos. É nesse sentido que a escolha de María Corina se torna profundamente simbólica: ela representa milhões de venezuelanos que há anos vivem sob repressão, exílio forçado e miséria provocada por um governo que destruiu as instituições democráticas em nome de um projeto de poder.

O reconhecimento internacional da luta de María Corina reforça as denúncias contra o regime chavista, acusado por organizações como a ONU e a Human Rights Watch de violações sistemáticas de direitos humanos, manipulação eleitoral e perseguição política. O Nobel não apenas confirma a legitimidade das vozes que denunciam essas práticas, mas também amplia o alcance de sua causa — transforma a dor venezuelana em um chamado global por liberdade e dignidade.

Ao mesmo tempo, o prêmio é um constrangimento direto para os que ainda sustentam Maduro, seja por afinidade ideológica, seja por conveniência política. Apoiar ou relativizar um regime que prende opositores, censura a imprensa e manipula o voto popular é, na prática, fechar os olhos para o sofrimento humano. O Nobel impõe um espelho incômodo a esses aliados: de que lado da história eles querem estar?

Há, no entanto, quem critique a escolha de María Corina, alegando que ela representa um confronto político e não a “paz”. Mas é exatamente aí que se revela a profundidade dessa decisão. Em um país onde votar é um risco, onde pensar diferente é crime, resistir pacificamente é o maior ato de paz possível. A luta de María Corina não é por poder, mas por liberdade — a base de toda convivência pacífica e democrática.

É importante também separar duas posturas muito diferentes: a de quem defende a liberdade, e a de quem defende ideologias que suprimem essa mesma liberdade. A primeira exige coragem e compromisso com a verdade. A segunda, disfarçada de discurso “revolucionário” ou “anti-imperialista”, serve apenas para justificar a perpetuação da tirania. María Corina representa a primeira — e o Nobel deixa claro que o mundo reconhece isso.

Mais do que um prêmio, essa escolha é uma advertência: regimes autoritários podem controlar fronteiras, censurar vozes e reprimir opositores, mas não conseguem silenciar o desejo universal de liberdade. E, para aqueles que ainda insistem em relativizar ditaduras, o Nobel da Paz de 2025 será lembrado como o momento em que o mundo reafirmou que não há verdadeira paz sem democracia.

Em última análise, o reconhecimento a María Corina Machado é uma vitória moral — não apenas dela, mas de todos que acreditam que a paz nasce quando a liberdade vence o medo.

Dois anos do terror do Hamas: a urgência de não esquecer e apoiar Israel

Neste 7 de outubro, completam-se dois anos desde que o grupo terrorista Hamas desencadeou uma série de ataques brutais contra Israel que chocaram o mundo. O grau de violência desses atos, que incluíram assassinatos indiscriminados, sequestros e ataques a civis, é difícil de dimensionar, mas impossível de ignorar. Até hoje, 48 pessoas permanecem reféns nas mãos desses terroristas, vítimas de uma violência que não conhece limites.

O que agrava ainda mais essa tragédia é a indiferença, a relativização e, em alguns casos, o apoio explícito de líderes ao lado terrorista. Não é aceitável que autoridades, inclusive de governos como o brasileiro, minimizem ou justifiquem ações que atentam contra a vida humana. Esse tipo de postura contribui para a perpetuação do terror e para o sofrimento das vítimas.

É essencial lembrar que Israel é a única democracia da região, um país que respeita a liberdade individual, os direitos humanos e a coexistência pacífica de diversas culturas e religiões. A luta de Israel contra o Hamas não é apenas uma questão de segurança nacional; é uma defesa da própria civilização contra o extremismo e o ódio.

Ao mesmo tempo, é preciso contextualizar historicamente as questões territoriais com a Palestina. Várias tentativas de criação de dois estados foram propostas ao longo das décadas, mas foram rejeitadas sistematicamente pelo lado árabe. O reconhecimento dessa realidade é fundamental para que o debate sobre a paz seja realista e justo.

A verdadeira busca pela paz não passa por um cessar-fogo que apenas garante a continuidade do terror, mas pela eliminação do Hamas, que oprime a própria população da Faixa de Gaza e impede qualquer possibilidade de progresso social e econômico. Apoiar Israel em sua luta legítima contra o terrorismo é reconhecer a necessidade de proteger vidas, punir os culpados e abrir espaço para uma paz duradoura, baseada na segurança, na justiça e no respeito à história.

Não podemos esquecer os horrores desses dois anos. Não podemos fechar os olhos para o sofrimento dos reféns. E, sobretudo, não podemos ignorar a importância de apoiar uma democracia que luta diariamente contra o terror. A paz verdadeira só será possível quando o Hamas for derrotado e a liberdade voltar a florescer para todos na região.

Anistia ou Dosimetria: uma Conciliação Impossível

No tabuleiro político brasileiro, onde pragmatismo e idealismo colidem com a força de um terremoto, a tentativa de substituir a anistia ampla dos condenados do 8 de Janeiro por um “PL da Dosimetria” revela mais sobre as fragilidades do nosso sistema político do que sobre a busca por justiça ou pacificação.

Articulada por figuras como Aécio Neves (PSDB-MG) e Michel Temer (MDB), a proposta de redução de penas, em vez de perdão total, é um malabarismo político que tenta agradar a todos – e, por isso, corre o risco de não conquistar ninguém. Apesar de não haver vedação expressa na Constituição Federal à anistia para crimes como os do 8 de Janeiro, a manobra enfrenta barreiras jurídicas, políticas e éticas que a tornam um castelo de cartas prestes a desabar.

A proposta original, o PL 2162/23 buscava anistiar integralmente os condenados pelos atos de 8 de Janeiro, uma bandeira bolsonarista que obteve apoio expressivo na votação de urgência em 17 de setembro de 2025, com 311 votos a favor. Era o Centrão em ação: União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que juntos dominam 74% dos municípios pós-eleições de 2024, viram na anistia uma chance de consolidar capital político com a base conservadora.

No entanto, a reunião de 18 de setembro, envolvendo Paulinho da Força (Solidariedade-SP), Aécio e Temer, mudou o rumo: saiu a anistia, entrou a dosimetria – um ajuste de penas que, segundo Paulinho, seria um “meio-termo” para pacificar o país. O resultado? Um Frankenstein legislativo que desagrada tanto a direita quanto a esquerda, enquanto testa os limites da separação de poderes.

Juridicamente, a dosimetria é um terreno pantanoso. Alterar penas já fixadas pelo Judiciário, pode ser interpretado como interferência legislativa na competência judicial, violando o artigo 2º da Constituição. Ainda assim, o governo Lula, em busca de estabilidade, flerta com a ideia, vendo-a como uma ponte para evitar o desgaste de uma anistia ampla.

Os articuladores dessa manobra não ajudam a inspirar confiança. Aécio Neves, outrora gigante do PSDB, hoje luta para manter a sigla relevante. Com apenas 13 deputados, o PSDB é uma sombra do que foi. Michel Temer, por sua vez, mantém alguma influência no MDB, mas o partido está dividido – a votação da urgência revelou uma bancada majoritariamente contrária, apesar do apoio de Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Ambos, Aécio e Temer, são vistos como ecos de um passado político que não ressoa mais com o eleitorado, seja ele conservador ou progressista. Sua tentativa de costurar um consenso soa mais como oportunismo do que liderança.

O Centrão, como sempre, é o fiel da balança. União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que garantiram a urgência do PL, são movidos por pragmatismo puro: apoiam o que rende votos e emendas. Inicialmente simpáticos à anistia, hesitam diante da dosimetria, temendo o veto do Senado (onde MDB e PSD prometem resistência) e a reação do STF. Bolsonaristas celebram o apoio inicial do Centrão, mas já temem um recuo estratégico, enquanto o governo Lula acena com cargos para mantê-los na linha. Essa volubilidade do Centrão é a prova de que a proposta, longe de pacificar, apenas expõe as fissuras de um Congresso que negocia princípios como quem negocia no mercado.

Paulinho da Força, o relator, é a figura mais trágica desse imbróglio. Escolhido por sua proximidade com o STF e histórico de transitar entre lados opostos, ele propõe a dosimetria como “solução de maioria”. No entanto, enfrenta um fogo cruzado: a base bolsonarista, liderada por nomes como Eduardo Bolsonaro e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prepara emendas para restaurar a anistia ampla; a esquerda, com PT e PSOL à frente, rejeita qualquer leniência, chamando-a de “golpe continuado”. Paulinho é alvo de críticas de ambos os lados, e poderá ser voto vencido, um relator sem apoio real, preso entre a pressão do Planalto, a revolta da direita e a intransigência da esquerda.

A dosimetria, portanto, é menos uma solução e mais um sintoma da crise de representatividade do nosso Congresso. Sem uma base jurídica sólida e com articuladores de influência limitada, a proposta tenta apaziguar um país dividido, mas ignora o cerne da questão: a justiça não pode ser negociada em nome da conveniência política. Muito menos quando está em jogo a vida de centenas de pessoas que podem ser alcançadas por essas medidas.

A verdadeira pacificação exige diálogo, não barganhas.

A fadiga material das ruas: quando a militância troca o asfalto pelo feed, sem recuperar o fôlego

As ruas brasileiras, que nos últimos anos foram palco de mobilizações massivas, hoje revelam um esvaziamento visível. Não se trata de redução da polarização nem de perda de popularidade de Lula ou Bolsonaro, mas de uma fadiga material: o cansaço dos setores mais engajados, que percebem que protestos repetidos produzem efeitos cada vez mais escassos. Essa exaustão atinge tanto a direita quanto a esquerda e se expressa também no ambiente digital — não como revitalização, mas como outro sintoma do mesmo esgotamento.

As jornadas de junho de 2013 exemplificam esse processo. Não foram manifestações de direita; surgiram do Movimento Passe Livre, com pautas progressistas. Pesquisas do Datafolha mostravam apenas 10% de participantes identificados com a direita e 36% com a esquerda ou centro-esquerda. Mas o caráter plural — sindicatos, coletivos feministas, negros e LGBTQIA+, grupos autonomistas e patrióticos — abriu espaço para que a direita encontrasse ali um canal para disputar o debate público em pé de igualdade com a esquerda nos anos seguintes.

Hoje, porém, tanto a direita quanto a esquerda convivem com o desencanto. O “gigante” acordado em 2013 parece cada vez mais sonolento: atos pró-anistia em 2025 reuniram dezenas de milhares, muito menos que mobilizações anteriores. Já os protestos da esquerda tendem a ser seguidos por crescimento de rejeição, provocada pelos segmentos e atores que sustentam seu campo político. O resultado é ruidoso na forma, mas silencioso no efeito.

Essa fadiga não se limita ao espaço físico. No digital, o engajamento explode em números — a consultoria Bites registrou 1,48 bilhão de interações com políticos de direita entre janeiro e maio de 2025, mais que o dobro da esquerda e do centro juntos — mas esse volume não significa ação coletiva transformadora. Como aponta Raphael Castro no Ateliê de Humanidades, “a hiperatividade online pode mascarar a inanição cívica offline”. Em média, brasileiros passam 3h46 min por dia nas redes (acima da média global de 2h31 min), mas grande parte desse consumo político se traduz em curtidas, comentários e hashtags sem vínculo com estruturas permanentes de participação.

O risco é o mesmo que Durkheim descreveu como anomia social: perda de normas e objetivos coletivos. A pseudodemocracia pode seguir formalmente operante, mas sem engajamento real, com cidadãos dispersos e céticos.

Para evitar esse caminho, é preciso reconstruir o engajamento. Reativar redes de participação permanentes (digitais e presenciais) que liguem demandas locais a ações nacionais. Redefinir o papel dos atos: cada mobilização deve vir acompanhada de entregas concretas — campanhas, leis ou ações comunitárias. E reencantar o debate público com novas narrativas e rituais cívicos menos partidários e mais comunitários, capazes de unir cidadãos em torno de valores comuns.

Sem esse esforço, tanto as ruas quanto as timelines continuarão a dar sinais de vida — mas sem fôlego real. E a democracia corre o risco de esvaziar-se não por confronto, mas por desilusão.

O Julgamento de Bolsonaro: Um Teste Crítico para o STF e a Democracia Brasileira

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, marcado para 2 de setembro de 2025 no Supremo Tribunal Federal (STF), vai além da figura de um político acusado de tentativa de golpe. Trata-se de um momento definidor para a democracia e, sobretudo, para a credibilidade do STF, que enfrenta crescente desgaste diante da opinião pública. Alegações de parcialidade, fragilidade de provas, cerceamento de defesa e medidas consideradas arbitrárias levantam dúvidas sobre a imparcialidade da Corte. O Supremo terá de escolher entre reforçar sua legitimidade como guardião da Constituição ou aprofundar a percepção de que se tornou um tribunal politizado.

Tradicionalmente visto como pilar democrático, o STF atravessa uma crise de imagem. A condução do processo por Alexandre de Moraes gera críticas que vão além dos círculos bolsonaristas. Sua atuação simultânea como relator e figura central do inquérito, somada a decisões como bloqueios de perfis, uso de tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar de Bolsonaro em agosto de 2025, alimenta a narrativa de um Judiciário que extrapola seus limites. Entidades como a Human Rights Watch e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertaram para riscos de abuso de poder e enfraquecimento do devido processo legal.

A escolha de manter o julgamento na 1ª Turma do STF, composta por apenas 5 ministros, em vez do Plenário, é um erro grave. Casos de grande impacto — como o mensalão (2012) ou a prisão em segunda instância (2016) — foram julgados pelos 11 ministros em sessões públicas, o que fortaleceu a legitimidade das decisões. No caso Bolsonaro, limitar a decisão a uma turma reduzida reforça a percepção de falta de transparência.

O julgamento não diz respeito apenas a um ex-presidente, mas ao futuro da accountability política no Brasil. A sociedade, já polarizada, acompanha cada passo. Se o processo for visto como injusto, poderá inflamar tensões, legitimar narrativas de perseguição e minar a confiança em outras instituições. Por outro lado, um julgamento transparente e equilibrado pode reafirmar que ninguém está acima da lei.

As delações frágeis — como a de Mauro Cid, questionada por juristas pela ausência de provas materiais — e decisões céleres que sugerem presunção de culpa aumentam a desconfiança. A expectativa não é apenas por condenação ou absolvição, mas por um processo justo em forma e conteúdo.

O julgamento de 2 de setembro é um divisor de águas. O STF precisa demonstrar que é capaz de julgar com imparcialidade e sem aparência de perseguição política. Um processo opaco enfraquecerá a Corte e, com ela, a própria democracia. A sociedade brasileira merece um julgamento à altura da Constituição.