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Não há dois lados

Os “progressistas” contra os fascistas

As narrativas de dois lados em eterno confronto fabricam guerras. Foi assim que se constituiu a ideia de esquerda e, simetricamente, de direita. Como tomam como sentido da política a ordem (e não a liberdade), para ambas trata-se, em política, de lutar contra o outro lado para implantar a ordem que acham que condiz, no caso da esquerda, com o sentido (ou as leis) da história e, no caso da direita, com a ordem que acham que é designada por deus (quer dizer, pela religião) ou determinada pela natureza.

Atualmente o mesmo esquema é traduzido, pela esquerda, como uma luta dos “progressistas” contra a extrema-direita fascista.

É curioso porque, no lado dos “progressistas”, cabem os ditadores de esquerda. Os que divergem dessa narrativa são então colocados no lado dos fascistas.

Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Khamenei e seus braços terroristas (Irã), Bouphavanh (Laos), Chính (Vietnam), Lourenço (Angola), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua) e Canel (Cuba) são todos contra a extrema-direita. Putin (Rússia) é explicitamente antifascista (invadiu a Ucrânia para, supostamente, barrar os nazifascistas). Aliás, o muro de Berlim se chamava (na época em que Putin morava na Alemanha Oriental) Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção Antifascista). A não ser que queiramos enganar os outros, não faz o menor sentido classificar todos esses ditadores de esquerda (ou admirados pela esquerda) como “progressistas”

A única distinção honesta não é entre lados em eterno confronto entre si e sim entre regimes políticos: existem democracias e autocracias (ditaduras). Mas como existem ditaduras de esquerda e de direita, revela-se impotente (como categoria de análise) a distinção entre esquerda e direita ou (como diretiva política) a distinção entre “progressistas” e fascistas. Os regimes de esquerda de Maduro, Ortega e Canel são tão autocráticos quanto os regimes de direita de Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Bukele (El Salvador).

Governantes como Frederiksen (Dinamarca), Støre (Noruega) e Luxon (Nova Zelândia) não se definem por serem de esquerda ou de direita e sim por serem democratas liberais. Eles não são iguais a pretendentes autoritários de extrema-direita como Weidel (Alemanha), Ventura (Portugal) e Abascal (Espanha). O mesmo vale para Kristersson (Suécia), Schoof (Holanda) e Starmer (Reino Unido), que não são iguais a governantes autoritários de esquerda como Lourenço (Angola), Bouphavanh (Laos) e Chính (Vietnam).

Vai e volta e reaparece a ideia de uma “frente ampla contra o fascismo”. Por meio desse truque a esquerda quer que os democratas liberais se rendam, se diluam no condomínio dos “progressistas”, abram mão de apresentar à sociedade sua alternativa, em nome de derrotar a extrema-direita e, obviamente, colocar ou manter no poder a esquerda. O objetivo aqui é impedir a formação de um centro de gravidade democrático que não se defina por alinhamentos à esquerda ou à direita.

No Brasil dos dias que correm essa frente ampla para derrotar o bolsonarismo (de extrema-direita) quer manter o lulopetismo (de esquerda) no poder. Deve estar certo. Pois Zé Dirceu e seu fiel escudeiro Breno Altman são “progressistas”. Delúbio Soares e João Vaccari são “progressistas”. Ricardo Berzoini e Gleisi Hoffmann são “progressistas”. Frei Betto e seu pupilo Luiz Marinho são “progressistas”. O que importa é que todos são antifascistas!

Curioso que nessa já surrada “frente ampla contra o fascismo” dos populistas de esquerda não cabem os que são contra as ditaduras de Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei, Hamas e Hezbollah, Lourenço, Maduro, Ortega e Canel. Por quê? Ora, porque esses são de esquerda. E o objetivo de derrotar a direita é colocar no poder a esquerda, mesmo que seja autocrática. Alguém poderia dizer: viva Stalin (que matou cerca de 20 milhões de pessoas, mas era antifascista) contra Hitler.

Não há dois lados. Democracia e autocracia são regimes políticos, não lados. E, mesmo assim, existem democracias liberais (como Chile e Uruguai – cujo governo era dito de direita e agora é dito de esquerda) e democracias não-liberais (apenas eleitorais, algumas vezes com governos ditos de esquerda, como no México, em Honduras, na Colômbia, na Bolívia e no Brasil e, em outros casos, ditos de direita, como na Argentina e em Israel). E existem autocracias eleitorais (com governos ditos de direita, como na Índia ou ditos de esquerda, como na Bielorrússia) e autocracias não-eleitorais (com governos ditos de esquerda, como em Cuba ou ditos de direita, como no Haiti).

Querer reduzir tudo a dois lados em permanente confronto está no “DNA” da esquerda, que – desde sua pre-história jacobina e, em seguida, bolchevique – pratica a política como continuação da guerra por outros meios (o que, a rigor, do ponto de vista democrático, é antipolítica). É por isso que se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

Verdadeiro Embate

O debate político polarizado tornou-se parte do cotidiano dos brasileiros. Embates entre aqueles que se identificam com a esquerda e outros com a direita, potencializados pela disputa entre Bolsonaro e Lula, passaram a definir amizades, convivência em família e até posições de emprego. Perturbados pela obediência cega aos líderes que pautam o debate nacional, a maioria se esquece que a disputa entre esquerda e direita passa longe daquilo que realmente pauta o real desafio político do mundo na atualidade.

Estamos falando de duas frentes. De um lado estão as autocracias, regimes autoritários e totalitários e de outro situam-se as democracias. Em ambos existem vértices da direita e da esquerda, sendo ineficaz nos dias de hoje classificar-se desta forma simplista, uma vez que a direita autocrática dialoga sem rodeios com a esquerda autoritária e ambos estão muito longe da direita e da esquerda liberais. Em resumo, estar na direita ou na esquerda não faz com que alguém seja necessariamente um partidário da democracia.

Esta lógica já foi explicada por David Nolan em 1969. Seu diagrama é traçado com base em dois eixos centrais: liberdade econômica e liberdade individual. O gráfico também é dividido em cinco tendências políticas: direita, esquerda, centro, liberal e totalitário. Ali conseguimos perceber, por exemplo, que regimes autocráticos de direita estão muito mais próximos dos autoritários de esquerda do que da direita liberal. Ao mesmo tempo, vemos que estes estão muito mais próximos da esquerda liberal do que se imagina. A concepção do diagrama é didática, simples e objetiva.

Diante disso podemos enxergar com mais clareza o jogo geopolítico que se impôs no tabuleiro atual. Estamos diante de um alinhamento entre autocracias e autoritários de um lado, sejam de esquerda ou direita, da mesma forma que do outro lado há um grupo coeso de democracias que incluem governos de esquerda e direita. Isso explica por que reduzir a divisão entre dois polos tradicionais pode gerar confusão e erros de avaliação que turvam a leitura política de muitos brasileiros.

Esta lógica explica a aproximação do Brasil com a Rússia de Putin, seja em um governo com viés de direita, assim como de esquerda, ou seja, com Bolsonaro e Lula. O mesmo raciocínio explica o fascínio da nova direita brasileira com Viktor Orbán na Hungria e Nayib Bukele em El Salvador, assim como nossa esquerda se encanta com a China de Xi Jinping e alivia a pressão sobre Cuba, Nicarágua e Venezuela, dirigidas pelos ditadores Miguel Díaz-Canel, Daniel Ortega e Nicolás Maduro.

Fato é que falta de alinhamento do Brasil com países democráticos é a principal perda de nossa nação em tempos recentes. Seja pelo caminho da esquerda ou da direita, o resultado tem sido o mesmo, ou seja, aproximação com autocracias, teocracias, regimes autoritários e até mesmo totalitários. Algo que se traduz em uma lástima para um país que se enxerga como uma democracia.

O verdadeiro embate atual está posto com base em nações que possuem compromissos democráticos e aquelas que decidiram seguir o caminho das autocracias. Em ambos, veremos nomes da esquerda e da direita. Deveríamos parar de nos preocupar com o acessório e passar a avaliar aquilo que é essencial.