Arquivo da tag: Mar da China Meridional

Conflitos Geopolíticos na “Garganta do Pacífico”: o Mar do Sul da China

O Mar da China Meridional, ou Mar do Sul da China (MSC), figura entre as maiores prioridades — e, também, alguns dos mais sérios desafios — do ambicioso projeto de Xi Jinping no sentido de tornar a China ‘grande de novo’.

Com 3,5 milhões de quilômetros quadrados (correspondendo a 22% da massa territorial chinesa) e mais de 250 ilhas, o MSC banha 10 países: a República Popular da China (RPC); Taiwan; Filipinas; Brunei; Malásia; Camboja; Indonésia, Singapura, Tailândia; e Vietnam. Por ali circulam de 20% a 33% do comércio mundial marítimo. Seu subsolo é rico em petróleo e gás, e suas águas abrigam mais de 3.300 espécies de peixes. O MSC é uma das maiores zonas produtoras de pescado do mundo, fonte importante de segurança alimentar para as nações litorâneas. Seus muitos pontos de estrangulamento, como os estreitos de Luzon e de Taiwan, aliados ao volume de interesses econômicos e militares em jogo, valeram-lhe o apelido de “Garganta do Pacífico”. Em caso de conflito militar bloqueando o Estreito de Malaca, entre a Indonésia e a Malásia, todo o seu tráfego marítimo teria que ser redirecionado para o sul da Austrália, com enormes custos adicionais para o comércio mundial e incalculáveis prejuízos para Taiwan, Singapura e outros países da região.

Por sua importância, os Estados Unidos advogam plena liberdade de navegação para as frotas mercantes e de guerra que singram o MSC, o que se choca frontalmente com as pretensões chinesas. As informações a seguir constam da excelente e atualíssima obra do jornalista Chun Han Wong, Party of One: the Rise of Xi Jinping and China’s Superpower Future (New York: Simon & Schuster, 2023). Nascido em Singapura e fluente tanto em inglês quanto em mandarim, ele trabalhou na sucursal chinesa do Wall Street Journal entre 2014 e 2019, quando teve a renovação de suas credenciais profissionais negada pelas autoridades de Pequim, que se indignaram com suas reportagens sobre as fortunas amealhadas pela oligarquia comunista, aí incluída a família de Xi.

Ainda na década de 1940, quando o Kuomintang dominava o continente, o governo do generalíssimo Chiang Kai-shek divulgou uma mapa que proclamava a soberania chinesa sobre a maior parte do MSC. Depois da vitória da revolução liderada por Mao Tsé-tung (1949), o regime comunista consolidou aquele ‘traçado’, estendendo suas pretensões a limites que até hoje alimentam atritos com seus vizinhos. Exemplos: com o Japão, a leste, por causa das ilhas Senkaku (ou, em chinês, Diaoyu); e com Filipinas, Malásia, Brunei e Taiwan, ao sul, pela ocupação das águas e das ilhas Spratly e Paracel.

Citado por Chun Han Wong, o pesquisador Gregory Poling, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (Washington, D. C.), aponta o interesse de Pequim em cobrir suas reivindicações sob um véu de ambiguidades, a fim de confundir as conversações com representantes dos países vizinhos (somada aos chineses, a população dessas nações do litoral do MSC ultrapassa a marca dos 600 milhões de habitantes). Será que o mapa dos chineses reflete suas pretensões soberanas sobre acidentes terrestres, como as ilhas Spratly e Paracel? Ou será que ele considera aquelas águas como parte do mar territorial chinês? Ou será, ainda, que ele envolve a reivindicação de direitos de exploração econômica escorados em antecedentes históricos?…

Enquanto, os diplomatas estrangeiros se entregam ao desvendamento desses enigmas, a China constrói ‘ilhas’ sobre os arrecifes, de modo a assegurar a eficácia de suas reclamações com quartéis, pistas de pouso, sistemas de defesa antiaérea e antinaval, entre outros ‘testemunhos’ do seu poderio militar.

Os elefantes, o capim e a ‘pergunta de um milhão de dólares’:

O governo americano e os governos daqueles países litorâneos do MSC encaram tudo isso como uma violação do arcabouço jurídico liberal que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sustentou o sucesso econômico da região. Eles alegam que a RPC querem substituir esse arcabouço por um descarado recurso à ‘lei do mais forte’….

Assim, em 2016, o governo chinês declarou “nulo” um veredito da Corte Internacional de Justiça, de Haia, principal tribunal das Nações Unidas, o qual determinava o cancelamento dos planos de construção de ilhas artificiais, por solicitação dos governos de cinco países do Sudeste Asiático. Essa atitude de desafio se prevaleceu do poder de barganha decorrente do comércio da China com aquelas nações e também da tática de Pequim, que consiste em jogá-las umas contra as outras. Isso, até hoje, tem impedido uma resposta unificada da Associação das Nações do Sudeste Asiático-Asean aos arreganhos da RPC. O bloco, composto de 10 membros, toma suas decisões por consenso, e pelo
menos dois deles (Camboja e Laos), dada a sua dependência em face dos investimentos e empréstimos negociados no marco da Nova Rota da Seda, ali atuam como dóceis ‘clientes’ da China.

Afinal, como adverte a sabedoria popular do Extremo Oriente, quando os elefantes brigam, o capim sofre, ao que, em de seus pronunciamentos, o pai-fundador de Singapura, Lee Kuan Yew (1923-2015, primeiro-ministro entre 1965 e 1990), acrescentou: “Quando eles flertam, o capim também sofre. E, quando fazem amor, aí então é um desastre!…”

De qualquer maneira, o repto chinês à estabilidade geopolítica e econômica na região do Indo-Pacífico, cada vez mais, vem suscitando reações de potências regionais que compartilham as preocupações de segurança dos Estados Unidos, a exemplo do pacto militar trilateral entre americanos, britânicos e australianos (AUKUS) e o Diálogo Quadrilateral (Quad), em cujo marco Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália têm recebido apoio crescente dos governos da Coreia do Sul, do Canadá, do Vietnam e da Nova Zelândia.

Neste ponto, a ‘pergunta de um milhão de dólares’ que o mundo se faz é: qual o futuro desses arranjos estratégicos destinados a conter o expansionismo chinês durante o segundo mandato presidencial de Donald Trump?

Desafios da Geopolítica

Estamos diante de um inédito movimento de abalo das placas tectônicas da estabilidade internacional construídas no pós-guerra. Os níveis de democracia nunca foram tão baixos e governos antidemocráticos nunca foram tão robustos. O risco de mudança real no equilíbrio de forças mundial nunca foi tão presente, em grande parte pelo perfil das lideranças que comandam importantes nações, e a reorganização gerada pelos recentes conflitos. Todo este contexto se tornou peça central para entender o mundo e seu desenho geopolítico em tempos recentes.

No Oriente Médio, uma reação em cadeia desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 impulsionou um ano de mudanças impressionantes. Israel enterrou o Hamas sob escombros, degradou a rede regional de representantes não estatais dos aiatolás, demoliu as próprias defesas de Teerã, e, inadvertidamente, preparou o cenário para que rebeldes islâmicos derrubassem a ditadura de meio século da família Assad na Síria.

Na Ásia, onde a China compete com os Estados Unidos e seus aliados pela primazia, os pontos críticos no Mar da China Meridional, as águas e os céus ao redor de Taiwan e a Península Coreana parecem cada vez mais desafiadores. O ataque da Rússia à Ucrânia é, a julgar pelas ameaças do presidente Vladimir Putin, parte de uma luta para revisar os arranjos pós-Guerra Fria, e ameaça levar a um confronto mais amplo na Europa.

Em outros lugares, uma onda de conflitos — incluindo a guerra civil de Mianmar, uma rebelião apoiada por Ruanda no leste da República Democrática do Congo, uma tomada de poder por gangues que deixou milhões de haitianos em condições de guerra, além da devastação no Sudão — está aumentando a contagem global de pessoas mortas, deslocadas e famintas devido aos combates, que é maior do que em qualquer outro momento em décadas.

Estamos também diante de blocos antidemocráticos mais unidos. Falar de um eixo formal entre China, Rússia, Coreia do Norte e Irã pode soar exagerado. Porém, é preciso pontuar que estamos falando de governos que cada vez atuam em cooperação estreita. Armas iranianas e norte-coreanas, componentes de uso duplo da China, e agora tropas norte-coreanas ajudam a sustentar a ofensiva do Kremlin na Ucrânia. O pacto de defesa que Putin assinou com o líder norte-coreano Kim Jong Un em novembro, vincula Pyongyang, e potencialmente a segurança peninsular, à guerra na Europa.

Aconteça o que acontecer, a queda para a ilegalidade parece destinada a continuar. Os beligerantes darão ainda menos atenção ao sofrimento civil. Outros líderes podem testar se podem tomar pedaços do território de um vizinho. A maioria das guerras de hoje parece destinada a continuar, talvez em alguns casos pontuadas por cessar-fogo que duram até que os ventos geopolíticos mudem ou surjam outras oportunidades para acabar com os rivais.

À medida que o ritmo da mudança acelera, o mundo parece se movimentar para uma nova mudança de paradigma. A questão é se isso acontecerá na mesa de negociações ou no campo de batalha.